MPF acompanha os eventos de hoje na cidade que foi palco de um dos crimes agrários de maior repercussão da Amazônia
Em dez anos, muita coisa mudou em Anapu, cidadezinha às margens da rodovia Transamazônica onde Dorothy Stang viveu por 40 anos e onde foi assassinada com seis tiros à queima-roupa na manhã de 12 de fevereiro de 2005. Muita coisa mudou por causa da vida e da morte da missionária. A começar pelos Projetos de Desenvolvimento Sustentável Esperança e Virola-Jatobá, os assentamentos com mais de 400 famílias que só foram reconhecidos pelas autoridades federais após o crime. Até hoje enfrentando ataques de madeireiros – que pioraram muito com as obras da usina de Belo Monte – os assentamentos precisam de vigilância constante e foram instaladas até guaritas na estrada.
Há mudanças visíveis também nas condições de vida dos moradores, migrantes que chegaram em Anapu na década de 90 sem nada, estimulados pelas promessas do governo Fernando Henrique, de que a usina de Belo Monte traria prosperidade. Da usina, iniciada por Lula, só conhecem os impactos negativos, mas da resistência contra fazendeiros e madeireiros obtiveram algumas vitórias e hoje moram e produzem nas próprias terras. O assentamento fica a 50 quilômetros da cidade que por muitos anos foi dominada por grandes grileiros de terra financiados pelo governo brasileiro por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Em 1999, já perto da extinção dos financiamentos, grandes fazendeiros conseguiram mais de R$ 75 milhões de verbas do estado brasileiro para desmatamento e concentração fundiária.
“O que se vê nestes 50 quilômetros é um rastro de miséria deixado por projetos de pecuária que não deram certo. As pessoas que se voltaram para o gado não conseguiram desenvolvimento econômico. O PDS Esperança é o verdadeiro projeto de reforma agrária para a Amazônia. Por isso é alvo de tanta cobiça por parte de fazendeiros e madeireiros”, diz Felício Pontes Jr, procurador do Ministério Público Federal no Pará que acompanhou toda a luta de Dorothy e segue acompanhando a vida dos moradores do PDS.
Dez anos depois, no dia de comemoração e protestos que marca a data do assassinato, Pontes está de volta a Anapu. Ele participa de missa e caminhada lideradas por antigos companheiros de Dorothy Stang, como o padre Amaro Lopes, a freira Jane Dwyer e o bispo dom Erwin Krautler. “Ainda há uma pressão muito grande dos madeireiros em cima daquela área. Até a morte de Dorothy os madeireiros tentavam atacar a área com papéis, títulos falsos. Depois, a estratégia mudou. Agora eles tentam infiltrar no assentamento trabalhadores de madeireiras como se fossem assentados, colonos da reforma agrária”
“10 anos não endireitam 40 anos de corrupção, grilagem e invasão de terras públicas, violência, crime organizado, ameaças e repressão. Cobramos a volta do posto autônomo do Incra em Anapu, um posto coordenado por pessoas honestas, de coragem e firmeza”, diz a nota distribuída pela Comissão Pastoral da Terra, da qual Dorothy fazia parte. A CPT também cobra mais firmeza do governo federal no processo de retomada das terras da União leiloadas por meio dos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), herança, como a Sudam da política de desmatamento e concentração fundiária do governo militar na região da Transamazônica.
Até hoje, perduram muitos conflitos entre moradores das áreas da União – fora dos assentamentos já reconhecidos – e pretensos titulares desses contratos. De acordo com os cálculos da CPT, são mais de 700 famílias vivendo sob ameaça de grileiros que se dizem donos das terras por meio dos CATP’s.
Impunidade
Uma das palavras mais repetidas hoje em Anapu será impunidade. Dez anos depois de um crime que chocou o mundo e levou até Anapu senadores, deputados e ministros para o funeral de Dorothy, o principal mandante do assassinato, condenado a 30 anos de prisão, permanece solto à espera do julgamento de um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Regivaldo Galvão, o Taradão, fazendeiro financiado pela Sudam como vários da região, chegou a ser preso depois da condenação, mas foi beneficiado por um habeas corpus do ministro Marco Aurélio de Melo, do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, que lhe deu o direito de aguardar o fim do processo em liberdade.
Os outros responsáveis pelo crime – o também mandante Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, o intermediário Amair Feijoli da Cunha, o Tato e os pistoleiros Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Batista – cumpriram ou ainda cumprem suas penas. Ocorrido pouco depois da aprovação da reforma do Judiciário, o assassinato de Dorothy foi objeto do primeiro Incidente de Deslocamento de Competência da história da Justiça brasileira. Temendo a repetição da impunidade registrada em mais de 700 assassinatos por conflitos fundiários no Pará, o Procurador-Geral da República na época, Claudio Fonteles, pediu ao STJ que deslocasse o processo do crime da Justiça Estadual para a Justiça Federal.
O deslocamento é previsto para casos de grave omissão das autoridades estaduais, o que se verificava no assassinato de Dorothy, uma morte longamente anunciada, já que o próprio MPF havia enviado inúmeros documentos e pedidos de proteção informando a situação de perigo em que a freira se encontrava. O deslocamento foi negado pelos tribunais, mas o MPF avalia que a mera propositura do incidente, aliada à forte pressão nacional e internacional, favoreceram a solução e o processamento do crime. Mesmo assim, até hoje o principal mandante ainda não cumpriu sua pena.
Veja as principais reivindicações dos moradores dos assentamentos criados por Dorothy
Foto: Placa fixada em uma árvore em homenagem a Dorothy Stang em 2009 (Tomaz Silva/Agência Brasil).