Desde os relacionamentos que geram uma gravidez até o momento do parto, muitas questões sociais se entrelaçam, na maioria das vezes revelando as mais diversas faces do racismo brasileiro
Por Jarid Arraes* – População Negra e Saúde
Ana Beatriz da Silva, conhecida como Bia Onça, geógrafa, é mãe do pequeno Malcolm Akins, de quase três anos. O nome do filho, inspirado em um grande ícone da luta negra nos Estados Unidos – Malcolm X – também traz no registro o significado “valente, corajoso”, marcado pelo Akins de origem egípcia. A escolha do nome revela a maternidade politizada e consciente do seu papel transformador, que do próprio nome escolhido para o filho já começa a enfrentar os indícios de uma sociedade racista e eurocêntrica: Onça levou o filho bebê para ser vacinado no posto de saúde do seu bairro, entregou o cartão de vacinação da criança e esperou sua vez de ser chamada. No entanto, foi surpreendida com o deboche da enfermeira, que criticou o nome do menino na frente de todos. Apesar do ato não ter passado em branco, Onça deixa evidente que entendeu o episódio como um caso de racismo – e por isso não se calou.
O racismo, aliás, é um dos temas centrais para mães negras, sejam elas militantes de grupos ativistas ou não. Desde os relacionamentos que geram uma gravidez até o momento do parto, muitas questões sociais se entrelaçam, na maioria das vezes revelando as mais diversas faces do racismo brasileiro. Para as mulheres negras que entram na maternidade cheias de temores, há, de fato, muito com o que se preocupar. A segurança e o bem estar dos seus filhos estão sempre em jogo, não somente por todas as apreensões comuns aos pais, mas também porque a marca do racismo cria obstáculos políticos, sociais e culturais concretos, que podem prejudicar a vida das crianças de forma aguda. A começar pela sua identidade.
A criança que sabe de sua negritude
No Brasil, a cultura da negação racial é dominante e ainda muito presente na mentalidade da população. Por causa da herança racista que se perpetua desde o período da escravidão, os brasileiros ainda compreendem a miscigenação racial como uma forma de negar as diferenças raciais entre as pessoas; por isso, é comum que grupos inteiros se identifiquem como miscigenados, mestiços e misturados, mas não como pessoas negras. Na verdade, a identidade negra parece ser ignorada ao máximo por muitas pessoas, que recorrem a termos como “moreno”, “mulato” ou “cor de jambo”, entre muitos outros que evidenciam a dificuldade em se reconhecer negro.
Desse modo, pode ser complicado construir uma identidade racial segura quando não se possui bases e educação para compreender e discutir as questões raciais. Assim como qualquer outro valor que se deseja ensinar às crianças, o reconhecimento da própria identidade racial e o que isso significa é um dos papéis dos pais e mães que já passaram por processos similares. As crianças negras que crescem em famílias conscientes desses aspectos possuem mais chances de desenvolver uma percepção positiva de si, além de crescerem mais preparadas e fortalecidas contra o racismo.
Daniela da Silva, jornalista e servidora pública, tem uma filha de 8 anos, fruto de um relacionamento com um homem branco. Maria Antônia, sua filha, tem a pele mais clara que a da mãe e o cabelo liso; seria mais uma “morena”, caso não estivesse se desenvolvendo em um lar consciente e bem informado. “A construção da identidade negra foi feita pela minha mãe desde que eu me lembre. Por eu ser negra de pele clara, ela investiu muito para que não houvesse dúvidas em minha cabeça. Faço o mesmo com minha filha, pois além da pele clara, o cabelo é liso e o pai é branco”, explica Silva. “Conversamos, ouvimos música, falo de minha religião (sou de candomblé), não deixo assistir TV aberta, monitoro o que lê e escuta, sempre identificando os aspectos raciais e comentando coisas cotidianas como ‘olha, filha, nesse restaurante, que é caro, quase não tem gente negra’ ou no prédio que moramos, ou no avião. Com prazer, escuto ela responder, às vezes: ‘mas nós estamos aqui, né, mamãe?’”
Maria Antônia já se identifica como negra e convive com referências que fortalecem a sua identidade racial: “Vemos muitos filmes estrangeiros, principalmente americanos. Ela também vê séries e comento com ela ‘olha, essa menina parece você’. Nos EUA, mesmo as latinas se identificam como negras, então alimento essa audiência mais do que a de produções brasileiras, sem nenhuma culpa. Outra coisa que estimulo – a partir da iniciativa dela – é ser fã da Beyoncé, da Rihanna, negras claras como nós”.
