Vitor Abdala – Repórter da Agência Brasil
Meu xará, carioca da Tijuca, foi ao Pará surfar a pororoca, em um rio infestado de piranhas e jacarés. Nas margens, viu jaguares, quatis e capivaras. No céu, sobrevoavam araras, tucanos e urubus. Enquanto estava lá, bebeu suco de caju e de maracujá. Comeu pipoca, mandioca, carne de tatu e depaca. Visitou uma taba amazônica e foi cutucado por um curumim curioso. Dormiu em uma oca cheia de cupim e ficou com o corpo coberto de perebas. Foi atendido por um pajé. Depois de algum tempo, quando já estava na pindaíba, voltou para casa.
O texto acima é fictício e pode até ter informações inexatas, mas serve para mostrar como a língua usada no dia a dia no Brasil recebeu grande influência do idioma tupi, amplamente falado no país quando os primeiros portugueses chegaram aqui no século 16. Nada menos que 27 palavras de origem indígena (que estão grifadas em itálico) foram usadas no parágrafo.
O tupi antigo foi, durante as primeiras décadas de ocupação portuguesa, a principal língua de comunicação entre índios, europeus e uma geração de brasileiros mestiços que começava a povoar o território nacional.
Com o passar do tempo, o tupi antigo evoluiu para outras línguas, como o nheengatu (ou língua geral amazônica, falada até hoje), mas acabou perdendo importância a partir de meados do século 18, quando o então primeiro-ministro português, Marquês de Pombal, proibiu o uso e o ensino do tupi no Brasil e decretou o português língua oficial.
O objetivo de Pombal era enfraquecer a Igreja Católica e os jesuítas, que utilizavam a língua indígena para se aproximar e catequizar os nativos brasileiros. Com a proibição, o tupi desapareceu como idioma funcional (sobrevivendo apenas como a variação nheengatu na Amazônia).
Apesar disso, a língua se manteve viva, principalmente, por meio de palavras do português falado no Brasil. Segundo o filólogo Evanildo Bechara, organizador do Dicionário da Academia Brasileira de Letras (ABL), é difícil dizer quantas palavras do português são originárias do tupi. “Nos dicionários, há palavras que não são mais usadas e há algumas até que só têm um uso em determinada região”, diz.
De acordo com Bechara, a contribuição do tupi se deu principalmente no vocabulário, já que não houve influências importantes na gramática do português (na pronúncia, na fonética ou na sintaxe). “Desde cedo, a língua portuguesa entrou em contato com essas línguas [indígenas]. Então é natural que, do ponto de vista do vocabulário, os portugueses tenham encontrado nomes de plantas e animais que não eram conhecidos [até então]. O vocabulário da língua portuguesa está repleto de palavras indígenas, porque os portugueses encontraram aqui um novo mundo da fauna e da flora”, explica.
Além dos nomes de plantas, animais e gastronomia, houve uma grande contribuição do tupi para os nomes de lugares no Brasil. Topônimos como Iguaçu, Pindamonhangaba, Ipiranga, Ipanema, Itaipu e Mantiqueira são palavras ou expressões indígenas. Há heranças do tupi também em verbos, como cutucar, e em expressões populares como estar na pindaíba ou ficar jururu.
A contribuição do tupi, no entanto, não ficou restrita ao Brasil. Algumas palavras indígenas brasileiras ganharam o mundo e influenciaram idiomas como o inglês e o francês. O dicionário de língua inglesa Merriam-Webster cita várias palavras de origem tupi, como manioc (que vem de mandioka), capybara(que vem de kapibara), toucan (que vem de tukana), jaguar (que vem de îagûara) e tapir (que vem detapi’ira, conhecida como anta no Brasil).
Entre os casos da influência tupi no mundo está a palavra akaîu, que se transformou em caju na língua portuguesa. A fruta tipicamente brasileira ganhou espaço na culinária mundial, tanto por sua polpa quanto pela castanha. O sucesso linguístico veio no embalo do gastronômico.
Várias línguas hoje conhecem a fruta por palavras derivadas do akaîu. Entre os exemplos de vocábulos derivados do original indígena estão cashew (inglês, sueco, alemão, holandês, dinamarquês), acagiú (italiano), kaju (turco), cajou(francês), kásious (grego), kashu (búlgaro e japonês) e kašu (estoniano).
Apesar de a maior parte dos vocábulos vir do tupi, há contribuições isoladas de outras línguas como a palavra guaraná, que vem de warana, de origem sateré-mawé. Os Saterés-Mawés, que vivem no estado do Amazonas, são considerados os inventores da cultura do guaraná porque conseguiram beneficiar o fruto. Assim como a tupi akaîu, a palavra warana influenciou outros idiomas, além do português.
Outra contribuição indígena não tupi é a palavra mico, que, de acordo com o dicionário Michaelis, provém do termo miko, de um idioma da família linguística karib.
Edição: Lílian Beraldo.