“Tudo me foi narrado com força e uma espécie de beleza dolorosa”. Antropóloga descreve seu encontro com os Tupinambá, povo cuja história ela quer transformar em filme
Daniela Alarcon – Repórter Brasil
Conheci os Tupinambá em 2010, quando eles viviam um intenso período de criminalização. O pior desde que iniciaram, em 2004, ações diretas para retomar seu território. Eu morava em Brasília, trabalhava com mulheres indígenas e, de quando em quando, encontrava Glicéria Jesus da Silva, importante liderança tupinambá. Glicéria viajava com frequência à capital para representar seu povo, participar de atividades do movimento indígena e denunciar o que ocorria em sua aldeia. Em junho de 2010, ela foi recebida pelo então presidente Lula e relatou os ataques que a Polícia Federal vinha perpetrando contra os indígenas. Ela levava nos braços seu bebê de dois meses de idade. No dia seguinte, foi encarcerada ao desembarcar na pista de pouso do aeroporto de Ilhéus.
Glicéria foi presa com base em um mandado de prisão preventiva expedido pela justiça estadual em que não constavam os delitos de que era acusada. Foi transferida com seu bebê, Erúthawã, para um presídio no município de Jequié, onde permaneceu por dois meses e 13 dias. Na prisão, foi acometida de mastite, uma inflamação da glândula mamária. A negligência das autoridades carcerárias e o agravamento de seu quadro clínico fizeram com que ela tivesse de interromper a amamentação da criança. Dois de seus irmãos, Rosivaldo Ferreira da Silva (o cacique Babau) e Givaldo Ferreira da Silva, também estavam presos, desde março. A proximidade crescente com essa história e a constatação de que os Tupinambá travavam uma luta vigorosa – sendo, por isso, alvos de graves ataques – fizeram com que minha intenção de levar a cabo uma pesquisa no campo da etnologia, até então difuso, se delineasse mais claramente.
Em outubro do mesmo ano, viajei à aldeia Serra do Padeiro para apresentar uma proposta de pesquisa de mestrado acerca do processo de recuperação territorial em curso. Encontrei os três irmãos em liberdade. Mas estava viva a memória dos helicópteros sobrevoando a aldeia e da correria no meio da mata, para se protegerem dos disparos efetuados pelos policiais. Do descomunal esforço para acalentar as crianças – agora tão assustadiças –, não deixar as roças se perderem e resistir aos ataques, fossem promovidos pelas forças oficiais de repressão ou por pistoleiros contratados por fazendeiros. Cicatrizes de bala de borracha no seio, nariz, nas pernas, e marcas de tiros nas paredes. Tudo me foi narrado e apontado com força e uma espécie de beleza dolorosa.
“Aqui, nós não vacilamos para contar nossa história”, disse-me Carmerindo Batista da Silva, quando, no último dia dessa visita, fui apresentada a ele e conversamos sobre o projeto de pesquisa. Carmerindo é um dos cinco indígenas que, em 2009, foram torturados pela Polícia Federal com choques elétricos, durante tentativa de reintegração de posse de uma área retomada.
Já morando na aldeia, caminhava um dia pela retomada onde esse crime teve lugar, quando encontrei um pé de jambo coberto de flores. A essa altura, eu já entendia as implicações mais profundas, para os Tupinambá, da recuperação do território onde seus umbigos estão enterrados e onde ainda se erguem mangueiras plantadas pelos bisavós. A memória impregna o território e nele se cultiva. Mais de uma vez vi dona Maria da Glória de Jesus, mãe de Glicéria, dirigir-se com intimidade ao pé de jambo que plantou sentindo se avizinharem as dores do parto de um de seus filhos mais velhos. Ela cultivou-o no sítio onde, durante quarenta anos, resistiu ao avanço dos não índios.
Havendo me dedicado, nos últimos anos, a conhecer as memórias subterrâneas e apreender algo da narrativa fantástica da longa resistência dos Tupinambá em defesa da terra de seus antepassados e dos encantados, meu mundo está irremediavelmente embebido em suas palavras. E, com o filme que estamos realizando, queremos apresentar a luta dos Tupinambá a vocês.
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Foto: Daniela Alarcon