Daniela Silva conta que a filha já desejou ter o cabelo crespo igual ao seu, quando era menor, mas depois que passou a conhecer mulheres negras de cabelos lisos, aceitou suas características e agora convive com a admiração que nutre pelos cabelos cacheados. “Outra coisa que ela ama é tomar sol, banho de mar, de piscina, para ficar comparando nosso tom de pele. ‘Estou quase igual a você, Mamãe’. Como temos uma relação amorosa e eu estou num processo contínuo de empoderamento, acho completamente natural e desejável que ela queira se parecer cada vez mais comigo”, declara.
Para mães como Mara Evaristo, a preocupação de fortalecer seus filhos contra o racismo é parte indissociável da identidade que as crianças constroem. Evaristo é Coordenadora do Núcleo de Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e Conselheira Municipal de promoção da Igualdade Racial e, por isso, já é a própria referência de engajamento político que os filhos podem olhar para se espelhar. No entanto, conta que apesar de ter inserido os filhos na agenda negra da cidade, possibilitando que entrassem em contato com manifestações culturais negras e políticas afirmativas, o conhecimento das crianças a respeito do racismo veio à medida que foram percebendo que recebiam tratamento diferente a depender da situação. “Essa fase sempre é dolorosa em qualquer idade”, lamenta Evaristo.
“Junto com a identificação do racismo, busquei possibilitar que aprendessem sobre a sua origem, sobre a humanidade e a história dos negros no Brasil. Hoje, filho e filha sabem que descendem de um povo guerreiro, de grande conhecimento e que lutou e luta muito para não se submeter a opressão”, conta. “Sabem também que a luta permanece porque compreendem o que o racismo é capaz de fazer com um continente como a África. E digo mais, sabem o que eu não sabia na idade deles, que o racismo é um monstro camaleão, com a capacidade de nos fazer assimilar sua genética rapidamente”.
A valorização dos símbolos de origem africana e a riqueza de material educativo que fale da África, por exemplo, são presentes na educação que essas mães oferecem aos seus filhos. Bia Onça fala com orgulho da atividades que desenvolve com Malcolm Akins e se alegra ao afirmar que o seu filho já demonstra se compreender como negro. “O nome dele já diz sua origem e da onde ele vem. E a todo o momento tentamos afirmar e reafirmar sua negritude, como estar sempre entre seus familiares e na creche, onde pontuamos sempre a sua origem e o que pensamos sobre o papel da criança negra neste espaço”, explica. “Tento a todo momento apresentar coisas da nossa corporeidade negra a ele e sinto que ele gosta e se identifica, como músicas, danças, livros e bonecas negras. Penso que devo, como responsável, apresentar todas as identidades a ele, todas possíveis, mas reforço a ele sua identidade negra”.
E por falar em boneca, felizmente o esforço pela concretização de uma educação plural e diversificada também levanta a conscientização sobre questões de gênero e o combate ao machismo. Bia Onça relata: “Ele chegou em casa apontando o que era coisa de menina, conversamos com ele e pontuamos na escola. E toda vez que ele vem com essa, ‘mamãe ou papai, é de menina?’, nós pontuamos que não é de menina e que é de menina e de menino. É uma coisa que deve ser trabalhada diariamente sempre. Para se ter uma ideia, ele vê objetos rosas e já associa a meninas. A escola tem infelizmente esse desserviço sobre a questão de gênero com os nossos pequenos e nós temos que pontuar”.
Algo compartilhado também por Evaristo: “Em relação às questões de gênero, os desafios também são grandes. Sempre houve a necessidade de destacar que a agenda feminista, até bem pouco tempo atrás, pouco atendia ou respondia às demandas das mulheres negras. Vejo o movimento crescente e atual do feminismo negro com urgente e extremamente saudável, porque tem nos representado, tem nos dado voz e isso terá um impacto forte e positivo nas infâncias negras”.
Violência obstétrica e o machismo racista
Parte da vivência da criança negra consciente é de observações na própria família e de tomar conhecimento da experiência de vida dos parentes ao seu redor. O racismo e o machismo, portanto, estão presentes nas histórias contadas para a criança, que infelizmente percebe que essas histórias de violência começam até mesmo antes do seu nascimento.
