Por Frederico Füllgraf, de Santiago do Chile, especial para Jornal GGN
Nesta semana, após 14 anos de investigações do assassinato ocorrido há 42 anos, dos norte-americanos Charles Edmond Horman Lazar e Frank Randall Teruggi Bombatch – jornalista o primeiro, estudante o segundo – executados no Estádio Nacional de Santiago, entre 18 e 22 de setembro de 1973, o juiz Jorge Zepeda Arancibia, da Corte de Apelações de Santiago, sentenciou a sete e dois anos de reclusão, respectivamente, dois antigos oficiais da inteligência chilena.
Enterrado clandestinamente, a estória de Horman ganhou o mundo como o célebre, primeiro “desaparecido” da ditadura Pinochet, narrada no livro de reportagem “The Execution of Charles Horman, An American Sacrifice” (1978) de Thomas Hauser e adaptado para o cinema como o contundente, tocante e multi-premiado “Missing” (Desaparecido, 1982), de Konstantinos “Costa” Gavras.
Em 1986, o ex-embaixador norte-americano no Chile, Nathaniel Davis, co-articulador do golpe contra Salvador Allende, processou o diretor Costa Gavras, a distribuidora Universal Pictures e o escritor Thomas Hauser por difamação, cobrando 200 milhões de dólares de indenização pelo que considerou infamante à sua reputação e conseguindo a censura e remoção do livro e do filme do mercado norte-americano durante 20 anos. Em 2006, Davis perdeu a causa, o livro voltou às prateleiras e o filme retornou às telas,
Se, depois de 33, anos Costa Gavras, talentoso e cacifado diretor do gênero thriller político, decidisse retomar a estória de Horman e Teruggi, seu título deveria ser “Desaparecedores”, pois assombroso é o número de tramas paralelas, labirínticas, mas convergentes, que no decurso de 42 anos emergiram, preto no branco, como um código cifrado, escrito com letra invisível em microfilme, pouco a pouco ganhando corpo no tanque do revelador.
O alerta político do ministro Zepeda
Dadas a premeditação e a selvageria dos crimes, foram pífias as sentenças em primeira instância do magistrado Zepeda, mas notável sua determinação em inculpar a cumplicidade norte-americana com os crimes, cumplicidade escancarada há mais de 12 anos em “The Pinochet File” (Especial: El Mercurio no banco dos réus), livro do jornalista e pesquisador Peter Kornbluh, com apurada documentação do “step-by-step” das operações clandestinas do dúo Henry Kissinger-Richard Nixon para derrubar o governo democrático de Salvador Allende. Embora admitida de forma indireta, apenas mediante a desclassificação de documentos secretos, a conspiração e a criminosa cumplicidade dos EUA com o golpe militar de 11 de setembro de 1973 prevalece até os dias de hoje. Sem nenhum mea colpa de um presidente negro, Nobel da Paz e cínico, que prolonga como política de Estado sua partícipação no pacto de silêncio dos carrascos chilenos, a obstrução de investigações e a ocultação de acusados como Ray Elliots Davis, ex-chefe da missão militar dos EUA durante o governo Allende, cuja extradição foi reiteradamente cobrada pelo ministro Zepeda. A denúncia desta cumplicidade é o grande mérito político da sentença do magistrado chileno.
No submundo de esbirros e mastins
Os condenados são o ex-coronel Pedro Octavio Espinoza Bravo, ex-chefe de operações e segundo homem na hierarquia da DINA depois de Manuel “Mamo” Contreras, e Rafael González Berdugo, funcionário civil da Força Aérea chilena, aposentado. Os 200 mil dólares que cada um deverá pagar como reparação material a Joyce Horman e Janis Teruggi – respectivamente, viúva e irmã dos dois norte-americanos – devem ser entendidos como indenização simbólica, que nem de longe paga o sofrimento e as três décadas de luta obstinada das duas mulheres contra a impunidade.
