Jéssica Falconi é doutoranda em literaturas africanas. A professora italiana apresenta-nos aqui argumentos de força em torno da literatura e crítica literária em Angola, do papel que deve desempenhar as Universidades para o fomento da qualidade literária em Angola
Trabalha na recolha de alguns estudos sobre literatura angolana, gostaríamos que nos fizesse uma apresentação dos objetivos e do seu trabalho concreto.
Atualmente estou a desenvolver um projeto de investigação sobre a crítica e os estudos das literaturas africanas, com enfoque particular na crítica produzida em relação à literatura moçambicana. O meu objetivo é precisamente fazer um levantamento dos trabalhos críticos relevantes que existem na área, para podermos repensar categorias e instrumentos de análise. Gostaria de esclarecer que em qualidade de investigadora mais “nova”, o meu trabalho neste momento é menos proporcionar respostas do que colocar perguntas.
Como avalia as literaturas africanas neste momento?
Não é fácil fazer uma avaliação de conjunto. Cada uma destas literaturas tem um movimento próprio, e também o que se costuma definir de “identidades múltiplas”, no sentido de que cada uma destas literaturas tem dentro de si mundos diversos e o nosso desafios é saber ler esta diversidade. Por outro lado, e de uma maneira geral, acho que a abordagem e o estudo destas literaturas sofrem ainda muitos preconceitos que às vezes afetam negativamente a nossa avaliação.
Qual o lugar da literatura angolana no âmbito das literaturas produzidas nos países africanos onde se fala a língua portuguesa?
Há uma tendência comum em considerar a literatura angolana como uma das mais consolidadas. E, de fato, podemos dizer que é verdade. O grande talento de muitos escritores angolanos, a diversificação de temas, estilos, gêneros literários cultivados, e o próprio “movimento” da literatura angolana faz com que se configure realmente como um sistema literário consolidado. Se por um lado tudo isso não está em questão, por outro, acho que há outros fatores também que incidem neste tipo de avaliação. Um deles é a grande atenção geralmente dada, nos estudos literários e culturais, às obras de ficção, de que a literatura angolana nos dá exemplos brilhantes. Isto não raras vezes tem implicado darmos escassa atenção a outras formas de escrita literária.
Gostaríamos que estabelecesse uma relação entre as literaturas africanas produzidas em português e as outras veiculadas em francês e inglês.
Há grandes diferenças e algumas analogias. Uma delas é o modo como se continua a olhar para estas literaturas, do ponto de vista crítico. Lembro-me de uma bela fala do Mia Couto intitulada “Quem são os escritores africanos?”, em que o escritor moçambicano questionava precisamente este problema da “expectativa”. Pedimos às literaturas africanas que sejam “diferentes”, “locais”, “tradicionais”, e não raras vezes social e politicamente comprometidas para que se oponham a modelos ocidentais, ou pelo contrário “universais” e “modernas”, para que não veiculem apenas imagens de uma África distante e imutável. Acho que este tipo de atitude acaba por ser transversal às literaturas africanas em geral.
Pode-se falar de angolanidade na literatura de Angola?
Angolanidade, moçambicanidade, caboverdianidade etc são construções identitárias que tiveram um lugar importante quer no discurso político quer no discurso cultural e literário. Quando abordamos a literatura, acho que a dificuldade muitas vezes é precisamente considerá-las como construções. O estudioso moçambicano Gilberto Matusse explica isto muito bem: as obras literárias utilizam recursos que criam um “efeito” de moçambicanidade, isto é, a moçambicanidade na literatura (ou angolanidade etc.) não é um traço essencial, uma característica imutável e fixa, mas sim o resultado de um ou vários recursos estilísticos, linguísticos etc.
Quais são os escritores angolanos com projeção internacional e por quê?
Isto da projeção internacional é um pouco complicado. Há muitos fatores que incidem neste fenômeno, para além do talento do escritor. As estratégias de marketing das editoras, as políticas de tradução, e não raras vezes as relações pessoais… Entre os críticos e estudiosos discute-se muito esta questão, levantando-se muitas vezes polêmicas (a meu ver) inúteis. Discute-se porque é que em Portugal ou no Brasil se publica este ou aquele escritor. Na minha opinião seria muito mais útil se a academia dedicasse parte dos seus esforços (e dos seus fundos) a contribuir para a reedição de obras esgotadas, por exemplo, como acontece em alguns casos.
Alguns estudiosos das literaturas africanas dizem que a literatura angolana ocupa um espaço privilegiado no conjunto das outras literaturas dos PALOP´s, concorda?
Vou responder tentando levantar algumas questões. Como já disse, no caso angolano, temos um sistema literário de fato consolidado, e temos o talento de muitos escritores angolanos, que está fora de questão. Por outro lado, pergunto-me se será viável deixarmos de avaliar as literaturas com base num padrão de “surgimento-evolução-consolidação”. Haverá outros movimentos, não lineares nem progressivos, a considerarmos quando pensamos no que é uma “literatura sólida”? É que estamos a correr o risco de criarmos outro “cânone” dentro do conjunto das literaturas africanas de língua portuguesa, sem considerarmos devidamente as especificidades e as diferenças de cada uma destas literaturas.
Em seu entender, como é que é possível ocupar esse lugar, quando há uma critica literária angolana bastante incipiente?
Há que lembrar que no passado a reflexão e a crítica literária relativa as literaturas angolanas, moçambicanas, etc., tiveram uma grande força fora das academias. Estou a referir-me aos próprios escritores, ou outros intelectuais que dinamizaram o debate cultural e literário. Pense-se por exemplo em tudo o que se publicava nos jornais, nas páginas literárias. Trata-se claramente de textos breves, recensões, leituras, pequenas críticas. Por outro lado, não deixam de ser fontes para as quais precisamos de voltar, para vermos o que é que mudou, quais são os elementos que chegaram até nós no que diz respeito à avaliação crítica destas literaturas.
Para terminar, gostaríamos de ouvir que conselho daria aos estudantes angolanos que pretendem aderir à crítica e aos estudos das literaturas africanas.
Como já disse, há ainda muitos preconceitos na abordagem desta matéria, preconceitos de que muitas vezes nem se tem plena consciência. É por causa destes preconceitos “latentes” que a meu ver se corre o risco de perpetuar uma espécie de “inferiorização” das literaturas africanas. Portanto, para além de conselhos óbvios, o que me parece importante sugerir é o seguinte: questionem tudo e não aceitem verdades já feitas. Dá muito mais trabalho, mas só assim a investigação vale a pena.