Bia Onça conta que sua experiência com as escolhas pessoais e profissionais na maternidade foram tardias: “Fiquei grávida com 37 anos de idade, depois de 5 anos de relacionamento e de comum acordo com meu companheiro; logo, foi uma gravidez feliz, sem problemas de saúde, familiares e amigos por perto dando maior força, bebê saudável. Tivemos alguns problemas já nas últimas semanas com o parto, que seria normal, já que tive um pré-natal perfeito, (fiz dois pré-natais) no hospital público (de referência no Rio de Janeiro, para meu caso que tenho miomas) e no hospital particular, que foi mediano para ruim”.
No final da gravidez, o hospital público que a atendeu entrou em obra. “Minha obstetra, que sabia que eu tinha plano de saúde, me colocou de forma sincera as dificuldades que seria ter o filho naquelas condições naquele hospital e a mesma me indicou possibilidades de hospitais particulares com 34 semanas. E aí conseguimos um obstetra que fizesse meu parto, porém, em condições de datas fechadas, porque era carnaval e tinha o meu receio dos meus miomas e, no desespero, fechamos e tivemos nosso filho de cesárea”.
Sobre racismo, Bia Onça relata que passou por diversas situações durante sua gravidez. “Como sou magra e não apresentei muita barriga, dificilmente alguém me dava lugar no metrô, no ônibus, a ponto de um dia uma senhora dizer que eu aguentaria ficar de pé no metrô. Perguntei o porquê e ela disse que eu era negra e que gente da minha raça aguenta. Eu discuti e criei um constrangimento no metrô, penso que talvez ela não faça mais isso. E mais racismo; quando fui fazer uma das últimas ultrassonografias, num centro médico famoso e caro, aconteceu que eu e meu companheiro sentimos o constrangimento no atendimento e quando o médico nos chamou e começou a ultra, ele começou a questionar o preço e que talvez nós não tivéssemos dinheiro para pagar uma ultrassonografia (super moderna) que o centro médico oferecia”.
Ainda pior do que essa situação, foi o que Bia Onça passou na hora de ter seu filho. “Quando fui me internar no hospital particular, o atendimento do hospital, eu com meu companheiro, na hora de preencher a ficha a atendente pegou minha identidade e foi anotando, não perguntou nada que estava na ficha. Eu, num estado de apreensão para ter a criança, nem me liguei, mas meu companheiro ligado percebeu que ela na parte de colocar minha profissão colocou ‘do lar’. Daí, meu esposo questionou e pediu que a mesma fizesse outra ficha e questionamos se ela sempre faz isto com as mulheres negras que entravam no hospital. E na hora do parto, que foi tranquilo, até que a enfermeira no final da cesárea olha para minha cara (eu deitada aberta) e diz a seguinte frase: ‘É, Ana Beatriz, ano que vem você vai estar aqui de novo?’. Eu, só com meu olhar fulminante, respondi que não e outro enfermeiro viu a situação e disse: ‘Ela está com cara de que não volta no ano que vem, não, e de que não está gostando da sua pergunta’. Nós, mulheres negras, infelizmente vivemos essa situação”.
A marca da violência obstétrica e o tratamento racista dado às mulheres negras nos hospitais, sejam eles públicos ou particulares, é conhecimento comum das mães negras, que não poupam exemplos e reivindicações. A recente campanha do Ministério da Saúde, SUS Sem Racismo, trouxe algumas estatísticas oficiais que embasam os argumentos das mulheres negras: elas são atendidas, em média, por menos tempo do que as mulheres brancas e são 60% das vítimas de mortalidade materna no Brasil. Na pesquisa, ao contrário das 46,2% das mulheres brancas que foram acompanhadas durante o parto, apenas 27% das mulheres negras receberam o mesmo acompanhamento e, além disso, somente 62,5% das mulheres negras foram orientadas sobre a importância do aleitamento materno, contra 77% das mulheres brancas que receberam a mesma orientação.
“A mulher negra mais bem informada que engravida teme não ser bem atendida. Quando engravidei, já tinha conhecimento das estatísticas e dados sobre atendimento diferenciado, sobre a negação de anestesia, sobre a maior taxa de mortalidade. Tomei a decisão de – mesmo tendo o dinheiro do parto – ter minha filha no SUS por que eu já queria que fosse um parto normal e por que eu tenho esse direito, pago impostos, vivo num país que se diz democrático e se fosse preciso exigiria isso também”, conta Daniela da Silva.
