Relatório da viagem à TI Araribóia

Luís Pedrosa, em seu blog

As notícias acerca da morte de uma criança Awa, na TI Araribóia, com certeza apontam para uma realidade mais triste ainda. Significa sobretudo que os madeireiros chegaram ao tradicional território de caça dos Guajajara e que os Awá estavam perambulando por lá, conforme relatos que já se tinha notícia.

A Terra Indígena Araribóia foi homologada em 1990. Está localizada na região Pré-Amazônica do Estado do Maranhão, tem uma extensão de 413 mil hectares, que atinge os municípios de Amarante, Arame, Bom Jesus das Selvas, Buriticupu, Grajaú e Santa Luzia. No interior dos seus limites locallizam-se 80 aldeias, com uma população de cerca de dez mil índios.

Decidimos organizar uma comitiva para entrar na TI na terça-feira, diante da confusão que se instalou, com as notícias sobre a morte do índio. Entre os próprios indígenas havia muita informação truncada e a curiosidade que o tema despertava, ampliava as dimensões do fato.

A publicação de uma nota da FUNAI, desmentindo a notícia da morte e criminalizando Clóvis Guajajara, trouxe mais perplexidade para as entidades que acompanham a questão indígena no Estado. Era algo incomum um boato deste tipo, com referências diretas ao índio Clóvis Guajajara, como tendo sido a origem da notícia. Depois, justamente esta fonte ser desmoralizada no relatório, quando havia a necessidade de uma investigação cautelosa a respeito do assunto.

Não havia forma melhor e mais responsável de apurar os acontecimentos do que se dirigir ao próprio local dos fatos e dialogar com os indígenas. Foi o que fizemos, partindo a comitiva, compostas pelos advogados Luis Antonio Pedrosa (presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MA, Igor Almeida (advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos) e Rosimeire Martins (integrante do CIMI).

A comitiva partiu na manhã de quarta-feira e pernoitou em Grajaú (distante 574 km de São Luís), na casa de apoio da irmãs da Igreja Católica. No dia seguinte, às 4 da manhã, partimos para a TI, pela MA 006. Chegamos à Aldeia Vargem Limpa antes das sete horas da manhã e logo nos reunimos com os índios.

Percebemos que os índios estavam apreensivos. Era evidente que as notícias haviam chegado à aldeia. Clóvis e seu irmão, Arnaldo, negaram a existência de um corpo na floresta, mas confirmaram a presença de madeireiros onde estavam acampados os Awá. Por volta de sete e meia estávamos adentrando à floresta, acompanhados por vários Guajajaras, que nos guiaram.

A princípio, Arnaldo integrou a comitiva, mas afirmou que estaria conosco apenas até a sua área de roça, a cerca de 5 km da Aldeia. Por qualquer  motivo, Arnaldo permaneceu conosco até o final percurso, o que também nos chamou a atenção. Dois jovens caçadores Guajajara foram junto, mas se dispersaram na mata, após chegarmos ao local onde se realizaram as operações de desmatamento. Na volta, Clóvis e Arnaldo pediram para conversar conosco novamente sobre o assunto (a morte do índio). Clóvis interrompeu sua caminhada para fazer orações, demonstrando o impacto da emoções que estava sentindo.

Caminhamos no ritmo de índio, em passo ligeiro, por dentro de uma floresta, rica em árvores centenárias, subindo e descendo morros, por vezes em trilhas, mas quase sempre na mata fechada, em fila indiana. Clóvis à frente, durante todo o percurso de ida. Os Guajajara dialogavam muito entre si na língua nativa, embora Clóvis não deixasse de conversar conosco – sobre os Awá, ou a destruição provocada pelos madeireiros.

Clóvis já fazia contatos com os Awá, nesta mesma área ao longo do ano de 2011. Relatou para a comitiva que eles não fugiam mais quando o viam, aparentando uma certa tranquilidade com a sua presença. Tínhamos também o objetivo de encontrar e fazer registros acerca da presença desse grupo isolado. Segundo os Guajajara, haviam muitos vestígios dos Awá naquele local.

Após duas horas e meia de caminhada, chegamos à primeira estrada aberta pelos madeireiros. Muitas toras de árvores centenárias jaziam ao chão. Jatobás, sapucaia, Ipês e copaíbas, principalmente. Outras estavam marcadas, muito provavelmente para um futuro corte.

Segundo os Guajajara, os trabalhos de desmatamento tiveram início por volta de outubro do ano passado. A abertura da mata segue a mesa trilha de uma estrada de acesso, com o espaço necessário para a entrada de caminhões. Os rastros dos pneus ainda são visíveis, em alguns pontos.

A área onde chegaram os madeireiros era preservada, segundo os índios. Era utilizada como território de caça. Com medo de represália dos madeireiros, os Guajajara não caçam mais na região como antes. Clóvis e Arnaldo, por exemplo, afirmam que mudaram seus itinerários de caça.

