No apagar das luzes de 2014, o Supremo Tribunal Federal concedeu uma liminar à associação que representa as incorporadoras imobiliárias suspendendo a divulgação da “lista suja” do trabalho escravo, conforme este blog trouxe à público há uma semana.
O cadastro, que existe desde novembro de 2003, é um dos principais instrumentos no combate a esse crime no Brasil, considerado por agências das Nações Unidas e por governos como os Estados Unidos e a Alemanha, referência nessa área.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) questiona, há anos, a “lista suja” no STF, utilizando-se do mesmo instrumento, uma ação direta de inconstitucionalidade. Mas nunca teve sucesso. Em menos de uma semana, o lobby das incorporadoras entrou com a ação e convenceu o ministro Ricardo Lewandowski, responsável pelo plantão na Suprema Corte, que derrubou provisoriamente a lista até o julgamento do mérito. Com isso, um nova atualização da relação, que estava para ser divulgada no dia 30 de dezembro foi bloqueada.
Como comentou um parlamentar da oposição com quem conversei ontem, “entra escândalo, sai escândalo, e o cimento continua flanado no Brasil”.
O cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo nada mais é do que uma base de dados demonstrando os casos em que o poder público caracterizou trabalho análogo ao de escravo – empregadores que, inclusive, tiveram direito à defesa administrativa. Os nomes permanecem na relação por dois anos, período durante o qual o empregador deve fazer as correções necessárias para que o problema não volte a acontecer. Garante transparência.
O interessante é que o cadastro não obriga a nada: não diz que devem ser suspensos negócios, nem transforma os relacionados em párias. Apenas dá informação. Isso possibilita que as empresas desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa. Ou não. E o governo tem o dever de nos garantir esse tipo de instrumento de transparência.
Transparência é fundamental para que o capitalismo funcione a contento. Se uma empresa esconde os passivos trabalhistas, sociais e ambientais que carrega, sonega informação relevante que deveria ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial na hora de fazer negócios.
Transparência faz parte da regra do jogo. E quem burla as regras pode até conclamar aos quatro ventos que ama o mercado mas, na verdade, opera um capitalismo self-service. O que é bom, a gente pega. O que é ruim, deixamos para os outros.
Números da Secretaria Nacional de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, setor responsável pela fiscalização do trabalho escravo, mostram que a incidência de empresas do setor da construção civil em casos de trabalho escravo tem aumentado. Em 2010, os resgatados na construção civil representaram 3,3% do total; em 2011, 3,4%; em 2012, 13,6%; em 2013, 30,6%. Foram 86 resgatados, em 2010, e 827, em 2013. Os números de 2014 ainda não estão totalizados.
Números da Comissão Pastoral da Terra, que possui uma contabilidade paralela, mostra a mesma curva de tendência: em 2010, 3,8% do total; em 2011, 13,4%; em 2012, 17,8%; em 2013, 34,4%. Partiu de 117 resgatados (2010) para 774 (2013).
Quem preside a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que moveu a ação contra a “lista suja” é um representante da MRV Engenharia – empresa que foi responsabilizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego por explorar trabalho análogo ao de escravo em cinco ocasiões diferentes. Por conta de dois dos flagrantes, a MRV chegou a ser incluída na “lista suja”, mas liminares na Justiça impediram que a construtora continuasse figurando nela.
Em uma das vezes em que foi incluída na “lista suja” do trabalho escravo, em 2012, suas ações chegaram a cair 6,18% na Bolsa de Valores de São Paulo, recuperaram-se um pouco e fecharam em queda de 3,86%.
Porque bancos públicos, responsáveis por boa parte do crédito imobiliário, usam a “lista suja” como referência para proteger seus negócios. E empresas que fazem parte do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (uns 30% do PIB) também utilizam a relação como referência.
A Rossi Residential, a Tecnisa, a Brookfield Incorporações, a Cyrela Brazil Realty e a Cury Construtora estão na diretoria da associação, que também representa os interesses da Andrade Gutierrez, Direcional Engenharia, EMCCAMP Residencial, ESSER, Even Construtora e Incorporadora, EZTEC Empreendimentos, Gafisa, HM Engenharia e Construções, JHSF Incorporações, João Fortes Engenharia, Moura Dubeux Engenharia, Odebrecht Realizações Imobiliárias, PDG Realty, Plano & Plano Construções, Rodobens Negócios Imobiliários, Tenda, Trisul, Viver Construtora e Incorporadora, WTorre e Yuni Incorporações.
A importância da lista para o mercado – Por que o mercado usa a lista? Porque o mercado é bom e quer proteger trabalhadores? Não, a questão não é moral, e sim de negócios. E é excelente que seja assim, porque o objetivo de uma empresa é alcançar lucro e não fazer caridade. Percepção de risco ao investimento é a ideia.
