Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
O ano de 2000 viu a bonita cidade boliviana de Cochabamba se erguer em rebelião. Naqueles dias, que correram de janeiro a abril, uma parte significativa da população protagonizou o que ficou conhecido como “guerra da água”. A administração local havia decidido privatizar o sistema de gestão da água e isso logo após as tarifas dobrarem de preço. Quem iria dominar a água seria a empresa Águas de Tunari, nada mais do que uma filial de um grupo estadunidense, Bechtel. Foi a gota que faltava para que a população – que já vinha se organizando – decidisse enfrentar a privatização, nas ruas.
A luta foi sem tréguas, com protestos e enfrentamentos, a tal ponto de o então presidente da república, Hugo Banzer, declarar estado de sítio. Muitos dos líderes foram presos, rádios comunitárias foram fechadas e a cidade de 600 mil habitantes virou um barril de pólvora. Mas, a força das gentes definiu a vitória. O governo anulou o contrato de concessão do serviço – que duraria 40 anos – e suspendeu a privatização.
Uma das lideranças que esteve à frente das batalhas foi Oscar Oliveira. Um homem pequeno, que parece um menino, de gestos comedidos e fala baixinha. Quem o vê não percebe, em primeira hora, o gigante que vive ali. Pois nos dias em que Cochabamba viveu a guerra da água, ele trabalhava numa fábrica de calçados, mas era, já de longa data, dirigente sindical. Sua batalha pela vida começou muito cedo, ainda menino, quando precisava vender massinhas na porta da escola para ajudar nas despesas da família que formava um grupo de 12 pessoas. Não bastasse a pobreza, ainda teve diagnosticada uma doença grave no coração, a qual, diziam os médicos, não lhe permitiria viver mais que vinte anos. Pois Oscar viveu, e não poupou emoções ao músculo que pulsava como uma bomba relógio.
Enfrentou, nos anos 80, a ditadura de Luiz Garcia Meza atuando no Comitê Clandestino de Bases do Sindicato de Manaco e nos anos 90 dirigiu a Confederação dos Trabalhadores Fabris da Bolívia. Toda sua trajetória se fez no espaço sindical, e não foi fácil fazer a transição para o movimento popular que desembocou na chamada Guerra da Água. “Os companheiros sindicalistas não compreendiam a extensão daquele movimento que crescia no meio da população. Alguns chegaram a me pressionar, dizendo: o que tu tens a ver com isso da água? Então eu explicava para eles que eu trabalhava numa fábrica de sapatos, logo, tinha tudo a ver com a água. Sabe quanto litros de água são gastos para fazer um par de sapatos? Oito mil litros. Imaginem que a fábrica onde eu trabalhava fabricava 25 mil pares por mês. Quanto de água ia pelo ralo? Ora, a questão da água era uma questão para mim, sim, e eu fui atuar naquele movimento. Porque a água é um direito humano, não pode ser vendida”.
E ele foi às ruas e liderou gentes no rumo da vitória. Hoje, Oscar não trabalha mais em fábrica. Atua em uma escola rural onde ensina as crianças a conviver de maneira harmônica com a terra. E, mesmo ali, enfrenta o olhar de estupefação e a incompreensão dos colegas. “Os professores dizem: mas de que adianta ficar com as crianças na horta. Há que ensinar matemática, biologia, física. E eu explico: para fazer uma horta temos de medir a superfície, o volume, a profundidade. Isso é matemática. Para plantar uma beterraba a gente vai conhecendo sua conformação, seus nutrientes, isso é biologia, é química. E assim, numa simples horta, podemos ensinar geopolítica, economia, qualquer coisa. Nós temos de recuperar essa coisa fabulosa dos nossos ancestrais que era a relação com a terra, com a água, com a natureza. Atuar em harmonia, respeitar, compreender a nossa cosmovisão. Sem isso, não há como fazer política”.
Agora ele foi mais além e está construindo, junto com sua gente, a primeira planta de tratamento de águas servidas dirigida pelas próprias pessoas da comunidade. A ideia surgiu como uma forma concreta de salvar o rio Rocha, veia hídrica importante para a vida da cidade que tem sido poluída sistematicamente por esgoto e resíduos industriais. O trabalho já leva um ano, envolvendo a escola onde trabalha e o governo de Cochabamba. É o trabalho com as crianças dando resultado, ultrapassando a horta da escola.
Assim, devagar, vai se erguendo a obra que pretende manejar o ciclo integral da água, devolvendo a água tratada à Mãe Terra, conservando o manejo comunitário e participativo do serviço. É o resultado mais importante daqueles dias de batalha. Venceram a privatização e, agora, há que garantir a autonomia das gentes e a capacidade de mobilização que permite a todos tomarem decisões sobre seu território e suas vidas.
O custo total da obra é de 10 mil dólares e ela vai se fazendo na comunhão com pessoas de todo o mundo. Cada uma pode aportar um tijolinho nesse sonho. Não é coisa fácil porque toda a gente é pobre. Mas, os amigos são muitos. Agora, os comuneiros lançaram uma campanha pela internet, com a qual pretendem arrecadar mais fundos para dar seguimento ao trabalho.
Desde aqui, nós, que compartilhamos essa luta pela soberania da água, colocamos nosso tijolinho e convidamos a quem mais possa para ajudar. Para isso, basta acessar a página do projeto e fazer uma doação. Tudo de um jeito fácil e rápido. Para aqueles guerreiros da água, qualquer valor é bem vindo porque eles caminham seguros na direção de um sonho que é concretizado a cada dia, coletivamente.
Então, de novo, nos passos do pequeno Oscar, caminham essas ideias imensas de vida e solidariedade.