Espinoza Bravo, condenado à revelia pela Justiça francesa à prisão perpétua, cumpre penas acumuladas na penitenciária Punta Peuco desde 2004, onde a nova condenação lhe exigiria a tal sobrevida não obsequiada aos mortais, pois está com 82 anos de idade. Além da eliminação dos norte-americanos, figuram em seu prontuário a famigerada “Caravana da Morte” – “La Caravana de la muerte” – desencadeada por ordem pessoal de Pinochet, em outubro de 1973, com o selvagem assassinato de mais de 70 simpatizantes allendistas na região do Atacama, sumariamente fuzilados ou degolados com o corvo, a temível adaga curva de origem espanhola; em seguida enterrados em valas clandestinas no deserto, onde, hoje ainda, esposas, filhas e sobrinhas dos desaparecidos – conhecidas como “as colecionadoras de ossos” – revolvem a areia em busca de alguma vértebra, um dente que seja, de seus entes queridos. Suas vítimas mais célebres foram o ex-chanceler de Salvador Allende, Orlando Letelier e sua secretária, e o ex-comandante-em-chefe do exército, general Carlos Prats e sua esposa, assassinados respectivamente em Washington e Buenos Aires, entre 1974 e 1976, com dois atentados terroristas, planejados e coordenados por Espinoza Bravo, um dos mais ferozes esbirros do Terrorismo de Estado.
Mitômano, cínico e macabro, Rafael Agustín González Berdugo, o segundo condenado e mastim da narrativa, qualifica-se como personagem-título para um “Desaparecido 2”, pois ilustra a espantosa riqueza de detalhes que emerge do Caso Horman & Teruggi, que durante a ditadura não podiam ser investigados.
Apodado de “Svastiquita” (suastiquinha) devido às suas origens no Partido Nazista chileno das décadas de 1950 e 1960, anos atrás o ex-agente civil da Inteligência Militar percebeu a milenar ironia latina – “nomen est omen” – criando-lhe problemas, pois carregava sua sina assassina no próprio sobrenome – “Verdugo” -, no qual, rapidamente, trocou o v por um b, como se “Berdugo” fosse capaz de afugentar os seus e os fantasmas de suas vítimas.
Personagem considerado repulsivo até mesmo pela Força Aérea – à qual serviu como agente com diploma de “excelência”, mas em cujos quartéis foi rejeitado como preso, por isso enviado à penitenciária de segurança máxima de Punta Peuco, à companhia dos criminosos de lesa-humanidade, como “Mamo” Contreras e seu comando da DINA – V(B)erdugo participou do interrogatório e da sessão de tortura de Charles Horman, em setembro de 1973, uma das sequências mais dramátidas do filme de Costa Gavras.
Em março de 1973, recebeu ordens do ministro da Defesa, Patricio Carvajal, para apresentar-se a James Anderson, vice-cônsul dos EUA em Santiago, e acompanhá-lo ao Cemitério Geral com a finalidade de tentar encontrar o corpo de Horman e repatriá-lo a Nova York – cova clandestina que V(B)erdugo localizou sem pestanejar, porque havia acompanhado o enterro clandestino.
Em 1975, apresentando-se como “desertor” da ditadura, o agente refugiu-se na embaixada da Itália, em Santiago, onde permaneceu até setembro de 1977; período em que a embaixada acolheu centenas de refugiados autênticos, cujas fileiras, suspeita-se, o falso desertor tinha a missão de infiltrar.
Durante sua permanência na representação italiana, V(B)erdugo concedeu entrevista ao “Washington Post”, admitindo sua presença no ministério da Defesa, onde Horman foi submetido ao seu primeiro interrogatório, comandado pelo general Augusto Lutz, então chefe da inteligência militar, acompanhado, entre outros, por um norte-americano. Aquele interrogatório teria selado a sorte do jornalista norte-americano, segundo o agente, que ouviu o general dizer que “Horman sabia demais, tinha que desaparecer”. Na mesma embaixada, em 1977, V(B)erdugo foi interrogado pela CIA, à qual afirmou que “fui o único oficial da força aérea que participou da tomada do palácio La Moneda em 11 de setembro de 1973”; afirmação desmentida pela Força Aérea em 2003, cuja versão pretende que o agente só fora contratado em 1974.
Cínico ao extremo, em 1980, ainda no papel de “dissidente” da ditadura, V(B)erdugo viajou incólume a Nova York, para “tomar chá” com Ed Horman, pai de Charles, encarnado por Jack Lemmon no filme de Costa Gavras.
