Da secretaria do MAB à balsa de Assurini é um pulo. Sofia acostuma-se com essas distâncias, a pé, pelas ruelas de Altamira. O barulho do motor de reboque e o calor são quase insuportáveis. Sua boca está seca. Sente-se n’água morrendo de sede.
Enquanto a balsa se movimenta e, depois, zarpa, ela vai pensando um monte de coisa. Fica atenta a pessoas conhecidas ou carro com vaga que lhe possam dar carona até a Sol Nascente, onde motoqueiro a espera para reunião em Palhal, atingida por Belo Monte. Mas sem preocupar-se. Carona, ali, nunca foi problema.
Concentra-se no Xingu, águas esverdeadas, biodiversidade, fonte de vida para milhares de famílias, agora destroçado.
Norte Energia e o Governo, exceto nalgum ponto específico, encaram o fato como normal: barrar o rio, secar a Volta Grande, fechar a comporta antes de garantir o direito – sobremesa antes da refeição -, privatizar a água e a energia, fazer um linhão da Amazônia ao Sudeste para escoar essa mercadoria preciosa, avançar sobre o Tapajós, inventar a historiazinha das barragens-plataforma, usar o ‘diálogo’ para enganar os Munduruku e os atingidos em geral, e assim por diante.
Os capitalistas abusam de mitos da Amazônia para seu proveito, tornando-a folclórica, exaltando florestas e aves, usando algumas ONGs e, até, construindo uma Arca de Noé para os bichos, mas deixam de lado o mais importante: as pessoas!
A Amazônia real são seus diferentes povos: os mais de 20 mil operários explorados nos canteiros de Belo Monte, os indígenas que vão ficar sem água, as famílias não reconhecidas abaixo do muro, os acampados em Vitória do Xingu que lutam por direito a moradia, as famílias do Novo Horizonte em Brasil Novo, os moradores de áreas alagadiças, os habitantes da cidade de Altamira em vida precarizada, os pescadores sem indenização, camponeses enganados, as centenas de vítimas da violência crescente, os que morrem sem assistência, os que sonham com uma educação descente, os que foram transferidos para o Jatobá e São Joaquim sem garantia de políticas públicas, os que são criminalizados na luta, uma lista quase infinita.
Sofia se contorce de indignação, mas sabe que qualquer indignação só faz sentido se traduzir-se em organização popular. Se não for assim, não vale a pena. Vira úlcera e, não, força revolucionária.
A balsa já está no meio do rio. Ainda faltam 20 minutos de travessia. Sofia vai ao Sudeste, em pensamento. Repara o milho retorcido do sol à beira do Turvo, magro de água, no município de Guaraciaba. Ali, e em todo o Sudeste do Brasil, as pessoas estão assustadas com a seca, cujo estres se agrava com sua intensa exposição na grande mídia.
Agora chove! Chuvinha mansa, mas o fantasma da falta d’água continua como trauma. Ele bate à janela! Veio uma vez e poderá voltar logo!
Veio, militante exemplar do MAB, relativiza a questão, mas sem tirar-lhe um pingo de sua gravidade: ‘De tempos em tempos, há grandes enchentes ou secas prolongadas, em janeiro é comum invernada de chuva ou veranico, o tempo da natureza é maior que o nosso’. Sofia o escuta e se cala, vendo nele algo do pensamento dialético, para além do imediatismo e de posições fanáticas. Mas o fato é que minas somem, córregos minguam, rios emagrecem, lagos se esvaziam, camponeses perdem sua plantação. O que se ouvia de longe agora está no quintal de casa.
A mídia, por sua vez, fala muita bobagem! Fica medindo gotas de água que caem sobre o Cantareira ou xingando São Pedro por não despejar, lá, as águas que inundam São Paulo. Ora bolas! A grave situação de abastecimento de água em São Paulo e no Rio de Janeiro tem tudo a ver com a ‘seca’ em Minas Gerais, particularmente, e nada a ver com o pobre do Santo. A bem da verdade, a crise atual não é de água nem de energia, é de gestão e de projeto de desenvolvimento.
Minas Gerais tem apelido de Caixa D’água por ser nascente de grandes rios. Como está a Caixa D’água? Solo impermeável pela pastagem sem fim em braquiária; milhares de minas pisadas e repisadas pelo gado; brejos e fontes atravessados por minerodutos, cada qual levando água de até quatrocentos mil habitantes; enchentes torrenciais com água barrenta sobre as terras acidentadas, desmatadas, erodidas, indo embora, sem recarga das bacias hidrográficas por anos seguidos; montanhas de minério, que guardam e purificam água, sendo roídas e jogadas no trem da Vale; a privatização de setores estratégicos à soberania do país; envio bilionário de dividendos a acionistas estrangeiros sem os investimentos necessários na qualidade dos serviços; planejamento de exploração dos bens naturais à base do apetite insaciável do capital.
É isso! A pressão do capital quebrou a Caixa D’água! É esse descalabro que faz de uma estiagem (quase) normal um ponto de guerra. Procura naturalizar-se a seca, ela, no entanto, é uma questão de classe!
Os operadores do sistema, por sua vez, enquanto estão por cima da carne seca, vendem e compram a própria mãe, corrompem-se com rios de dinheiro desviados, afundam-se na política do compadrio e do toma lá dá cá, fazem as costuras mais descabidas em nome da governabilidade, colocam-se como deuses, são prepotentes e arrogantes, reinam sozinhos, e decidem em seus escritórios e palácios o que fazer do Mundo. Se, porém, a engrenagem falha, aí eles vão ao povo para culpá-lo ou fazer remendos: trocar a geladeira, marcar tempo de banho, evitar o chuveiro na hora de pico, dar descarga pela metade, multar, plantar uma árvore. Tudo isso são iniciativas importantes, mas periféricas. Os números da água são elucidativos: 70% para o Agronegócio, 22% para as indústrias, apenas 6% para as residências. Isso mostra quem é o vilão e onde as mudanças profundas precisam ocorrer.
A lógica mais elementar indicaria que esses sinais de colapso no sistema de abastecimento de água e de energia deveriam impor mudanças ao rumo do ‘desenvolvimento’. Mas não! A lógica do capital é a acumulação. E, no comando, ganha em qualquer conjuntura. Economia, racionamento, escassez, horário de verão, novas tecnologias são palavrinhas mágicas que transformam um ambiente adverso em oportunidade de mais exploração. As contas de luz poderão subir até 70%. Chantagens e boicotes poderão amolecer, ainda mais, o já tão ‘benevolente’ licenciamento ambiental.
A balsa range na barranca do Xinguzão. Sofia, num meio sorriso, pega sua carona numa certeza: é preciso alimentar outra sede, o trabalho de base, o poder popular.
Foto: Obras da barragem de Belo Monte, no Rio Xingu, na Floresta Amazônica, estado do Pará (Mario Tama/Getty Images)