Tania Pacheco
Quando penso em postar algo de Elis, é sempre uma mesma música, de uma mesma apresentação, a que me ocorre. Porque é a que mais me toca. O vídeo acima, entretanto, foi garimpado cuidadosamente, porque tem muito mais a ver com uma Elis pouco conhecida, assim como tem muito mais a ver com meu sentimento neste instante e com a temática subversiva deste blog. E é a partir dele que quero recordar e reverenciar Elis, ao meu jeito.
Era o início da ditadura. Os estudantes estavam nas ruas, assim como a polícia, em geral montada a cavalo. As boles de gude foram a grande “invenção” da época, fazendo escorregar e jogando ao chão cavalos e cavaleiros. Era o início da ditadura. No Rio de Janeiro, como uma “resposta” ao incêndio do prédio da UNE, algo de novo nascia. Nara Leão, a “menina rica da zona sul carioca”, se juntava ao negro favelado Zé Keti e ao negro sem terra maranhense João do Valle para cantar o show que levaria o nome de um novo teatro: Opinião. Depois, viriam as peças: “Liberdade, liberdade”, “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” e tantas outras. No Arena, em São Paulo, a chamada turma da Cultura também protestava. “Arena conta Zumbi”, “Arena conta Tiradentes” etc eram formas de autores e atores usarem do Teatro para falar através de metáforas.
Brasil afora e em muitos outros espaços, na maioria universitários, eram comuns shows e peças terminarem com leituras de manifestos. Porque também no que dizia respeito à música, as palavras de ordem eram igualmente os protestos. Das faculdades, surgia gente como Chico Buarque, Edu Lobo e tantos outros, ainda imaturos mas dando início ao seu aprendizado político, paralelo ao seu crescimento musical e artístico. Muitas vezes os shows eram apresentados nos salões das faculdades, com a maioria da platéia sentada no chão, mas todos unidos numa mesma emoção. Foi numa dessas apresentações, no salão da UFRJ na Praia Vermelha, que em dado momento foi apresentada à platéia uma mocinha gaúcha que chegara há pouco ao Rio. Não me recordo o que ela cantou. Mas lembro perfeitamente a emoção que senti. Ao contrário dos outros artistas que se apresentavam, ela não era uma universitária. Vinha, sim, de uma família bem pobre e sem estudos, e buscava seu espaço entre nós, de alguma forma privilegiados.
Durou muitíssimo pouco tempo essa busca. O reconhecimento e o sucesso chegariam logo, mas a mocinha gaúcha percorreria um duro caminho, no seu despreparo para a vida. Ganharia e perderia muitas vezes. De uma criticada apresentação para o Exército, para a qual as mais diversas justificativas já foram apresentadas, à sua decisiva participação na luta pela Anistia, transformando em hino “O bêbado e a equilibrista”, de Aldir Branco e João Bosco. E cantávamos com ela aos berros as menções ao irmão do (maravilhoso e saudoso) Henfil e às Marias e Clarisses – que talvez hoje pouca gente saiba eram, respectivamente, as viúvas do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Wladimir Herzog, ambos assassinados sob tortura no DOI CODI do II Exército, em São Paulo. Se mencioná-los era proibido, felizmente a ignorância dos censores (capazes de mandar prender Bertolt Brecht, não me recordo por qual peça, e Sófocles, por “Antígona”) permitia que eles fosse lembrados e homenageados através dos nomes de suas mulheres.
“Elis Regina de Carvalho Costa” talvez tenha sido o mais belo e emocionante de seus shows. É nele que ela faz a apresentação para mim insuperável de “Atrás da porta”, com uma força e uma dor que, na sua intensidade, prenunciam, talvez, o que estava por vir. Depois de um dos maiores sucessos, a última e definitiva derrota ocorreria, há exatos 30 anos. Até hoje, penso que de alguma forma naquela manhã de 19 de janeiro fomos tod@s também um pouco derrotad@s.
Mas não quero terminar este texto assim, triste. Por isso, recorro a um presente que me foi enviado, também garimpado. Socializo, abaixo, um outro belo momento de Elis, enviado por José Carlos Costa, de Pirapora, Minas Gerais:
Que saudade! Bons tempos em que protestávamos com mais veemência. Salve Elis, eterna Elis!