O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Caixa Econômica Federal deixaram de usar as informações da “lista suja” do trabalho escravo para a formalização de novos contratos, empréstimos e financiamentos, como informa João Carlos Magalhães, na Folha de S.Paulo.
Suspensa após uma liminar do ministro Ricardo Lewandowski (que atendeu a uma ação direta de inconstitucionalidade movida pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias durante o plantão de recesso do final do ano passado no Supremo Tribunal Federal), a lista é considerada pelas Nações Unidas um dos principais instrumentos globais no combate a esse crime.
A última listagem disponível data de julho de 2014, uma vez que a suspensão ocorreu antes da atualização semestral revista para o final de dezembro de 2014. A relação existe desde novembro de 2003 e nunca ficou fora do ar.
O cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo, conhecida popularmente como “lista suja”, é uma base de dados mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego que demonstra os casos em que o poder público caracterizou esse tipo de crime através de fiscalizações e resgates de pessoas e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias. Os nomes permanecem na relação por dois anos, período durante o qual o empregador deve fazer as correções necessárias para que o problema não volte a acontecer.
A portaria que cria o cadastro – e que foi suspensa por Lewandowski – não obrigava a nada: não diz que devem ser suspensos negócios, nem transforma os relacionados em párias. Apenas dá informação ao público. Isso possibilita que as empresas desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa. Ou não. E o governo tem o dever de nos garantir esse tipo de instrumento de transparência. Há cadastros para inadimplentes, por que só o de trabalho escravo seria inconstitucional?
Como já disse aqui, transparência é fundamental para que o capitalismo funcione a contento. Se uma empresa esconde os passivos trabalhistas, sociais e ambientais que carrega, sonega informação relevante que deveria ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial na hora de fazer negócios.
Transparência faz parte da regra do jogo. E quem burla as regras pode até conclamar aos quatro ventos que ama o mercado mas, na verdade, opera um capitalismo self-service. O que é bom, a gente pega. O que é ruim, deixamos para os outros.
Bancos públicos e privados responsáveis por boa parte do crédito imobiliário têm usado a “lista suja” como referência para proteger seus negócios. E empresas que fazem parte do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (uns 30% do PIB) também utilizam a relação como referência.
Por que o mercado usa a lista? Porque o mercado é bom e quer proteger trabalhadores? Não, a questão não é moral, e sim de negócios. E é excelente que seja assim, porque o objetivo de uma empresa é alcançar lucro e não fazer caridade. Percepção de risco ao investimento é a ideia.
O maior impacto real nesses casos não é a perda de consumidores devido a boicotes, porque a memória da população é feito fogo de palha, mas o temor de que investir ou se relacionar com determinada empresa seja arriscado.
Considerando que a) bancos públicos e privados, além de outras companhias, têm atuado para restringir os negócios com quem apresenta esse tipo de problema; b) processos na Justiça por trabalho escravo têm alcançado somas milionárias; c) informações sobre o envolvimento em trabalho escravo são usadas, justa ou injustamente, para restrições comerciais internacionais; d) é lento o processo de construção de reputações de marcas e rápido o de destruí-las, não falta quem não queira correr o risco.
E mesmo que quedas nas bolsas de valores tenham desaparecido nos dias seguintes ao ocorrido, elas funcionam como um alerta para a empresa e para o setor em que está inserida. Há quem use isso para se aprimorar e operar dentro da lei, outros para desenvolver formas de mascarar melhor o problema.
Completaremos dois meses de suspensão da “lista suja” na próxima semana. Há empresas, como os dois bancos públicos citados no início deste post, que frente à suspensão estão desembarcando da sua responsabilidade em verificar os riscos e passivos de seus parceiros. Poderiam solicitar informações diretamente ao Ministério do Trabalho e Emprego, pois o cadastro é apenas uma forma de facilitar a interface com os dados das fiscalizações, que são públicos. Ainda mais porque são grandes organizações e tem recursos para tanto. Não imaginam que, com isso, vão criar um problema para si mesmas. Ou não se importam.
Porque a lista vêm sendo usada, na última década, como boa justificativa para proteger o nosso comércio internacional de barreiras comerciais por pretensas questões sociais. Sob a ameaça de barrar nossos produtos por conta da existência de trabalho escravo em nossa economia, a “lista suja” serve como vacina. Ela possibilita um corte cirúrgico, no produto ou produtor com problema. Sem ela, ficamos sem proteção.
Como provar para um importador inglês, holandês ou norte-americano que a carne, a soja, o algodão, o ferro-gusa, entre outras mercadorias brasileiras, não contam com escravos em sua fabricação? Antes, ele costumava usar a “lista suja” do trabalho escravo para fechar negócios. Agora que está suspensa…
Quem vai pagar pelo prejuízo dos produtores e industriais que operam dentro da lei e são prejudicados por aqueles que estão à margem e lutam para destruir instrumentos que separam os dois? E quem vai pagar pelo risco de calote bancário de empresas que, processadas em milhões por trabalho escravo, podem perder a capacidade de honrar seus contratos? O Supremo Tribunal Federal, que suspendeu a “lista suja” do trabalho escravo, tem caixa para isso?