Passaram-se 13 anos desde a chegada dos primeiros detidos ao campo prisional da base naval norte-americana em Guantánamo. É tempo de mais. E 127 pessoas continuam ali presas, a maioria sem acusações formuladas nem julgamento, oito delas desde o primeiro dia em que a prisão abriu as portas, tantos submetidos a tortura e desaparecimentos forçados. Os que chegaram a julgamento enfrentaram comissões militares que não respeitam os padrões internacionais de julgamento justo. Guantánamo ficará para sempre associada às mais brutais violações de direitos humanos.
“Nunca deixaremos de defender os direitos humanos das pessoas, seja no nosso país ou em outros. Isso faz parte de quem somos como povo e daquilo que defendemos como nação” – Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, 9 de dezembro de 2014
13 dias foi muito tempo. Ao 13º dia de detenções na base naval dos Estados Unidos em Guantánamo já estavam no local 158 detidos. Alguns destes homens continuam ali ainda hoje.
13 meses de detenções em Guantánamo já eram demais. A essa altura, em fevereiro de 2003, o então secretário da Defesa norte-americano Donald Rumsfeld tinha autorizado o recurso a técnicas de interrogatório que violam a proibição internacional da tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
E 13 anos é um ultraje aos direitos humanos: são 13 anos de pessoas detidas ano após ano, sem lhes serem atribuídas quaisquer acusações nem serem julgadas em tribunal. Tortura e maus-tratos, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, recurso a força excessiva, alimentação forçada, uma mão cheia de processos conduzidos por um sistema de comissões militares que não respeitam os padrões internacionais de julgamento justo.
Quando terminou o segundo mandato presidencial de George W. Bush, em 20 de janeiro de 2009, ainda estavam 245 detidos na base naval norte-americana. Dois dias depois, o então recém-empossado Presidente Barack Obama comprometeu-se a fechar Guantánamo “prontamente”, na pior das hipóteses até 22 de janeiro de 2010.
Mas em janeiro de 2015, agora, permanecem 127 homens detidos em Guantánamo, a maioria deles sem acusações nem julgamento. Quase metade foram autorizados a serem transferidos para fora da base, a maior parte deles desde janeiro de 2010, até mesmo antes.
A razão para a resolução mais imediata destas detenções estar agora tão longe, deve-se ao impasse político que trava essa questão, por conta do Congresso norte-americano ter se movido contra o encerramento da prisão militar e a Administração de Obama não ter tido vontade ou não ter sido capaz de encontrar uma solução.
Porém, à luz da lei internacional, as legislações e políticas internas não podem ser invocadas para justificar o não cumprimento das obrigações assumidas pelos Estados nos tratados. É inaceitável que um setor do governo responsabilize outro por não-cumprimento em matéria de direitos humanos. A lei internacional exige que sejam encontradas soluções, não desculpas.
Na origem desta enorme injustiça está a falha de governança norte-americana – de todos os três poderes do governo (legislativo, executivo e judicial) – em tratar as detenções de Guantánamo como uma questão de direitos humanos.
E ao chegar a 12 de janeiro de 2015 – o 4.750º dia na vida do campo prisional de tão má-fama –, os Estados Unidos continuam a não tratar estas detenções num enquadramento de direitos humanos.
Três repreensões num só ano por “detenções administrativas”
Só no ano passado, três organismos de monitoramento e controle da aplicação dos tratados de direitos humanos das Nações Unidas instaram à resolução das detenções de Guantánamo.
Em abril, ao fazer a revisão dos Estados Unidos à luz do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ratificado pelos Estados Unidos em 1992), o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas urgiu o país a “pôr fim ao recurso da detenção administrativa sem acusações formuladas nem julgamento” em Guantánamo. E instou mesmo as autoridades norte-americanas a porem em marcha os devidos processos judiciais contra os detidos em Guantánamo no sistema de justiça criminal comum, e não nas comissões militares que não cumprem os padrões internacionais de julgamento justo.
Apenas alguns meses mais tarde, em agosto, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial apontou aos Estados Unidos que deviam “acabar com o sistema de detenções administrativas sem acusações nem julgamentos, e garantir o encerramento das instalações de detenção em Guantánamo Bay sem mais demoras”. Evocando a proibição da discriminação, aquele organismo das Nações Unidas instou os Estados Unidos a “garantir o direito dos detidos a um julgamento justo, em cumprimento dos padrões internacionais de direitos humanos”, e a “libertar imediatamente” qualquer detido em Guantánamo de nada acusado nem julgado em tribunal.
Finalmente, em novembro, o Comité contra a Tortura veio reiterar aos Estados Unidos o que o organismo já dissera ao país oito anos antes, em 2006, sobre as detenções de Guantánamo: que “a detenção indefinida constitui per se uma violação” da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes (UNCAT, tratado ratificado pelos Estados Unidos em 1994).
