‘Sem julgamentos, prevalece a impunidade’, diz Leigh Payne

Num momento em que países de todo o mundo têm adotado julgamentos e comissões de investigação para lidar com violações passadas dos direitos humanos, a Lei de Anistia brasileira representa “um desafio potencial” para a comunidade jurídica internacional, diz a professora de Sociologia e Estudos Americanos da Universidade de Oxford, Leigh Payne. Coorganizadora do livro “A anistia na era da responsabilização: O Brasil em perspectiva internacional e comparada”, reunião de textos apresentados no seminário de mesmo nome realizado em Oxford em 2010 (download AQUI), Payne afirma, em entrevista por e-mail, que a recém-criada Comissão da Verdade é capaz de promover reparações simbólicas pelos crimes do passado, mas pondera que a falta de autonomia para promover julgamentos e a manutenção da Lei de Anistia podem minar esforços e a confiança nas instituições públicas.

Na introdução de “A anistia na era da responsabilização”, você diz que o Brasil representa “um desafio potencial” para a norma global de responsabilização individual por crimes cometidos durante regimes de exceção. Por quê?

LEIGH PAYNE: O consenso na literatura sobre a “justiça em cascata” ou a “era da responsabilização” é que os países enfrentam uma pressão cada vez maior para remover suas leis de anistia e permitir que atrocidades do passado contra os direitos humanos sejam julgadas. O Brasil, mesmo com a decisão recente de criar uma Comissão da Verdade oficial, continua a ignorar a pressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para abrandar a Lei de Anistia e permitir processos criminais individuais.

O livro ressalta que leis de anistia têm sido substituídas pela “justiça de transição” em países que lidam com o passado autoritário. Na sua opinião, quais são os aspectos mais singulares da Lei de Anistia brasileira e como o país deveria lidar com ela em um cenário global onde esse tipo de dispositivo é considerado insuficiente?

O Brasil ainda tem uma Lei de Anistia que encobre e protege torturadores e perpetradores de crimes contra os direitos humanos. Há duas formas de pensar nesse cenário. De uma perspectiva legal: esta lei está em descompasso com os padrões e as exigências internacionais de direitos humanos. Na minha opinião, o Brasil precisa reconhecer que a Lei de Anistia não é legítima, remover sua base legal, e permitir o julgamento desses crimes. De uma perspectiva política e empírica: sabemos por nosso banco de dados que países que adotam mecanismos específicos de justiça de transição — julgamentos e anistias ou julgamentos, anistias e Comissões da Verdade — tiveram mais avanços em suas instituições democráticas e nos direitos humanos, campos em que o Brasil ainda apresenta resultados negativos. Se o Brasil permitisse esses julgamentos, haveria avanços. Antes de mais nada, um dos principais direitos democráticos é o de compensação — se vítimas de atrocidades passadas não veem os responsáveis serem julgados, elas são privadas desse direito. Além disso, democracias precisam de instituições fortes e independentes. Tribunais que não podem julgar crimes atrozes perdem a força institucional e a confiança dos cidadãos. Por fim, uma forma de prevenir novas violações de direitos humanos é mostrar que quem as comete é responsabilizado. Sem a possibilidade de julgamentos, prevalece a cultura da impunidade.

Quais os aspectos positivos e negativos de uma Comissão da Verdade que não tem autoridade para processar os responsáveis por violações de direitos humanos, como a brasileira?

O aspecto positivo da comissão brasileira é que ela vai oferecer um reconhecimento oficial das atrocidades do passado, que tem o potencial de restaurar a dignidade das vítimas e de inscrever na História uma condenação formal a esses atos. Ela pode também mostrar que as violações passadas não foram atitudes individuais isoladas, e sim um processo criminoso planejado e sistemático. Sua fraqueza é expor que atores do Estado que cometeram crimes nunca vão ser julgados, uma mensagem vergonhosa numa democracia de resto saudável. Pode ser, porém, que a exposição de antigos crimes de Estado contra a Humanidade leve o Brasil a considerar a possibilidade de julgamentos de direitos humanos. A mobilização pode produzir um repúdio público a esses crimes e catalisar uma demanda por julgamentos. Também pode ser que as cortes encontrem brechas no debate público para promover ao menos alguns julgamentos. Isso aconteceu na Argentina e no Uruguai antes de esses países abolirem suas leis de anistia.

Como o caso brasileiro pode ser comparado aos de Argentina, Chile e Uruguai? Quais são as diferenças entre a Comissão da Verdade brasileira e as desses países?

Todos os países da América Latina que emergiram de governos autoritários e conflitos armados desde os anos 1970 permitiram julgamentos, menos o Brasil. É importante mencionar, no entanto, que todos esses países começaram com o mesmo tipo de anistia ampla que o Brasil. Através da mobilização de vítimas e organizações de direitos humanos, e de técnicas inovadoras aplicadas pela comunidade legal, essas leis de anistia foram enfraquecidas e, em alguns casos, anuladas, permitindo julgamentos. Em relação à Comissão da Verdade, a maior diferença é o tempo. A comissão brasileira foi criada muito depois do fim do regime autoritário. Houve outros “processos de verdade” no país, como um relatório extra-oficial (“Brasil nunca mais”), que usava documentos oficiais para expor a violência de Estado. O modelo das comissões varia muito na América Latina, e o Brasil, muito provavelmente, vai desenvolver um modelo próprio. Mas me parece difícil que se promova justiça como fez na Argentina o relatório da Conadep (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, criada em 1983, logo após o fim da ditadura no país, pelo então recém-eleito presidente Raúl Alfonsín).

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/01/07/sem-julgamentos-prevalece-impunidade-diz-leigh-payne-425106.asp

Enviada por José Carlos.

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