Durante mais de uma década, o pseudo-desertor sumiu do mapa, regressando ao Chile após o fim da ditadura, apresentando-se ao governo democrático da Concertación como “exonerado político” e cobrando uma pensão de “reparação” que a Caixa de Previdência da Defesa Nacional lhe paga há 30 anos.
Episódio que hoje causa espanto, foi o convite de Michelle Bachelet, então ministra da Defesa no governo Ricardo Lagos, feito a V(B)erdugo para reintegrar-se ao que ela chamou de “Familia Aérea”, junto com ex-companheiros de armas, estes, sim, vítimas do terror de Pinochet, como seu próprio pai, o Brig. Alberto Bachelet. O convite foi feito em dezembro de 2003, o mesmo mês em que o mastim foi processado pela primeira vez pelo juiz Juan Guzmán, antecessor de Zepeda no Caso Horman-Teruggi.
Horman, a CIA e Ray Elliots Davis, escondido no Chile
O jornalista e seu amigo estudante não foram os únicos norte-americanos presos pelos golpistas chilenos, No campo de concentração do Estádio Nacional chegaram a ser registrados 24 de seus conterrâneos, incluindo homens, mulheres, professores universitários, escritores e dois padres da ordem Maryknoll. Já de Horman e Teruggi não há registros, detalhe que aponta ao fuzilamento premeditado.
Segundo a acepção alimentada durante mais de 40 anos, o fuzilamento de Horman deveu-se à sua simpatia pelo governo Allende. Perante o juiz Zepeda, González- V(B)erdugo desmentiu essa versão, advertindo que o jornalista acumulava provas da conspiração posta em marcha pela CIA no Chile, e que, por isso, foi morto, se não por ordem, com a anuência norte-americana.
A justificativa da sentença de 276 páginas reconstrói a última semana de Horman. Dias antes do golpe, o norte-americano deslocara-se a Valparaíso, em missão investigativa sobre a Operação Unitas, manobra naval conjunta das marinhas dos EUA e do Chile, que lhe prenunciava uma intervenção direta norte-americana. E, de fato, o golpe contra Salvador Allende foi iniciado em Valparaíso.
Em seu hotel, na vizinha Viña del Mar, Horman topou com robusto grupo de civis americanos e foi pressionado pelo capitão Ray Elliots Davis, adido militar-chefe na embaixada dos EUA, para acompanhá-lo em seu carro até Santiago, onde foi deixado em sua casa, na Av. Vicuña Mackenna, mas de onde tinha desaparecido na manhã do dia seguinte, 11 de setembro, quando sua esposa, Joyce, encontrou a casa revirada e destruída.
Horman também tinha juntado provas sobre o atentado que em 1970 matou o general constitucionalista René Schneider, articulado por Henry Kissinger, mas executado pelo grupo do general Roberto Viaux, considerado “porralouca” em Washington. É muito provável que Ray Elliots Davis acumulava funções como adiodo e chefe da rede de agentes da CIA no Chile e que fosse o norte-americano presente ao interrogatório de Horman no ministério da Defesa.
Nos EUA, a viúva Joyce Horman lutou perante a Justiça pelo procesamento de Ray Elliots Davis e não teve êxito. Constituindo como sua advogada no Chile Fabiola Letelier del Solar, irmã do chanceler Orlando Letelier, assassinado em Washington, a experiente jurista e aguerrida defensora dos DDHH peticionou a extradição do militar norte-americano, pedido reiterado pelo ministro Jorge Zepeda e formalizado em 2012 pela Corte Suprema chilena.
Dos EUA, a Justiça chilena só obteve o arrogante silêncio da indiferença.
De Davis sabia-se que sofria de Alzheimer e estava internado em um ancionato da Florida. Mas então, em outubro de 2013, o New York Times detonou a bomba: no dia 30 de abril daquele ano, Davis dera seu último suspiro, mas em um ancionato 5 estrelas da comuna de Providencia, em Santiago.
Ray Elliots Davis morreu, zombeteiro, sob o nariz da Justiça chilena – sem acobertamento dos EUA?
Ante a insistência do magistrado Zepeda, que já viu cavalo falar e tem boas razões para desconfiar de atestados de óbito “fakes”, a embaixada dos EUA em Santiago respondeu cinicamente que “as autoridades judiciais norte-americanas não emitem pronunciamientos sobre a morte de cidadãos dos Estados Unidos” – ponto.