Enviado por luisnassif
O artigo do The Economist sobre a frágil criminalização do racismo no Brasil já é um indício importante de que o mundo começa a desconfiar de que o país é negligente em relação a esta questão. Em outras palavras, não somente aqui dentro, mas também lá fora, a fantasia da democracia racial não se sustenta mais.
Já escrevemos sobre isso, mas não custa repassar a hipótese de que, em relação ao racismo, já vivemos três fases, e precisamos caminhar para a quarta.
A primeira foi a prática do racismo de Estado, durante a escravidão (e mesmo depois da Abolição), quando a discriminação e a violência eram “legitimadas em lei” (ainda que pese a redundância). Naquele momento, o tráfico e a exploração (econômica, física, sexual) de crianças e mulheres, além dos próprios homens, era vista como natural à sociedade.
Tratar negros como mercadoria, ou tratar religiões afros como casos de polícia, enquadram-se nesta etapa das relações raciais brasileiras. Pode-se dizer que esta fase está superada? De um modo geral, sim, mas há ainda traumáticos resquícios de ação discriminatória do Estado em relação aos negros, principalmente (vide a violência policial contra comunidades majoritariamente negras).
A segunda fase, acentuada na primeira metade do século XX, foi da extinção paulatina do racismo de estado (processo que ainda se completa), mas acompanhada de um fenômeno interessante: o da negação sistemática da existência do racismo no país. Como aquela pessoa que, constrangida com a doença, prefere escondê-la dos vizinhos. A negação também era uma maneira de manter o status quo, visto que assumir esta patologia social seria a forma mais imediata de começar a combatê-la. Por mais que pareça surrealista (um país com passado escravagista transformar-se em democracia racial plena de um dia para outro), parte (minoritária) da opinião pública ainda vocaliza este discurso.
A terceira fase, já pós-60, foi o reconhecimento do racismo no Brasil. Demorou bastante e ainda hoje há quem duvide que exista (como algumas pessoas também duvidam que o homem foi à Lua). Os anos 90 foram importantíssimos, pois foi nesta década que a questão começou a ser discutida mais abertamente, e boa parte da opinião pública abdicou do silêncio constrangedor sobre a questão. Nos 30 anos precedentes (décadas de 60,70 e 80), a questão ganhou a academia, organizações sociais, mas não se expandiu até a opinião pública.
A quarta fase está por vir e acredito que seja o legado deste século XXI: considerado como uma patologia social (portanto, não uma patologia do indivíduo, ou do “branco”, ou do “negro”), e como crime, há forte resistência à punição dos atos de racismo. E isso tem a ver com uma terceira fase ainda resistente…
O Brasil entrará na quarta fase das relações raciais quando virmos o país não ter vergonha de punir, seja com prisão, seja com prestações de serviço comunitários, seja com multas e indenizações, a depender da gravidade… não ter vergonha de punir aquele (independente da cor da pele ou da origem social) que ousar cometer o crime do racismo.
A criminalização do racismo, letra quase-morta da lei, deve virar realidade, e deve ser vista pela sociedade como uma lei de proteção à cidadania e ao republicanismo.
Ao contrário do que pode pensar o senso comum, a condenação pelo crime de racismo não é uma forma de punir brancos. Há racismo também de negros contra negros, mestiços contra negros, brancos e mestiços, negros contra brancos… O racismo mutas vezes se esconde por trás de preconceitos regionais, estéticos, ou de classe e de religião.
E aí é a grande discussão do momento: como tratar judicialmente o crime de racismo “como crime”. Porque, até hoje, esta criminalização vem sendo “escondida” por sentenças atenuantes, como a tipificação do racismo no máximo como injúria.
Há obstáculos para esta plena “criminalização do racismo”. Uma delas, a prática muito comum na mídia de oferecer, de forma instantãnea, atenuantes para o crime do racismo. Não há uma denúncia de racismo que não venha acompanhada de vozes em defesa do racista. Não do racismo. Mas tentativas de justificativas do ato. O caso do restaurante paulista foi bem sintomático: razões foram procuradas até no inconsciente daqueles que ofenderam o menino.
O país precisa entender que o racismo é “social”, não um “desvio psicológico” de uns e outros, especificidade de uma classe ou outra, de uma etnia ou outra. Não devemos temer um “clima de acertos de conta” com a criminalização do racismo. Devemos considerá-la normal, uma prova de maturidade em nossa sociedade.
Diremos que, do ponto de vista jurídico, o medo da punição ao racismo coloca o país na pré-modernidade.
É hora de acertar os ponteiros.
http://revistaafricas.com.br/archives/53661
Enviada por Pablo Matos Camargo.