Projeto Carbono Suruí: ao invés de direitos, dinheiro, por Michael F. Schmidlehner

Foto: Betty Mindlin
Foto: Betty Mindlin

Ontem publicamos a entrevista de Patrícvia Bonilha “Pra quê projetos que destroem a vida?”, questiona Henrique SuruíEsta é outra matéria sobre os projetos REDD, também presente na  Edição Especial da Revista Porantim sobre ‘economia verde’. Para acessar a edição completa, clique aqui. (TP)

Michael F. Schmidlehner*, Revista Porantim

O projeto Carbono Florestal Suruí foi iniciado em 2007 e é considerado pioneiro no Brasil por ser o primeiro projeto do mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd) em terras indígenas a ser validado em certificações internacionais. Implementado na Terra Indígena Sete de Setembro, ele abrange florestas localizadas nos estados de Rondônia e Mato Grosso.

Elaborado através da parceria da Associação Metareilá do Povo Suruí com a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, as Organizações Não Governamentais (ONG) estadunidenses Forest Trends e Equipe de Conservação da Amazônia (ACT Brasil), o Instituto de Conservação e Desenvolvimento do Amazonas (Idesam) e o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), o projeto contou ainda com o acompanhamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a sua implementação.

Para as organizações envolvidas, o elemento central que comprova a legitimidade do projeto é um documento publicado em inglês e português pela ACT, no ano de 2010, intitulado “Consentimento Livre, Prévio e Informado – Projeto Carbono Suruí”. O consentimento livre, prévio e informado, como é orientado pela Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT), deve servir para proteger os interesses de povos indígenas frente a medidas que afetem suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a terra que ocupam e utilizam. Este direito à consulta certamente é uma das armas mais importantes dos povos indígenas e das comunidades tradicionais na luta contra as contínuas invasões e transgressões que sofrem em seus territórios.

Atualmente, inúmeras tentativas estão sendo feitas no sentido de minar este direito. De um lado, o governo procura interpretar o direito de consulta como não vinculante, ou seja, não aceitar o “não” dos povos indígenas. De outro lado, o termo “consentimento” vem sendo aplicado cada vez mais frequentemente a processos questionáveis de envolvimento de comunidades em negócios.

Para um processo de consulta ser considerado válido, depende, em boa medida, da quantidade e da qualidade de informações que a comunidade dispunha quando deu seu consentimento e de não ter havido qualquer manipulação ou aliciamento.

O documento supracitado da ACT afirma que o processo de consulta garantiu que as “informações necessárias” foram fornecidas. Mas, ficam as dúvidas: quais informações foram estas? Quem decidiu quais informações devem ser consideradas necessárias para as comunidades? O documento menciona uma metodologia participativa, marcos legais e teorias antropológicas que teriam orientado os “eventos comunicativos e as articulações interétnicas” que compuseram o processo de consulta.

No entanto, o documento não traz praticamente nenhuma informação sobre os conteúdos que realmente foram discutidos com os quatro clãs dos Paiter-Suruí nos encontros realizados. Há uma única referência sobre um questionamento dos Paiter-Suruí, durante um “diálogo intercultural” sobre carbono e Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA): “como comercializar algo que não se vê, não se toca e não se conhece?”. Esta pergunta indica que a discussão deve, além de ter despertado as expectativas de lucros a partir da comercialização, ter girado em torno de questões técnicas, onde os indígenas provavelmente receberam “explicações” da ciência do homem branco.

Desde que foram inventados, o Redd e os serviços ambientais estão sendo discutidos, debatidos e, cada vez mais, questionados no mundo inteiro. Os principais questionamentos são a respeito: primeiro, da antiética lógica do “pagar para poluir”; segundo, do caráter virtual desses projetos, que se baseiam em grande parte em situações hipotéticas e, muitas vezes, resumem-se em um “faz de conta”, possibilitando esquemas fraudulentos; e, terceiro e principal, dos profundos impactos sobre as comunidades, que terão que adaptar seu modo de vida, colocando em risco sua autonomia na gestão de seus recursos, sua cultura, sua autêntica relação com a natureza e sua soberania alimentar – além do risco de serem criminalizadas, como consequência da implementação desses projetos.

Seria essencial que as comunidades Paiter-Suruí tivessem tido conhecimento de tais questionamentos e preocupações antes de terem decidido sobre consentir ou não com o projeto. Assim como, também deveriam saber, antes de consentirem em comercializar o carbono estocado nas árvores da sua terra, quem seria o futuro comprador deste carbono e para que ele seria usado.