“Eu tive a sorte pelo médico que acompanhou minha gestação e realizou o parto poder ser definido com dois adjetivos: profissional e ético” – afirma Mara Evaristo – “mas essa não é a regra e digo isso por ter ouvido narrativas de amigas, conhecidas negras e brancas que viveram a gravidez na mesma época que eu ou me contaram de suas vivências. Saber quem será o médico no dia do parto, como será a cirurgia, de que forma o corpo se transformará, ser apresentada à equipe de enfermeiros e anestesistas, conhecer a dinâmica do hospital, ter apoio nos momento de contração, fazer o enxoval, ter boa alimentação e ouvir do companheiro, dos amigos e da família que será um bebê lindo porque terá os seus olhos, a sua cor, o seu cabelo. Esse deveria ser o processo natural de qualquer gravidez, mas não é”.
Para além das estatísticas oficiais, dados do governo e argumentos das militantes, a experiência da mulher negra com sua gestação e seu parto pode fazer grande diferença na sua relação com seus filhos e com a maternidade. Por outro lado, a resiliência ainda é um dos atributos presentes nessa equação social. A ideia do sexo frágil, de fato, nunca foi um estereótipo que coube às mulheres negras e, em muitos casos, não se trata de uma escolha pela força, mas da única alternativa para garantir uma vida digna para si e para seus filhos.
Maternidade negra: uma constante transformação do mundo
A criança que conhece a história dos seus pais e reconhece a luta contra o racismo e por uma vida melhor também pode demonstrar, além da compreensão aguçada a respeito das questões sociais, um senso de proteção e de se sentir pertencido a um núcleo familiar repleto de cooperação e amor. Por isso, a construção da identidade e a referência da negritude fazem tanta diferença na forma como essa criança se relaciona com o mundo. Silva compartilha um exemplo: “Minha filha não sofre discriminação diretamente porque para a maioria dos brasileiros ela não é negra, é o que chamam de morena. Mas, um dia fui buscá-la na escola e uma menina falou meio descrente, pra mim: “Você é a mãe dela?” Minha filha veio na mesma hora e me abraçou: “É a minha mãe, sim! Por quê?” A menininha não falou mais nada. Foi engraçado. Fiquei orgulhosa da leoazinha. Mas, já contei para ela episódios em que eu fui discriminada, especialmente quando ela era bebê porque ela era muito clarinha… As pessoas pensavam que eu era a babá em algumas situações e até prestei queixa uma vez de uma mulher que me atendeu mal no serviço médico por achar que eu era babá”.
Mães como Daniela Silva fazem um papel de transformação social que, infelizmente, falta como prática na sociedade. “Maria participa de reuniões do coletivo de mulheres negras que integro, o Pretas Candangas, onde tratamos do assunto. Ela fica jogando, ouvindo música, mas também ouve [os debates] quando quer. Já foi comigo ao Festival Latinidades, reuniões da AMNB, da Cojira, já viu entrevistas minhas falando de preconceito e discriminação. É um universo que ainda não a magoou frontalmente, mas ela sabe que é doloroso para a mãe”. Entre ondas conservadoras que pregam a preservação da família, há poucos exemplos como esse. Sua prática e seu papel de mãe não se encaixam em discursos hipócritas, porque produzem mudança social significativa e preparam pessoas como sua filha, Maria Antônia, que se tornam seres humanos capazes de construir valores melhores, de respeito e habilidade para viver em comunidade com toda a diversidade humana. “Recentemente, contei que a Mirian França foi presa por ser pobre e negra, mesmo sem que se apurasse corretamente a participação dela no episódio do Ceará”, conta Silva. “E ela [Maria Antônia] disse: “quem prendeu ela é que devia ser preso!’”.
E o exemplo é a melhor forma de ensinar. Mara Evaristo enfrentou o racismo que os filhos sofreram há cerca de 13 anos em um episódio de discriminação que ocorreu na escola e deixou frutos belíssimos, apesar da experiência dolorosa. “Buscamos o diálogo porque se tratavam de crianças; e junto com professoras e a direção desenvolvemos um projeto, que no primeiro ano durou dois meses. No segundo ano envolveu todo as turmas e no terceiro ano entrou para o PPP da instituição, ou seja, integrou todo o currículo alterando material pedagógico, dinâmicas cotidianas, relação com funcionários, os projetos realizados por todos os professores. Foi um período de dor, que nos tornou mais fortes e cientes dos desafios que uma família negra enfrentará na criação dos filhos”.
