“É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A auditoria é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo”, pontua a auditora fiscal
“As causas da atual dívida grega poderão ser devidamente identificadas a partir da realização da auditoria”, diz Maria Lucia Fattorelli, antes de viajar para a Grécia, onde participará da auditoria da dívida pública, convocada pelo Parlamento grego, no início deste mês. Segundo ela, ainda é cedo para saber as razões da dívida, mas por enquanto “o que se sabe é que o endividamento grego se agravou a partir do ingresso do país na zona do euro, sofreu impacto excessivo devido aos gastos com as obras para os Jogos Olímpicos e explodiu depois da interferência da Troika após a crise de 2008, passando de 110% do PIB em 2009 para 185% do PIB em 2014”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Maria Lucia esclarece que “a partir da auditoria é que as causas poderão ser devidamente identificadas”. Com ampla experiência na auditoria da dívida pública do Equador, a auditora fiscal explica que a “auditoria constitui uma ferramenta indispensável para transparentar quais foram os mecanismos e operações que geraram dívidas desde a sua origem; quem se beneficiou dos recursos; em que esses foram aplicados; verificar se foram cumpridas as normas legais e administrativas existentes; quais os impactos sociais, ambientais, etc.”.
Maria Lucia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública – CAIC no Equador em 2007-2008. Participou ativamente nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a dívida realizada no Brasil. É autora de Auditoria da Dívida Externa. Questão de Soberania (Contraponto Editora, 2003). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as causas da atual dívida pública da Grécia?
Maria Lucia Fattorelli – As causas da atual dívida grega poderão ser devidamente identificadas a partir da realização da auditoria. O que se sabe é que o endividamento grego se agravou a partir do ingresso do país na zona do euro, sofreu impacto excessivo devido aos gastos com as obras para os Jogos Olímpicos e explodiu depois da interferência da Troika após a crise de 2008, passando de 110% do PIB em 2009 para 185% do PIB em 2014.
A partir da auditoria é que as causas poderão ser devidamente identificadas. A auditoria constitui uma ferramenta indispensável para transparentar quais foram os mecanismos e operações que geraram dívidas desde a sua origem; quem se beneficiou dos recursos; em que esses foram aplicados; verificar se foram cumpridas as normas legais e administrativas existentes; quais os impactos sociais, ambientais, etc.
É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A auditoria é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo.
IHU On-Line – Como será feita a auditoria da dívida? Quais as informações vocês já possuem?
Maria Lucia Fattorelli – A metodologia será definida a partir da primeira reunião da comissão, prevista para ocorrer no início de abril.
A auditoria é realizada a partir da análise de documentos e evidências da dívida pública. Os resultados dessa auditoria farão parte de um relatório que se transformará em instrumento para ações concretas em todos os campos: popular, parlamentar, legal, entre outros da esfera política.
No livro Auditoria Cidadã da Dívida: Experiências e Métodos — lançado no Brasil em 2013 e já traduzido para inglês, francês e espanhol —, tratamos da ferramenta da auditoria e das experiências vividas no Brasil (auditoria cidadã e assessoria à CPI) e no Equador. Essas experiências poderão ajudar a guiar a definição da metodologia que a comissão utilizará na Grécia.
Devido ao fato de o endividamento público ter se convertido em uma maneira de desvio de recursos públicos em larga escala, a auditoria terá um papel fundamental para transparentar esse processo, que denominamos “Sistema da Dívida”, e que se repete em diversos países.
A usurpação da dívida pública precisa ser desmascarada. Na Grécia, por exemplo, a manipulação da taxa de risco por agências de classificação — as quais reduziram a classificação dos papéis do país poucos dias antes do vencimento de algumas obrigações — levou o governo a aceitar acordos com o FMI e a União Europeia. Isso possibilita analisar como funciona o mecanismo. Montada a estrutura, instituições financeiras internacionais e grandes corporações podem invadir o país, impondo seus interesses — os quais incluem o desmantelamento dos direitos sociais, a proteção das instituições financeiras e a venda do aparato estatal, sobretudo com a privatização de lucrativas empresas públicas.
Esse mecanismo de pressão da Troika (comitê de bancos, FMI e Banco Central Europeu) contra os países — que por sua vez têm que negociar de maneira isolada — demonstra uma grande assimetria entre as partes, um claro indício de ilegitimidade. O FMI é uma agência especializada da ONU, como a OIT e a FAO, e dessa maneira “deve atuar (…) para atingir os objetivos da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Não obstante, com o passar dos anos, o FMI tem se distanciado dessas metas iniciais e passou a defender os interesses do mercado financeiro.
A auditoria poderá mostrar como os ataques feitos por agências de risco ao país resultaram em ganhos estratosféricos para negociadores em mercados secundários. Chegaram a operar títulos gregos de valor nominal de 1.000 euros a 16,7% de seu valor nominal. O mais grave é que esses títulos vendidos por 167 euros continuavam obrigando a Grécia a pagar os juros de 6,25% calculados sobre o seu valor nominal integral. Dessa forma, o comprador desse título estaria tendo um rendimento efetivo (yield) de 37,43% (6,25%x1.000/167=37,43%). Isso caracteriza abuso contra a Grécia.