Marketing positivo, atuação polêmica

Em setembro de 2013, os Paiter-Suruí concluíram a primeira venda de créditos de carbono. A compradora foi a empresa de cosméticos Natura, que adquiriu 120 mil[i] toneladas de carbono, para compensar as emissões poluidoras do seu processo industrial. O valor oficial da negociação não foi divulgado, mas alguns veículos de imprensa noticiaram que ele teria girado em torno de R$ 1,2 milhão[1].

Atuando em diversos países e com laboratórios para o desenvolvimento de produtos sediados em Paris, na França, a Natura é hoje uma empresa multinacional com uma receita líquida acima de R$ 7 bilhões[2]. Publicamente, ela apresenta-se como instituição comprometida com a preservação do meio ambiente e a valorização das comunidades da Amazônia, de onde extrai 30% dos insumos para os seus produtos. Entretanto, as relações da empresa com as comunidades já foram, e continuam sendo em alguns casos, bastante problemáticas. O acesso da empresa aos conhecimentos tradicionais das comunidades e supostas práticas de biopirataria vêm causando polêmicas e ações judiciais como, por exemplo, nos casos do Breu Branco[3], da Priprioca[4] e do Murumuru[5].

Nesse contexto, manter a imagem de “eticamente correta” e “ambientalmente responsável” é de importância estratégica para a Natura. Com a compra do estoque de carbono dos Paiter-Suruí, ela não apenas se torna “neutra em carbono” como também associa sua imagem pública, de forma positiva, com os indígenas.

Este contrato da Natura com os Paiter-Suruí evidencia outro aspecto vinculado à economia verde: o da apropriação dos conhecimentos tradicionais e dos recursos genéticos por meio de pesquisas e patentes. Assim como a Natura, a ACT possui um histórico de acusações de biopirataria. Marco van Roosmalen, pai de Vasco van Roosmalen, atual presidente desta ONG, causou polêmica no Brasil, entre outros países, após ter “descoberto” duas espécies de macacos em 2002[6]. Esses animais, endêmicos da Amazônia e conhecidos pelas comunidades tradicionais por nomes como Zog-Zog, ganharam nomes “científicos” de Roosmalen como, por exemplo, Callicebus Bernhardi, em homenagem ao príncipe Bernardo, da Holanda (fundador e primeiro presidente da organização conservacionista WWF). Em entrevista, Vasco foi confrontado com estas acusações, mas não sentiu necessidade de distanciar-se da atitude transgressora e colonialista do seu pai[7].

Segundo o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra a Biopirataria, de 2006, a ACT possuiria ligações com empresas estadunidenses da indústria de farmacêuticos e cosméticos e teria acessado, de forma irregular, patrimônio genético nacional e conhecimento tradicional associado através da elaboração de um “Mapa Cultural” dos povos indígenas do Tumucumaque e do Xingu. Após investigação, esta CPI concluiu:

“Embora a ACT Brasil negue, ficou evidenciado que a elaboração do Mapa Cultural não foi uma demanda das comunidades indígenas do Xingu. Esta CPI não consegue conceber que elas possam ter solicitado um produto para o qual a grande maioria não entendia (e ainda não entende) a utilidade. No máximo, esse desejo pode ter sido manifestado por alguns chefes indígenas e a ACT, por conta própria, resolveu estender a idéia às demais comunidades do Xingu, praticamente impondo-lhes a execução do mapa. […] No entendimento desta CPI, esse comportamento por parte da ACT Brasil constitui evidente aliciamento das comunidades indígenas“[8].

Com este histórico, tanto em relação às conclusões da CPI como às polêmicas que envolvem a organização, é difícil imaginar a ACT conduzir suas “articulações interétnicas” com os Paiter-Suruí de modo imparcial. Apesar destes e de outros aspectos questionáveis, o projeto Carbono Suruí continua sendo apresentado como iniciativa pioneira e ganhando premiações. Em 2010, por exemplo, Vasco van Roosmalen e o presidente da organização Metareilá, Almir Suruí, receberam na Califórnia (Estados Unidos) o prêmio Tech Awards, por “aplicarem a tecnologia em benefício da humanidade”[9].

Modelo replicado

Através de uma estreita articulação com o Projeto Carbono Suruí, as políticas de Redd e serviços ambientais estão sendo introduzidas para os povos indígenas do Acre. Uma das frequentes reuniões que a ONG Forest Trends viabilizou de Almir Suruí com lideranças indígenas no Acre foi descrita por um jornalista do governo acreano do seguinte modo: “A palestra de Almir Narayamoga Suruí, chefe dos Paiter (RO), no último dia da Oficina de Informação sobre o Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (Sisa), acabou com as dúvidas das lideranças indígenas do Acre e encheu todos – índios e não-índios -, de esperança: a proteção da floresta e da biodiversidade tem valor, é em dólar e aos milhões”[10].