O maior impacto real nesses casos não é a perda de consumidores devido a boicotes, porque a memória da população é feito fogo de palha, mas o temor de que investir ou se relacionar com determinada empresa seja arriscado.
Considerando que a) bancos públicos e privados, além de outras companhias, têm atuado para restringir os negócios com quem apresenta esse tipo de problema; b) processos na Justiça por trabalho escravo têm alcançado somas milionárias; c) informações sobre o envolvimento em trabalho escravo são usadas, justa ou injustamente, para restrições comerciais internacionais; d) é lento o processo de construção de reputações de marcas e rápido o de destruí-las, não falta quem não queira correr o risco.
E mesmo que quedas nas bolsas de valores tenham desaparecido nos dias seguintes ao ocorrido, elas funcionam como um alerta para a empresa e para o setor em que está inserida. Há quem use isso para se aprimorar e operar dentro da lei, outros para desenvolver formas de mascarar melhor o problema.
Mortes e descaso – A histórica incompetência, leniência ou má fé do poder público (do PT ao PSDB) quanto ao setor de construção civil tem comprometido a dignidade de trabalhadores na construção de casas, apartamentos e centros empresariais.
Trabalho escravo já foi encontrado no “Minha Casa, Minha Vida”, do governo federal, e em obras da CDHU, do governo paulista.
E indo além da escravidão, a situação dos trabalhadores na construção civil segue muito ruim. Para refrescar a memória: lembram dos dez operários mortos no desabamento de um prédio no bairro de São Mateus, em São Paulo? E do jovem de 16 anos que morreu soterrado em uma obra no Cambuci, também na capital paulista? E dos nove operários que morreram em um canteiro de obras, em Salvador, quando o elevador em que estavam despencou de uma altura de 65 metros? E das mortes na construção de usinas hidrelétricas, como de Belo Monte? E dos operários que perderam a vida nas obras dos estádios do Corinthians, Palmeiras, entre outros? Isso só para ficar nos casos que acompanhei nos últimos dois anos.
Copa do Mundo, Olimpíadas, Programa de Aceleração do Crescimento. Governo injetando bilhões para financiamento. É claro que tudo isso significa mais geração de empregos em um setor que já contrata milhões. Mas produzir em quantidade e rapidamente tem, por vezes, significado passar por cima da dignidade do trabalhador.
Nos últimos dois anos, temos visto protestos de trabalhadores da construção civil por conta das mortes nos canteiros de obras e a pressão por resultados rápidos sem que seja garantida a saúde e segurança para tanto.
Isso me lembra que, anos atrás, o Palácio do Planalto reclamou do excesso de fiscalização, que trava as obras e faz com que o Brasil cresça mais devagar, momento em que foi aplaudido por parte do empresariado.
Esquece-se (ou ignora-se) que o ritmo de crescimento não deve ultrapassar a capacidade de garantir segurança para quem faz o país crescer. Ou ir além da capacidade física e psicológica desse pessoal. Ou dos equipamentos utilizados. Ou do terreno. Ou da liberdade e da dignidade.
Dilma Rousseff dá uma migalha aqui, outra ali, quando abre pequenos concursos para repor os fiscais do trabalho que se aposentam ou pedem demissão. Mas o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho afirma que para repor o que havia na década de 90, o Brasil precisaria mais que dobrar a quantidade de pessoas verificando condições de trabalho. Sem isso, não há como checar os canteiros de obras pelo país. Sabe quando isso vai acontecer? No momento em que marreta criar asas.
O problema, em boa parte dos casos, tem a mesma raiz: a terceirização tresloucada que torna a dignidade responsabilidade de ninguém. Mais ou menos assim:
Um consórcio contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata a Maga Patalógica, que subcontrata o Donald, que deixa tudo na mão de três pequenas empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas toca o barco mesmo assim. Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem bizarrices, como falta de segurança, atrasos de salários maus tratos, trabalho escravo e até mortes. Depois, quando tudo isso acontece, Donald, Patalógica, Tio Patinhas e o consórcio dizem que o problema não é com eles. E aí, ninguém quer pagar o pato – literalmente. Ficam os trabalhadores a ver navios, como Patetas.
O projeto que está tramitando no Congresso Nacional para ampliar a terceirização legal no país tende a ratificar parte desses problemas, pois não responsabilizará legalmente o Tio Patinhas por trabalho escravo, por exemplo.
Quando o STF suspende uma política que funciona, há anos, pressionando economicamente as empresas a seguirem as regras, susta o direito à informação pública e reafirma o que todos já sabem: cimento vale mais do que sangue e suor por aqui.