Sangue foi coletado por pesquisadores entre os anos 1960 e 1970. Celebração ocorreu na aldeia de Piaú, divisa de RR com o AM; veja vídeo.
Por Inaê Brandão, no G1 RR
Em uma cerimônia que durou pouco mais de três horas, 2.693 frascos de sangue foram pacientemente derramados em um buraco cavado em um dos pilares da Yanoa (maloca na língua yanomae). Foi assim, na tarde da última sexta-feira (3), que os Yanomami honraram os seus antepassados que, entre as décadas de 1960 e 1970, tiveram o sangue coletado por pesquisadores estrangeiros sem a autorização das lideranças do povo. Na época, o material foi enviado aos EUA e só foi repatriado mais de quatro décadas depois, chegando ao Brasil em 26 de março.
O local da celebração, a casa comunitária que abriga os mais de 120 índios, fica na comunidade de Piaú, na região de Toototobi, divisa do estado de Amazonas e Roraima. Para chegar a aldeia é necessário pegar um voo de 1h30 que sai da capital de Roraima, Boa Vista.
O sangue, que era ansiosamente esperado por toda a comunidade, chegou em Piaú no final da manhã. Em um ritual privado, os Yanomami choraram os seus mortos e deram início à cerimônia. “Ninguém deixou olhar quando o Yanomami estava chorando porque não pode. Choramos de saudade como os brancos também fazem”, explicou o líder Davi Kopenawa.
Após o choro, os convidados puderam acompanhar o restante do ritual que era comandado por cerca de 15 Xapiris (pajé em yanomae). Representantes do Ministério Público Federal (MPF), do Itamaraty, da Fundação Nacional Índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Instituto Socioambiental (ISA), órgãos que ajudaram na luta pela repatriação, eram convidados dos yanomami.
Antes de abrir a caixa com as amostras, os pajés inalaram um pó chamado yakoana. “É um costume antigo. O pajé usa porque os olhos ficam iluminados, ele enxerga melhor. É para entrar em contato com os Xapiri que ficam no sangue”, explicou o líder indígena Kopenawa.
Feito do leite de uma árvore, que para os índios é milagrosa, o pó é soprado por uma espécie de vara comprida direto na narina e, conforme as descrições dos próprios índios, a sensação não é agradável. “O pó faz com que o pensamento seja ‘elevado’ e as pessoas se ‘conectem aos espíritos'”, disse o jovem Dário Kopenawa.
Depois que todas as amostras tinham sido derramadas, foi a hora de ‘alimentar os espíritos’. “Antes de fechar o buraco demos comida. Derramamos vinho de pupunha misturado com pimenta e colocamos tabaco para eles [espíritos] ficarem contentes. Em seguida os pajés fizeram Xapiri [pajelança] e fecharam o buraco. Aquele local, que foi escolhido pelos próprios pajés, agora é sagrado”, explicou Kopenawa.
Durante o culto, crianças, jovens, homens e mulheres apresentaram danças típicas da cultura Yanomami. Dário Kopenawa Yanomami explicou que a ordem da dança é primeiro os pajés novos, depois as mulheres, mas ao final todos dançam juntos.”É uma grande brincadeira, não tem uma regra, dança, grita e isso se transforma em alegria”.
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, destacou que a conquista foi do povo Yanomami. “Acho que é uma vitória principalmente dos Yanomami. A luta deles foi incansável. Em nenhum momento desistiram ou se conformaram com a demora”.
Segundo Davi, cerca de trinta pessoas que tiveram o sangue colhido ainda estão vivas, incluindo ele. Destas, 15 estavam presentes na cerimônia. “Nós ficamos bem pacientes com o sangue, não podia quebrar os vidros, tem que ter respeito com o nosso sangue ancestral”.
Sangue Yanomami
Após 45 anos, os índios da etnia Yanomami conseguiram a repatriação do sangue coletado por cientistas norte-americanos da Universidade da Pensilvânia. O caso, que ficou conhecido como ‘Sangue Yanomami’, ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970 quando um antropólogo e um geneticista coletaram amostras de sangue de indígenas no Brasil e na Venezuela sem autorização das lideranças do povo.
O acordo para a repatriação do sangue foi articulado pela Secretaria de Cooperação Internacional, e foi assinado entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Universidade da Pensilvânia em março de 2015.
Os trabalhos começaram em 2002, quando as lideranças indígenas procuraram o MPF e, segundo o órgão, em 2005 a Procuradoria da República em Roraima instaurou um procedimento administrativo. O material chegou ao país no dia 26 de março.
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Destaque: As 2.693 amostras foram enterradas em local escolhido pelos pajés na Yanoa, que significa ‘maloca’ em yanomae. Foto: Inaê Brandão/G1 RR