Livro de Regina Zappa reconstrói a trajetória de Chico Buarque a partir de informações coletadas ao longo de décadas. Vida do artista carioca se mescla a grandes momentos da história brasileira
Lucilia de Almeida Neves Delgado*
Na vida e obra de Chico Buarque convivem o cidadão e o artista, que expressa as paixões do povo pela beleza, pelo amor, pelo futebol e pela liberdade.
Romantismo revolucionário é expressão cunhada pelo sociólogo Marcelo Ridenti para caracterizar diferentes manifestações, ações e expressões políticas e artísticas de múltiplos representantes de uma geração de brasileiros nascidos em meados da década de 1940. Na efervescente década de 1960 eram todos jovens, contaminados pela febre de criatividade, mudança e transgressão que varreu o mundo e pela convicção de que por sua ação o mundo ficaria menos desigual.
No campo das artes a euforia de uma inserção social que se fazia crítica e engajada – como se autodenominavam muitos jovens daqueles anos – desdobrou-se em um furor criativo diversificado e fértil que fez da década de 1960 e de 1968, seu ano síntese, um tempo emblemático que ficou gravado na história por palavras como utopia, revolução, pacifismo, antirracismo, feminismo, contracultura, movimento hippie, concretismo, existencialismo.
Os ventos heréticos que se irradiavam em efeito multiplicador e pluralista também chegaram ao Brasil e fertilizaram o romantismo revolucionário de jovens e artistas brasileiros. Aqui aportaram a partir da segunda metade da década de 1950 pelas mãos do nascente Cinema Novo, do Teatro de Arena, da inovação da bossa nova, de projetos como o do Centro Popular de Cultura da UNE e da expansão de ideias socialistas que se mesclavam com vigoroso nacionalismo. Foi nesse clima que Chico Buarque de Holanda viveu sua adolescência, importantes anos de sua juventude e se tornou um dos maiores compositores da música popular brasileira.
Registro inovador da trajetória artística de Francisco Buarque de Holanda é o principal conteúdo do livro da jornalista Regina Zappa, Para seguir minha jornada – Chico Buarque. Trata-se de um livro almanaque que abrange mais do que a biografia do compositor, cantor e autor. Pode-se dizer que são duas as biografias nele registradas, uma individual sobre a vida de Chico Buarque e outra coletiva, sobre a trajetória da geração que viveu sua juventude nos anos 1960. Isso porque Regina Zappa inscreve, nas páginas do livro, com especial suavidade, verbetes esclarecedores sobre parceiros de Chico Buarque, em diferentes fases de sua vida e também sobre movimentos artísticos que fizeram parte da trajetória do artista.
A ideia do livro começou a ser elaborada em 1999 quando Regina Zappa publicou uma biografia de Chico Buarque. Naquele ano morreu uma irmã do pai de Chico Buarque, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. A cantora Miúcha, irmã de Chico, convidou a amiga Regina para conhecer o acervo documental sobre o sobrinho reunido por sua tia Cecília. Qual não foi a surpresa das duas ao se depararem com uma vasta, diversificada e bem organizada documentação. Nos anos que se sucederam ao primeiro contato com o acervo, Regina Zappa foi amadurecendo a ideia de publicar um livro que contasse a trajetória artística de Chico Buarque e da geração que com ele se projetou na década de 1960.
O livro, ao incorporar uma perspectiva não somente personalista, ganhou em densidade e informação. Da infância de Chico Buarque, vivida em uma família cercada por livros, da biblioteca de seu pai historiador e brindada pela convivência com intelectuais e artistas como Antonio Candido, Vinicius de Moraes e João Gilberto, aos anos contemporâneos, quando Chico Buarque alterna a atividade de compositor com a de escritor, Zappa compôs o conteúdo do livro com seu próprio texto, fotos, cartas, notícias, enxertos de letras de canções – com caligrafia do compositor, entrevistas, cartazes publicitários, reportagens e críticas.
A história cultural do Brasil nos últimos 50 anos ferve nas páginas do livro. Além disso, ao recuperar as influências musicais que marcaram a formação de Chico Buarque, importantes expressões da vida cultural brasileira e internacional são registradas em uma dinâmica que considera a penetração de um tempo em outros tempos. Dessa forma, sem qualquer peso enciclopédico, a trajetória artística de compositores como Noel Rosa, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Jacques Brel, Charles Aznavour, Miles Davis e Edu Lobo compõem o conjunto desse livro almanaque.
Suas páginas formam um verdadeiro caleidoscópio que revive os festivais da canção que consagraram o próprio Chico Buarque e compositores como Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Jorge Ben e intérpretes como Nara Leão, Elis Regina, Jair Rodrigues, MPB 4, Maria Bethânia, Quarteto em Cy, Gal Costa e Os Mutantes. As disputas e divergências musicais e de estilo fazem parte desse enredo pluralista. As parcerias e amizades ganham cores especiais no encontro de Chico com Edu Lobo, Tom Jobim, Toquinho, Vinicius de Moraes, Francis Hime, Caetano Veloso, Augusto Boal, Carlos Lyra e Milton Nascimento.
Mas os tropeços e dificuldades da trajetória do artista não foram esquecidos. E as principais dificuldades que se tornaram obstáculos renhidos aparecem em decorrência da ação da censura e da repressão política. O auto e necessário exílio de Chico Buarque em Roma é a ponta de um dos muitos fios que também trazem consigo pressões e violências sofridas por estudantes, artistas, militantes políticos e intelectuais brasileiros, especialmente após 1968, quando o regime autoritário implantado em 1964 foi aprofundado com a edição do ato institucional de número cinco. Pressões de tal envergadura que levaram Chico Buarque a adotar o pseudônimo de Julinho da Adelaide para tentar driblar a censura nos idos dos anos 1970.
O processo criativo de Chico Buarque, inscrito na trajetória histórica brasileira, refere-se às diferentes fases da trajetória pessoal do artista, mas também às da história do Brasil. Assim, em um texto agradável e consistente o leitor encontra o jovem artista que alçou voo com músicas como Pedro Pedreiro e A banda e que compôs em fases subsequentes sucessos como Construção, Apesar de você, Quando o carnaval chegar, Mulheres de Atenas, Meu caro amigo, Pelas tabelas. Também encontra o autor de peças teatrais como Roda viva, Gota d’água e Calabar e de livros como Benjamim, Budapeste, Estorvo e Leite derramado.
Nada passou sem registro. Do artista que traduz com maestria a alma feminina ao incansável defensor da democracia, ao apaixonado torcedor do Fluminense e exímio jogador de futebol, ao pai e avô amoroso e ao fumante inveterado, Chico Buarque é apresentado na multiplicidade que lhe é inerente. Multiplicidade na qual sobressai uma duplicidade assim registrada por Regina Zappa: convivem no mesmo corpo, em tempos diferentes, um escritor e um músico. Talvez seja melhor dizer que os dois coexistem, mas não convivem. Trata-se de uma esquizofrenia virtuosa.
*Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora, professora da UnB, UFMG e PUC Minas.
Para seguir minha jornada – Chico Buarque
• De Regina Zappa
• Editora Nova Fronteira, 608 páginas, R$ 79,90
http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/01/28/interna_pensar,22773/olhos-de-uma-geracao.shtml