Jorge Eremites de Oliveira*
Em 1978, época do regime militar (1964-1985), o governo Geisel veiculou a ideia de emancipar todos os indígenas no Brasil, como que os tornando não-índios perante a lei e, dessa forma, omitindo do Estado Nacional o dever de protegê-los. Tal proposta foi derrotada em plena ditadura militar e deu início a um ativismo indígena bastante interessante sob vários aspectos.
Décadas depois, paradoxalmente tenho ouvido de membros da atual administração municipal de Dourados a ideia de transformar a Terra Indígena Dourados, onde estão localizadas as aldeias Jaguapiru e Bororó e vivem centenas de famílias Guarani, Kaiowá e Terena, em um novo município autônomo. Dois argumentos básicos têm sido apresentados sobre o assunto: o tamanho de sua população ser superior a 10.000 habitantes e os “volumosos” recursos públicos ali investidos nas áreas de educação e saúde – apenas para citar dois exemplos.
Acreditando que esses servidores públicos estão bem intencionados e que não estão a defender a proposta de livrar o executivo municipal de suas responsabilidades constitucionais, como ocorreu no âmbito federal na década de 1970, peço licença para discordar da proposta. Assim o faço a partir de três argumentos básicos: 1º) apesar de não ser expert em Direito, tenho dúvidas sobre a legalidade de uma proposta desse nível, inclusive do fato de a Assembleia Legislativa poder tratar de matérias dessa natureza; 2º) desconheço que a população indígena da reserva tenha sido consultada ou que tenha formalmente manifestado interesse em uma suposta emancipação ou autonomia dessa natureza; 3º) salvo melhor juízo, a Terra Indígena Dourados não possui uma arrecadação suficiente para tal propósito.
Neste sentido, tenho a dizer que, contrariando o que certos governantes e parlamentares muitas vezes dizem sobre o assunto, a população indígena local não é uma espécie de “problema federal”, isto é, que caberia apenas ao órgão indigenista oficial, a FUNAI, tratar de todos os assuntos a seu respeito. No entanto, reconheço as dificuldades comumente enfrentadas por alguns municípios que possuem uma grande população indígena em sua extensão territorial. Mas também tenho conhecimento de experiências bem sucedidas em Mato Grosso do Sul.
Tenho dito amiúde que uma dessas experiências vem de Dois Irmãos do Buriti, onde o executivo encaminhou ao legislativo municipal o projeto de lei da criação da Secretaria Municipal de Assuntos Indígenas. Uma secretaria desse nível seria oportuna e bem-vinda a Dourados, sobretudo se administrada por indígenas. Uma pasta assim contribuiria para a concatenação, definição, implementação e fiscalização de várias políticas públicas sob a responsabilidade de certas secretarias municipais, inclusive no que diz respeito à captação de recursos federais para projetos que ligados ao auto-desenvolvimento da população indígena local.
Meus argumentos, portanto, vão ao encontro da tese de que os povos indígenas em geral não devem ser vistos como um tipo de “fardo pesado” às administrações municipais, pelo contrário. Devem ser valorizados e respeitados a partir de uma relação de alteridade. Já é hora de a reserva indígena de Dourados deixar de ser vista apenas como curral eleitoral para certos políticos locais, como também são vistos alguns bairros da periferia da cidade.
Por isso, em que pese saber e reconhecer muitos dos acertos da atual administração municipal, gestão que pegou a segunda maior cidade do estado em situação dificílima, sugiro que seja aberta uma discussão sobre a possibilidade de termos em Dourados uma secretaria municipal desse tipo. E que os maiores interessados no assunto, os indígenas, sejam chamados para os debates.
*Jorge Eremites de Oliveira é doutor em História/Arqueologia pela PUCRS e professor de Antropologia na UFGD
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