“A política social tem por finalidade reduzir vulnerabilidades, prevenir a pobreza, equalizar oportunidades e, sobretudo, desmercantilizar acesso, garantindo direitos. No Brasil a perversidade é tamanha que se usa a política social como colateral para dar acesso ao sistema financeiro, de forma a potencializar um consumo represado por salários relativamente baixos e uma estrutura de preços relativos caros, com produtos medíocres, produtividade em queda e juros em alta”, constata Lena Lavinas, professora do Instituto de Economia da UFRJ, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Segundo ela, “não bastasse esse viés liberalizante já conhecido, agora se quer cortar o colateral de acesso, em nome da austeridade. E como se pagarão as dívidas? Que novo ‘modelo social’ está sendo gestado para substituir o que se esgota e foi falho?”. Eis o artigo
Virada de ano, virada de governo. O chamado “reequilíbrio fiscal” atinge em cheio a política social, cujo viés liberalizante entra em marcha acelerada. Se, nos últimos anos, a estratégia de fomento à competitividade de uma indústria combalida centrou-se na desoneração tributária da folha de pagamento, ameaçando o orçamento da Seguridade Social, crescentemente responsabilidade do trabalho e menos do capital, agora a linha de tiro alcança o cerne dos direitos trabalhistas e previdenciários.
Em um contexto de desaceleração econômica aguda, retração do investimento público e privado, rápida elevação dos juros para além de patamares já proibitivos e escassez de novos empregos, alterar as regras do seguro-desemprego e de outros benefícios como as pensões é dar as costas ao “modelo social” introduzido pelo próprio Partido dos Trabalhadores, com custos não apenas em alta, mas fonte de grande vulnerabilidade social e financeira para as famílias brasileiras.
Que “modelo social” foi esse? A grande arquitetura começa com a criação do crédito consignado, em 2004, que vai vincular acesso prioritário a linhas de crédito com taxas de juros menos extorsivas àqueles detentores de uma aposentadoria ou pensão. A política social torna-se, assim, colateral garantido pelo Estado. Rapidamente o emprego formal entra na lista dos critérios de habilitação a essa linha de crédito preferencial de curto/médio prazo, o que é altamente justificável, pois a renda do trabalho é sim um colateral relevante. E esta, em particular seu piso, o mínimo, teve ganhos reais importantes, numa trajetória sustentada de recuperação.
Em paralelo, no mesmo ano, é regulamentado o Bolsa Família, que vem, já com atraso, expandir a incorporação ao mercado de milhões de famílias cujo grau de destituição restringia não apenas oportunidades, senão ameaçava sua existência e dignidade. Pouco a pouco, ampliam-se mecanismos de acesso ao crédito de consumo também aos beneficiários do grande programa nacional de combate à pobreza, para incentivar um modelo de consumo que vem, finalmente, aquecer o mercado doméstico, dobrando as vendas no varejo entre 2003-2014 (IBGE, Pesquisa Mensal de Comércio) e, de tabela, financiando também acesso a bens importados, que um câmbio sobrevalorizado favorece. Ou seja, exportando empregos e agravando nossa balança comercial.
Se, em 2001, segundo o Banco Central, Bacen, o crédito correspondia a 22% do PIB, em dezembro de 2014 ultrapassa 58%. Saliente-se que o crédito a pessoa física responde por 47% da oferta de crédito nessa data, sendo que a rubrica crédito livre (para consumo em geral, aquisição de veículos, consignado e não consignado) equivale a quase 2/3 de todo crédito a pessoa física. Seu volume triplicou entre 2007 e 2014.
Ainda segundo o Bacen, o endividamento das famílias brasileiras com o sistema financeiro nacional compromete hoje 48% de sua renda, para 22% no início de 2006. Isso não seria um problema se, depois de se insuflar o consumo das famílias, motor do crescimento econômico a partir de 2006, usando a política social como colateral, o governo, em meio a uma recessão que bate à porta, não resolvesse modificar a regra de acesso ao seguro-desemprego, cortar e reduzir pensões por morte, e se o sistema tributário não garfasse, pela sua estrutura regressiva que incide fortemente sobre o consumo, pouco mais de metade da renda bruta das famílias que vivem com menos de dois salários mínimos mensais. Ah, sem falar que praticamente metade do valor do benefício do Bolsa Família, segundo dados do Ipea, retorna ao governo em razão da incidência dos tributos indiretos.
Em outras palavras, a renda disponível da família trabalhadora, ou aposentada, ou remediada é baixa, muito baixa. Mas, igualmente baixa, é a renda dos brasileiros em geral, dado nosso quadro de altíssima desigualdade. Segundo o IBGE, o rendimento médio do trabalho ao longo do ano de 2014 (PME) situa-se em R$ 2.054,00 mensais. Some-se à equação o fato de o grosso da política social serem transferências de rendas monetárias, contributivas ou não contributivas, enquanto a parcela da provisão pública de serviços e bens que deveriam ser assegurados gratuitamente continua a escassear, empurrando quem busca segurança e qualidade para o mercado privado, com preços destorcidos elevadíssimos, incompatíveis com a renda da população e comprometendo parcela significativa dela. Ou seja, a renda disponível da população brasileira é sugada por níveis crescentes de endividamento, por tributos indiretos massacrantes e pela aquisição daquilo que lhe deveria ser provido com qualidade, na quantidade imposta pelas contingências e gratuitamente.
A presidente Dilma não se furtou a enfatizar, em seu mais recente discurso, a primazia dos programas residuais como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e o Mais Médicos nas metas de seu governo, em detrimento do sistema de proteção social como um todo. Este, em 2014, além de ter perdido o aporte de, aproximadamente, R$ 56 bilhões em favor das desonerações da Seguridade, ainda se ressente do desvio de – numa estimativa conservadora – R$ 60 bilhões para engordar a Desvinculação de Receitas da União (DRU). A título de ilustração, assinala o TCU que, em 2013, os gastos com renúncia tributária e previdenciária foram estimados em R$ 218 bilhões, ao passo que saúde e educação públicas juntas receberam R$ 163 bilhões. A bom entendedor…..
A política social tem por finalidade reduzir vulnerabilidades, prevenir a pobreza, equalizar oportunidades e, sobretudo, desmercantilizar acesso, garantindo direitos. No Brasil a perversidade é tamanha que se usa a política social como colateral para dar acesso ao sistema financeiro, de forma a potencializar um consumo represado por salários relativamente baixos e uma estrutura de preços relativos caros, com produtos medíocres, produtividade em queda e juros em alta. Claro está que nesta virada de ano, só se pode mesmo celebrar a performance do Bradesco e do Itaú, cujo lucro líquido bateu novos recordes.
Não bastasse esse viés liberalizante já conhecido, agora se quer cortar o colateral de acesso, em nome da austeridade. E como se pagarão as dívidas? Que novo “modelo social” está sendo gestado para substituir o que se esgota e foi falho?
Respeitar e consolidar a grande inovação institucional que nos veio com a criação da Seguridade Social em 1988, isso parece fora do radar. Decididamente, como dizia o refrão das ruas de 2013, esse governo não nos representa.