Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
Era 1988 e eu vi a Praia Brava em Florianópolis pela primeira vez. Eu e minha amiga Roseméri. Subimos o morrinho à pé. Não havia estrada. Era um caminho. E tão logo a gente chegava ao topo, aquela vista estupenda se descortinava: o mar, revolto, mexido, e uma branca faixa de areia ladeada pelo verde da mata. Era como chegar ao paraíso. A gente descia o caminho e ali ficava, reverente, diante de tanta beleza. Hoje, 26 anos depois, como encontrar a beleza por lá? Os prédios, gigantes, tiraram a visão da praia, e ali ficam, como monstros, despidos do verde e de tudo aquilo que fazia da praia um lugar de sonho. “É o progresso”, dizem os vendilhões. “É a destruição e a privatização da praia”, digo eu.
A cidade de Florianópolis é conhecida em todo o país como um lugar de maravilhas. Quarenta e duas praias lindíssimas, todo o tipo de mar. Mas, o que faz dela referência nacional vai pouco a pouco desaparecendo em meio à voracidade daqueles que só pensam em especular. Na bela, calma e quentinha Jurerê, quem está ligando para o mar? O que está “na crista” são os badalados “beach clubs”, barracas de luxo montadas na areia, que privatizam a praia e alojam jovens ricos e descolados, muito mais preocupados em consumir bebidas e outras “cositas”, na preliminar de noites quentes de sexo sem compromisso. Beleza? Natureza? Isso é coisa de bicho-grilo e eco-chato.
Canasvieiras, Ingleses, Ponta das Canas e outras praias do norte são atualmente quase cidades dentro da cidade selvagem, sem praças, sem espaços de convivência, sem preparação para o comunitário. Só paisagem especulada. A pessoa compra um apartamento para estar perto do mar, mas o mar já quase não importa mais.
A região do sul da ilha passou a ser a bola da vez nos últimos anos, uma vez que o norte já estava “craudiado”, tomado, cheio. E, assim, com a bênção dos vereadores, as mudanças de zoneamento foram acontecendo permitindo construções cada vez maiores. De novo, a beleza cedendo passo ao concreto. Uma ocupação desenfreada, sem planejamento, sem cuidado.
Durante mais de sete anos as comunidades se reuniram, planejaram a cidade, pensaram formas de ocupar sem destruir a beleza, organizaram a vida com espaços comunitários de lazer, desenhando um mundo de equilíbrio. Mas, uma rasteira do novo prefeito, então recém-eleito, colocou todo o trabalho no chão. E, num dezembro, quase natal, a Câmara de Vereadores – exceto por três votos – aprovou um novo plano diretor, com mais de 600 novas emendas, que nenhum dos vereadores conhecia. Foi um massacre, apesar da mobilização e luta das gentes. Mais uma vez, a cidade pensada pelas autoridades emergia, excludente, segregadora e elitista, escapando das mãos dos moradores. Tudo para os especuladores, migalhas para a população real.
Agora, em pleno carnaval, quando o país todo vive a modorra da festa, a alienação necessária para enfrentar mais um ano de batalhas, outro golpe se abate sobre Florianópolis. Numa manobra digna dos melhores gangsteres, a prefeitura aprova a construção de um hotel de 18 andares na Ponta do Coral, um espacinho de terra que avança para o mar e que ficou perdido na selva de concreto da Beira Mar. Um pedacinho reivindicado pela população para que se transformasse num jardim, um pequeno parque público, capaz de ser vivido por qualquer cidadão. Dali, daquela ponta esquecida, pode-se vislumbrar toda a Baia, uma paisagem de tirar o fôlego. Por isso a luta incessante pelo tombamento. Centenas de atos, passeatas e concertos ao fim da tarde foram realizados. Uma batalha de titãs. De um lado, empresários e políticos dispostos a privatizar a Ponta, e de outro, as gentes, querendo garantir a pequena ponta de beleza para toda a cidade.
Essa luta é uma peleja que ainda está em curso, apesar da jogada da prefeitura. Segundo os administradores, o licenciamento para a obra saiu antes da aprovação do Plano Diretor, que não permite um prédio de 18 andares ali, por exemplo. Jogada de mestre. A aprovação saiu na calada da noite, quando toda a gente enfrentava a luta contra o Plano Diretor artificial que saiu das mãos da prefeitura. Distraídas as gentes, os burocratas garantiram os carimbos e definiram a concordância para a construção de um hotel – espaço privado – na Ponta do Coral. E, não bastando ignorar a reivindicação da população, ainda usaram da prerrogativa da anterioridade à aprovação do Plano Diretor, para permitir um monstro de 18 andares.
Quem conhece a Ponta do Coral sabe o que isso significa. É como um estupro, uma violação. A proposta inicial da Hantei, construtora responsável pelo projeto do hotel, era aterrar o mar e ganhar ainda muitos metros quadrados de espaço. Isso parece que não vai mais acontecer. Então, eles erguerão o espigão privado no pequeno braço que se estende para o mar. Não mais jardim, não mais parque, só mais um gigante de concreto, disponível apenas para os ricos. A paisagem especulada outra vez.
Na TV comercial já começou a campanha contra os que eles chamam de “eco-chatos”, os que travam o progresso da cidade, os que não querem o crescimento. As bocas alugadas tecem loas e agradecem aos empresários bonzinhos que permitem o acúmulo de mais e mais turistas de alto poder aquisitivo. Não percebem eles que, apoiando esse projeto de cidade, mesmo que tenham os bolsos cheios, também serão atingidos pelas consequências. São ventríloquos, sem cérebros, incapazes de defender a cidade, eco-burros. A prefeitura liberou, mas ainda falta a licença ambiental. Todo o foco agora é na Fatma, a fundação que cuida do meio ambiente.
A nós, os que amam a cidade e querem que ela possa ser vivida por todos – os com dinheiro e os sem dinheiro – cabe travar o combate. A Ponta do Coral não pode ser violentada. É nossa obrigação denunciar e militar em favor da Ponta pública, comunitária, livre. Cada um, cada uma, é responsável por esse trabalho de conscientização que a mídia comercial não faz. Que bem ao “progresso” pode fazer um hotel de 18 andares na Ponta do Coral? A quem servirá? A uns poucos…
O único progresso possível numa cidade como Florianópolis é a manutenção da beleza, da natureza exuberante, em equilíbrio com as gentes e os bichos. Por isso a proposta é a formação do parque das Três Pontas, público, que permitirá o usufruto a qualquer um. Um caminho úmido ligando Ponta do Coral, Ponta do Goulart e Ponta do Lessa, três pequenos braços de terra entrelaçados por mar e mangue. Um criadouro de vida. Essa é a nossa batalha. E vamos nela até o fim.