Outro comentário de um professor indígena, após ter participado deste mesmo evento, revela que – mesmo que a ideia de grandes quantidades de dinheiro possa ter ficado clara – muitas dúvidas e incertezas sobre a natureza e finalidade desse tipo de negócio restam: “ainda não está claro o que vai ser vendido, como vai ser vendido, quem vai acompanhar, quem vai negociar e o que é mesmo essa venda”.

A criação da expectativa de ganhos financeiros, inevitavelmente, traduz-se numa pressão sobre as comunidades que, não tendo seus direitos constitucionais (saúde, educação, dentre outros) respeitados pelo Estado, sentem-se forçadas a aceitar esses projetos e políticas da economia verde.

Esta pressão é ainda mais reforçada pelo governo do Acre, que criou em 2012 um Grupo de Trabalho (GT) Indígena, com a função de ser a “voz indígena dentro do Sisa”[11]. Composto por selecionadas lideranças indígenas, consultores governamentais e representantes das ONGs envolvidas, este grupo serve para legitimar a implementação de um “subprograma indígena do Sisa” e, consequentemente, de projetos do tipo Redd nas terras indígenas do Acre. Nas reuniões deste grupo, os indígenas estão claramente orientados no sentido de com quais outras entidades devem manter ou não relações. Na reunião para a “criação da identidade do GT”, em junho de 2012, por exemplo, foi elaborado um mapa de relações deste grupo. Neste mapa, duas organizações que defendem um posicionamento crítico em relação à política de economia verde no Acre – o Cimi e a Amazonlink – são consideradas como sendo de “relação conflituosa”. Esta rotulagem é acompanhada pelas recomendações “atenção especial” e “cuidado!”[12]. Através desta estigmatização das organizações críticas, os indígenas do Acre vêm sendo continuamente blindados contra possíveis questionamentos acerca dos impactos do Sisa.

Desse modo, pressionados e isolados de fontes de questionamentos e informações críticas, os indígenas tornam-se propensos a abrir mão de grande parte de suas práticas tradicionais, a desistir da luta pelos seus direitos constitucionais e pela implementação de políticas públicas fundamentais (como saúde e educação) e a aceitar sobreviver como reféns de uma economia, “verde”, através da venda de “direitos de poluir”.

*Michael F. Schmidlehner é jornalista, professor de filosofia e fundador da organização não-governamental acreana Amazonlink.org. – [email protected]

Notas:

[1] http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2013/09/1340114-indios-de-ro-fecham-primeira-venda-de-carbono-certificado.shtml, último acesso em 27 de novembro de 2014

[2] Relatório Natura 2013, disponível em http://www.relatoweb.com.br/natura/13/, último acesso em 26 de novembro de 2014

[3]    Mais informações em: http://site-antigo.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2261, último acesso em 15 de novembro de 2014

[4]    Mais informações em: http://oglobo.globo.com/blogs/ecoverde/posts/2010/11/14/caso-natura-nao-tem-mocinhos-bandidos-340776.asp, último acesso em 15 de novembro de 2014

[5]    Mais informações em: http://noticias.terra.com.br/brasil/blogdaamazonia/blog/2009/02/17/acusada-de-biopirataria-pelo-mpf-natura-enfrenta-indios-na-justica-federal/, último acesso em 15 de novembro de 2014

[6]    Mais informações em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Callicebus_bernhardi, último acesso em 15 de novembro de 2014

[7]    TIME, A Monkey Advocate Lands Behind Bars. http://content.time.com/time/health/article/0,8599,1643526,00.html, último acesso em 15 de novembro de 2014

[8]    Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra Biopirataria, p.312-313, disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/52-legislatura/cpibiopi/relatoriofinal.pdf, último acesso em 15 de novembro de 2014]

[9]    Site da ACT: www.equipe.org

[10]    http://museudoindio.gov.br/divulgacao/noticias/179-almir-surui-mostra-as-liderancas-indigenas-do-acre-como-participar, último acesso em outubro de 2014

[11]    Resolucao IMC Nº 001, de 20 de agosto de 2012, disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/41456780/doeac-caderno-unico-16-10-2012-pg-49 , acesso 15/11/2014, último acesso em 26 de novembro de 2014

[12]    Memória de Reunião, 26 de junho de 2012, disponível em: http://www.imc.ac.gov.br/wps/portal/imc/imc/principal/!ut/p/c5/?1dmy&page=Principal&urile=wcm%3apath%3a/imc/portal+imc/principal/institucional/gt+indigena, último acesso em 26 de novembro de 2014

[i] http://g1.globo.com/natureza/noticia/2013/09/indios-surui-concluem-1-venda-de-creditos-de-carbono-indigenas-do-pais.html

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