IHU On-Line – Como vê a iniciativa do parlamento grego de realizar a auditoria da dívida?
Maria Lucia Fattorelli – Trata-se de iniciativa urgente, devido ao enorme impacto que o endividamento grego tem provocado na economia do país e na vida do povo.
A auditoria deve ser integral, o que significa que ela deve mirar não somente os dados e a contabilidade, mas também todos os aspectos e circunstâncias que envolvem o país e o levam a uma grave crise de endividamento, por exemplo:
1. Qual o valor da dívida que foi emitida para o salvamento bancário?
2. Qual é a responsabilidade do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia nos países em processo de endividamento?
3. Qual é a responsabilidade das agências de classificação de risco por desvalorizar os títulos soberanos de um país, causando a elevação das taxas de juros?
4. Qual a responsabilidade de FMI e União Europeia por forçar alguns governos a implementar reformas contra os interesses dos seus povos e em benefício dos bancos?
5. Qual a responsabilidade dos bancos por:
a. Assegurar mais empréstimos nos mercados?
b. Especular sobre os títulos soberanos, elevando as taxas de juros continuamente e forçando a intervenção do FMI?
c. Jogar com derivativos, credit default swaps e outros ativos tóxicos?
6. Qual a origem da dívida soberana registrada? O país recebeu todo o dinheiro? Em que foi investido o dinheiro? Quem são os beneficiados por esses empréstimos? Com que propósito?
7. Que dívidas privadas foram transformadas em dívida pública? Qual é o impacto dessas dívidas privadas no orçamento do Estado?
Quando tivermos uma visão mais clara sobre tais transformações, poderemos dizer que parte da dívida soberana é ilegal, fundamentados em muitos argumentos jurídicos, por exemplo:
- Corresponsabilidade dos credores e instituições financeiras internacionais;
- Assimetria entre as partes;
- Violação de princípios gerais: razoabilidade, rebus sic stantibus;
- Direito ao desenvolvimento;
- Direito à soberania;
- Violação de direitos humanos.
Enfim, o trabalho de auditoria pode representar muito, não somente para a Grécia, mas para toda a região, na medida em que poderá desmascarar o Sistema da Dívida.
IHU On-Line – Um dos temas polêmicos envolvendo a dívida grega, é o pedido que a Grécia fará à Alemanha, pedindo reparação à Alemanha pela Segunda Guerra Mundial. Como vê essa questão?
Maria Lucia Fattorelli – Esse não é tema da auditoria da dívida, mas de outra comissão de investigação criada pela presidente do Parlamento Helênico, Zoé Konstantopoulou. Na realidade, a presidente Zoé constituiu três comissões, a saber: uma primeira comissão de inquérito para identificar quem e como conduziu os Gregos à catástrofe da Troika e dos Memorandos; uma segunda comissão de reivindicação das indenizações de guerra alemãs, de restituição das antiguidades roubadas e de reembolso do empréstimo obrigatório grego ao Terceiro Reich; e uma terceira comissão, de auditoria da dívida pública grega, coordenada pelo porta-voz do CADTM, Eric Toussaint. Dessa forma, trata-se de comissões distintas.
Apenas a título de esclarecimento, verificamos que devido à invasão do território grego durante a II Guerra, a Alemanha deveria ter pago indenizações de guerra, o que não foi cumprido. Tal fato é relevante, pois justamente os que defendem o dogma de que as dívidas são inquestionáveis e têm que ser pagas de qualquer forma possuem registros históricos de não pagamento de suas dívidas. É um argumento interessante, que desmonta a postura moralista da Alemanha e de seus aliados na União Europeia, que insistem em acusar a Grécia de “perdulária”.
IHU On-Line – Quem irá integrar a comissão da auditoria da dívida pública grega?
Maria Lucia Fattorelli – A comissão será coordenada por Eric Toussaint, cientista político belga e presidente do CADTM, e os convites para integrar a comissão ainda estão sendo expedidos. A primeira reunião da comissão deverá ocorrer no início de abril, quando deveremos conhecer toda a sua composição.
IHU On-Line – Quais são suas expectativas em participar da comissão da auditoria da dívida grega?
Maria Lucia Fattorelli – Considero uma honra muito grande ter recebido o convite do Parlamento Grego para fazer parte da comissão de auditoria daquele país, e um reconhecimento ao nosso movimento Auditoria Cidadã da Dívida, que desde o ano 2000 vem se dedicando a popularizar o debate sobre o endividamento público e a ferramenta da auditoria.
Será uma oportunidade muito importante para colocar à disposição do povo grego a experiência acumulada durante todos esses anos à frente da Auditoria Cidadã, bem como na Comissão Oficial de Auditoria Equatoriana (2007/2008) e na CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados (2009/2010).
O desafio é imenso e há muito trabalho pela frente. A expectativa é de que consigamos fazer um excelente trabalho, que possa servir de ajuda ao país e ao povo grego. Farei tudo que estiver ao meu alcance para representar com dignidade a cidadania do nosso país e as mulheres nesse processo.