Os vestígios da presença dos Awá coincidem com os das entradas dos madeireiros. Com certeza, os trabalhos de derrubada da mata afugentaram os Awá. Os muito sinais deixados, revelam que uma grande área estava sendo utilizada para a caça e para a coleta, principalmente do mel. Várias árvores apresentavam sinais de corte da machadinha Awá, para a extração do mel.


Em vários pontos, constatamos petrechos de cipó, para subida em árvores – onde se entrevê a presença de colméias. As técnicas para escalar árvores são curiosas e se revelam curiosas e eficientes para crianças ou homens de pequena estatura. Os cipós servem não apenas com base de apoio para mãos e pés, mas ajudam nos entrançados que ligam uma árvore a outra, para facilitar o deslocamento.

Os vestígios de fogueiras também foram encontrados. Eles espalham-se a derredor de um acampamento principal, onde figuravam antes os tapiris. Tudo indica que vários grupos familiares estavam ali localizados, utilizando da área para suas atividades de caça e de extrativismo. Fragmentos de embiras típicas dos Awá também foram encontrados, nas proximidades de uma fogueira.

Segundo os Guajajara, algo em torno de trinta Awás estavam acampados no local. O acampamento principal foi destruído por um trator, mas foi possível encontrar vestígios de uma fogueira e os entraçados de cipó para a escalada de árvores, muito próximos.

Durante a caminhada, encontramos várias estradas abertas, com muitas toras, aguardando a retirada nos caminhões. Um acampamento recente de madeireiros também foi encontrado. No interior dele, alguns objetos e até um pequeno grajau, construído certamente para manter preso algum animal silvestre encontrado pelos intrusos.

Os Guajajara afirmam que os Awá não foram mais vistos na região após a entrada dos madeireiros. Provavelmente foram afugentados, com a agressão ao seu acampamento. Clóvis e seu irmão sentem-se ameaçados e esperam que as autoridades os ajudem a manter em pé a floresta.

Retornamos duas horas da tarde. Caminhamos seis horas e meia dentro da floresta. Pelo ritmo da caminhada, calculamos a distância de 20 km até o local do acampamento Awá. Ao todo 40 km a pé, na floresta.

Não encontramos o corpo da criança supostamente morta. Desde outubro, quando tal fato teria ocorrido, improvável seria encontrá-lo, três meses depois. Corpos se deterioram rapidamente na floresta, trabalho que recebe ajuda de animais carnívoros, com força suficiente para deslocá-los por longas distâncias.

Além disso, seria improvável que os agressores não ocultassem a prova material desse tipo de crime, depois de tanto tempo de publicização da notícia. O fato é que constatamos a presença no local de dois personagens que não podem se encontrar na floresta, sem grandes possibilidade de um confronto: Awás e madeireiros.

A hostilidade em relação aos Awás também foi patente. O acampamento estava destruído e os sinais indicam que os tapiris estavam sendo utilizados quando da chegada dos agressores. Os cortes da machadinha Awá e o verde das toras derrubadas pelos madeireiros indicam a contemporaneidade das duas presenças no local. O acampamento madeireiro também era muito recente.

Constatamos que não apenas os Guajajaras que defendem a floresta correm riscos, mas principalmente os Awá-Guajá. Esse grupo isolado da TI Araribóia está cada vez mais sendo acuado na floresta e fatalmente ficará sem espaço para sobreviver. Um encontro com o branco, armado e criminoso é uma possibilidade que não se pode descartar.

Por três meses seguidos os tratores e os caminhões operam no local impunemente. Contabilizamos quarenta toras de árvores centenárias durante a inspeção. Os índios dizem haver cerca de quinhentas, aguardando o retorno dos madeireiros, que, por enquanto, suspenderam o trabalho, certamente pela repercussão das notícias.

Não será surpresa que retornem após as chuvas, para resgatar uma pequena fortuna em madeira que roubam dos índios e da Nação. Onde crimes ambientais ocorrem, movimentando tal volume de dinheiro, homicídios podem ocorrer com muita facilidade. E ali, os que se postarem no caminho desses grupos de criminosos correm riscos.

Constatamos que a Funai não foi ainda ao local do acampamento Awá e nem à zona de derrubada de madeira, após as notícias da morte da criança serem veiculadas. Os servidores deste órgão, para fazer o relatório, que deu origem à nota pública, limitaram-se a colher informações na Aldeia. Em que condições tais informações foram colhidas não sabemos.

No site Google Earth, foi possível localizar a Aldeia Vargem Limpa, próximo a MA 006. A qualidade da imagem é ruim, porque não consegui transferi-las diretamente para o blog. Mesmo assim, dá para visualizar a mancha verde que representa a TI Araribóia.

Do lado da Aldeia, em outra imagem, já é possível visualizar pontos de abertura na floresta.

As imagens de satélite são ilustrativas acerca da estratégia de preservação das florestas brasileiras contemplando a presença indígena. Fora da terras índigenas, não existem mais florestas, praticamente.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Edmilson Pinheiro.

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