Os impactos de sua atitude permanecem vivos na subjetividade dos seus filhos, nas outras crianças que foram atingidas pelas intervenções e também em si mesma, como um incrível exemplo do potencial abrangente da maternidade negra. “Essa primeira experiência vivida em família, me fez estudar e desenvolver uma oficina de formação para os professores nomeada “Sonhos em Papel – Identidades em Construção”. Nessa oficina, eu apresentava pesquisas que mostravam como a criança pequena poderia construir uma identidade positiva e de que forma a educação poderia contribuir para isso. Esse momento definiu meu campo de atuação profissional até hoje”.
A receita desse potencial, felizmente, não é restrita. Silva aconselha outras mães que desejem auxiliar suas crianças no fortalecimento de suas identidades negras, sempre levando em consideração a responsabilidade que devem possuir para com as outras pessoas. “O principal na relação de mãe e filha é construir uma relação de sinceridade com as dificuldades, sejam financeiras, raciais, de gênero ou coisas do cotidiano. Mostrar que a vida é uma luta e que a da gente está muito boa comparando com a de outras pessoas. Falo a ela que a maioria das meninas negras não têm acesso ao que ela tem e que isso só acontece por que a mãe dela teve oportunidade, aproveitou e que a ama e por isso trabalha muito, para que ela tenha oportunidades também”.
“Em relação à religião, respeito que ela possa fazer outra escolha e não a obrigo a participar de tudo do candomblé. Ela não gosta de alguns rituais e adora outros, então levo nos que ela gosta. Quando vai, pergunta muito! Todos têm paciência no meu terreiro, no do meu avô – onde também vamos. E um dia feliz em minha vida foi quando ela pediu para participar do xirê pela primeira vez e vestir a roupa. Mas, ela chama de ‘sua religião, mamãe’ e sempre pede coisas a Deus, mas se precisar, acende velas e me pergunta a quem pedir e aí eu digo direitinho. Quando fica doente, pede que uma guia minha que faz descarrego cuide dela também. Fé, amor, autoestima e orgulho da ancestralidade… Prioridades aqui em casa”, conclui.
Para Evaristo, também é fundamental lembrar de todas as outras mulheres negras e mães que chegaram a dar suas vidas para que um texto como esse pudesse hoje existir. “Responder a essas perguntas me fez reviver dores e alegrias. Ser mãe é o melhor e maior presente que a vida me deu. Lembro do olhar das crianças, desde o primeiro dia na maternidade. Os olhos redondinhos do Luiz. Os olhos puxadinhos da Tainá. Os choros manhosos, os cheiros, as primeiras risadas. Os primeiros passos. O primeiro dia na escola. O lustra-móveis no chão para ajudar na limpeza da casa – foi difícil remover, mas rendeu boas risadas. As pipocas com filme, as pipas no ar, os sustos na avó. Compartilhar pequenos segredos. Correr, cantar, gritar, pular, dançar, brincar com os amigos. Eu sou grata a vida porque pude viver tudo isso”.
A verdade, no entanto, é que todas essas experiências não são suficientes para tranquilizar o coração. “O jornal, a mídia mostram cotidianamente que o Brasil é um país racista, sexista e intolerante, onde matar negros, mulheres e homossexuais continua sendo rotina. Sou solidária com todas as mães que perderam seus filhos e filhas tragicamente. Sou solidária aos filhos que perderam suas mães drasticamente. Eu sinto dor pelos filhos da Cláudia Silva Ferreira. Eu sinto dor pelos filhos cujas mães morreram nesse Brasil lutando por dignidade. Ainda assim, precisamos continuar. 2015 é Década dos Afrodescendentes e o ano da Marcha das Mulheres Negras. Que as nossas lutas cotidianas nos fortaleçam, que nos aproximem e que nos ombreiem de tal forma que vida plena e dignidade sejam pilares para nossos filhos”, finaliza Evaristo.
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Foto: Bia Onça e seu filho, Malcolm Akins