Do Observatório da Sociedade Civil / Canal Ibase
A Comissão Nacional da Verdade apresentou em dezembro seu relatório final, com o resultado de dois anos de trabalho resgatando fatos e dados sobre a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Em entrevista ao Observatório da Sociedade Civil, Anivaldo Padilha, membro da Comissão, afirma a importância política do relatório e destaca o papel da sociedade civil organizada como fundamental para a próxima fase. Segundo Padilha, a criação da Comissão Nacional da Verdade impulsionou uma ampla discussão e movimentação para levantamento de dados sobre a ditadura. Algo que, devido ao curto período de tempo, a Comissão Nacional não seria capaz de realizar sozinha.
“A Comissão teve somente alguns meses para atuar e investigar os crimes. A ditadura teve presença em todo o estado e estabeleceu controle em varias instâncias da sociedade civil, cometendo violações em todo território nacional. Desse modo, é impossível apresentar um relatório totalmente abrangente desses crimes”, afirma. Para o sociólogo, apesar de o relatório sistematizar grande parte do conhecimento que já havia sido produzido, principalmente pelos familiares dos mortos e desaparecidos, o documento é uma grande novidade para a sociedade como um todo. “Pela primeira vez os crimes cometidos por agentes do Estado foram colocados em pauta nacional, possibilitando que a verdade seja realmente conhecida”. Agora, é responsabilidade da sociedade civil, pressionar os poderes para que as recomendações do relatório sejam seguidas. Leia a entrevista abaixo.
Para além do levantamento de dados, qual a importância política desse documento?
Acredito que existam vários aspectos que mostram sua importância. É importante registrar que a Comissão Nacional da Verdade foi uma comissão do Estado brasileiro, estabelecida em consenso pelo Congresso Nacional. Pela primeira vez na historia, depois da ditadura, o Estado reconheceu sua participação em crimes e graves violações dos direitos humanos. O Estado reconheceu também que, em 1964, as forças armadas, apoiadas pelo grande capital nacional e internacional, derrubaram um governo democrático e legítimo, usurparam o poder e instalaram uma ditadura e um Estado terrorista no Brasil. A comissão rompeu um silencio que havia desde a ditadura e o ponto chave e de extrema importância do relatório são as suas recomendações. Porque o objetivo principal sempre foi dar voz às vitimas da ditadura e reestabelecer a verdade, mas também projetar mecanismos para o futuro que impeçam que essa experiência se repita. Ou seja, resgatar a memória e projetar mudanças para o futuro.
Essas propostas da comissão, algumas encaminhadas para o Executivo, outras para o Legislativo ou para o Judiciário, visam eliminar todos os resíduos da ditadura. O regime acabou do ponto de vista formal, mas permanece em várias instituições do Estado brasileiro. Quais recomendações presentes no relatório você pode destacar?
Uma das recomendações é a revogação da lei de segurança nacional, que permite que pessoas sejam acusadas e presas por participar de manifestações, por exemplo. Outra, a respeito da Lei da Anistia, é que ela não possa ser usada para manter a impunidade dos torturadores. Por essa lei o Brasil já foi condenado pela Corte Americana de Direitos Humanos. O relatório recomenda também a desmilitarização da polícia, para que seja criada uma nova polícia com o objetivo de proteção da cidadania e do cidadão e não perseguição ao inimigo interno. Uma polícia com treinamento para ser preventiva e investigativa e não treinada para matar. Recomenda-se também a revogação dos autos de resistência, para que qualquer morte causada pela polícia seja imediatamente investigada por parte do Ministério Público.
O presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, deu uma declaração em apoio às recomendações da comissão, afirmando que algumas delas exigem alterações na própria Constituição. A sua perspectiva é de que essas mudanças sejam feitas? Quais são os obstáculos para que as recomendações sejam seguidas?
Vai ser uma tarefa gigantesca para a sociedade civil pressionar para o cumprimento das recomendações. Tudo depende da mobilização da sociedade civil. As tarefas políticas, claro, muitas dependem do Congresso Nacional. Mas o atual Congresso, que tomou posse agora, é muito mais conservador. A hegemonia está realmente nos setores de direita, o que dificulta tudo. Teremos que trabalhar muito. Há uma recomendação de que seja criada uma espécie de secretaria permanente da memória e da verdade para dar segmento, coordenar e monitorar a implementação das recomendações. Essa secretaria é fundamental para que haja continuidade do trabalho da Comissão, mas, ainda assim, as organizações e movimentos da sociedade civil são essenciais para o processo democrático.
Em relação à sociedade civil, como acredita que as organizações e movimentos possam utilizar o relatório? O que pode ser feito a partir dele?
O papel da sociedade civil vai ser importantíssimo nessa nova fase. Sabemos que os poderes da República estão sobre pressão e, além disso, têm suas próprias contradições internas. É muito importante que sociedade civil impeça que haja uma negligência ou um simples esquecimento em relação às recomendações da Comissão. Se deixarmos para a boa vontade do Executivo e dos parlamentares, jamais vai haver um resultado efetivo. Diversas organizações que participam ativamente da defesa dos direitos da população brasileira devem enxergar e utilizar o relatório e resgatá-lo em suas próprias pautas. É importante que se envolvam diretamente, dentro da sua luta, juntem suas forças, atuem e façam ações especificas em relação a Comissão, sejam movimentos feministas, ligados à reforma política e mesmo à democratização da comunicação.
Algumas entidades e movimentos criticaram o relatório final por ele não apresentar poder de justiça. Também alegam que muitos dados já eram conhecidos pela sociedade civil e que algumas recomendações já tinham sido feitas por órgãos internacionais. O que acha desse posicionamento?
Em relação à justiça, a Comissão fez seu papel, que foi o de apontar os responsáveis pelos crimes de violação de direitos humanos. Esses eram os limites legais da Comissão. Em nenhum lugar do mundo as comissões da verdade tiveram papel de justiça. Em relação a apresentar informações que já eram conhecidas, eu diria que grande parte do que foi colhido e divulgado era conhecido por grupos que atuam há décadas nessa área. Familiares, ex-presos políticos, comitês de memória e justiça… Esses grupos já conheciam grande parte do que publicamos. No entanto, a maior parte da sociedade não tinha ciência dessas informações. Há uma questão que eles têm razão em criticar, que é o fato de o relatório não ter avançado quase nada nas investigações de mortos e desaparecidos. A Comissão identificou apenas dois corpos de presos desaparecidos. Isso porque houve realmente uma grande dificuldade. Os únicos que sabem onde estão esses corpos são os militares e a Comissão não teve acesso a documentos que os militares afirmam já terem sido destruídos. Há uma lacuna, não conseguimos avançar e é uma pena, pois era um dos objetivos principais da comissão.
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Foto: Reintegração de posse em Manaus – A Critica