Este comitê das Nações Unidas expressou preocupações sobre “o efeito acumulado que as condições de detenção e de tratamento em Guantánamo têm vindo a infligir na saúde psicológica dos detidos”, e repetiu o apelo aos Estados Unidos para “acabarem com o recurso à detenção por tempo indefinido sem acusações nem julgamento”.
As violações das leis internacionais de direitos humanos ficarão para sempre associadas às detenções de Guantánamo. Os detidos naquela base naval norte-americana foram submetidos a tortura e a outros maus-tratos na prisão ou antes de ali chegarem.
Tanto em Guantánamo como em outros locais ligados ao programa de detenções norte-americano houve casos de detidos em regime de incomunicabilidade prolongada assim como de desaparecimentos forçados.
Ao longo de anos consecutivos, centenas de detidos em Guantánamo viram ser-lhes negado o direito a obterem a decisão de um juiz sobre a ilegalidade das suas detenções. Os poucos que foram formalmente acusados durante os anos da Administração Bush não chegaram a ser apresentados a nenhum tribunal criminal comum norte-americano; antes, para estes processos, as autoridades inventaram um sistema ad hoc de comissões militares, onde foram aplicadas regras processuais que ficam aquém dos padrões internacionais de julgamento justo.
E a Administração de Obama manteve estas comissões militares – apenas um detido de Guantánamo foi transferido para a alçada do sistema de justiça criminal comum, para ser julgado num tribunal federal norte-americano. Isso foi há cinco anos. Aliás, as autoridades norte-americanas mantêm a intenção de pedir sentenças de morte contra seis detidos, caso estes sejam condenados nos julgamentos por comissões militares que estão prestes a serem realizadas. A imposição da pena de morte na sequência de um julgamento injusto constitui uma clara violação do direito à vida, à luz da lei internacional.
Um buraco que os norte-americanos cavaram para si mesmos
Há que apontar que houve um fluxo recente de transferências de detidos para fora de Guantánamo. Um total de 28 detidos foram transferidos da base naval durante 2014, seguindo-se a outros 11 que tinham sido transferidos em 2013. Nestas transferências recentes estão dois homens que foram enviados para a Eslováquia, três para a Geórgia, cinco para o Cazaquistão e seis para o Uruguai – os últimos países que acorreram a ajudar os Estados Unidos a sairem do buraco que o país cavou para si mesmo.
Os Estados Unidos continuam a tentar persuadir outros países a fazerem aquilo que eles – que criaram o campo prisional de Guantánamo – se recusam a fazer: aceitar detidos que as autoridades norte-americanas decidiram que não querem manter presos mas que também não podem repatriar imediatamente, por uma ou outra razão.
O país também permanece do lado errado das suas obrigações internacionais, em se responsabilizar totalmente pelas violações de direitos humanos cometidas na base naval e em outros locais ligados ao programa de detenções de Guantánamo.
Repita-se para que fique absolutamente claro: o campo prisional de Guantánamo tem sido cenário de múltiplas violações de direitos humanos ao longo dos anos, incluindo desaparecimentos forçados. Ainda no mês passado, a Comissão de Serviços Secretos do Senado norte-americano confirmou, com a divulgação pública do sumário de um relatório sobre o programa de detenções da Central Intelligence Agency (CIA), que Guantánamo foi usada pela agência de serviços secretos para manter pessoas detidas em segredo entre 2003 e 2004.
Pelo menos 28 dos 127 homens que permanecem detidos em Guantánamo foram capturados no âmbito daquele programa de detenções da CIA, e depois levados para a base naval, submetidos a desaparecimento forçado por períodos entre os 40 dias e os quatro anos e meio sob tutela da agência. Alguns deles foram torturados durante interrogatórios feitos enquanto permaneceram naquele programa ilegal.
A tortura e os desaparecimentos forçados constituem crimes consagrados na lei internacional. Os Estados Unidos continuam a desrespeitar gravemente as suas obrigações de direitos humanos ao não conseguirem assegurar o conhecimento total da verdade, assim como a compensação das vítimas e a responsabilização por aqueles crimes.
Além de pôr fim às detenções em Guantánamo de forma absolutamente concordante com a lei internacional de direitos humanos, e de fechar o campo prisional, os Estados Unidos têm de garantir que serão feitas investigações imparciais e minuciosas a todas as alegações de violações de direitos humanos. Têm também de levar à justiça os responsáveis por essas violações de direitos humanos e garantir reais compensações a todos aqueles que sofreram com aquelas violações.
Destaque: Spc. Kylene Conolon with 339th Military Police Company provides detainees with water as they arrive to Camp X-Ray, Feb. 11, 2002. Camp X-Ray is the holding facility for detainees at Naval Base Guantanamo Bay, Cuba, during Operation Enduring Freedom. (U.S. Marine photo by Sgt. Diana Ruiz) (Released 020401 by Terry Mitchell, OSDPA).