por Natália Pesciotta
“Ele era a pessoa mais brilhante que já conheci”, dizia o antropólogo Darcy Ribeiro. O médico, professor e escritor pernambucano dedicou a vida a revelar e desmistificar a questão da fome, “assunto tabu coberto por mentiras”. Autoridade internacional no tema, colecionou admiradores como Darcy, Betinho, Câmara Cascudo e Jorge Amado.
O rapaz virou médico de uma grande fábrica no Recife, onde pairava um mistério: os funcionários adoeciam e ficavam impossibilitados de trabalhar, mas não se diagnosticava neles nenhuma doença conhecida. Depois de um tempo, o novo doutor desvendou a situação: “Sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença dessa gente é fome”.
O episódio, no começo dos anos 1930, mudou para sempre a vida do jovem que gostava de poesia, lia Freud e pensava em ser psiquiatra. “Há dois caminhos diante de nós: o caminho do pão e o caminho da bomba atômica. É preciso escolher sem vacilação.” Não havia demagogia alguma na fala de Josué de Castro quando completava: “Eu simbolizo pelo caminho do pão”.
Talvez esta simples frase possa resumir a vida do médico pernambucano, que se especializou em nutrição quando o tema não era nem especialidade, e dedicou todos seus estudos e ações ao problema da fome – mesmo pagando um preço alto por isso.
Não à toa Josué era admirado por uma lista enorme de grandes brasileiros, como Câmara Cascudo, Betinho, Darcy Ribeiro, Jorge Amado, Milton Santos. Duas vezes indicado ao Prêmio Nobel, foi o primeiro a defender a ideia de que o problema alimentar não se deve à existência de muita gente e pouca comida, mas sim à má distribuição dos alimentos. Elementar? Pois havia três séculos que o mundo pensava o contrário.
Sorbonne no mangue
Darcy Ribeiro costumava dizer que Josué era a pessoa “mais brilhante” que conheceu, de “talento ofuscante”. E fazia o adendo: “E era brilhante em todas as línguas: em português, espanhol, inglês, francês…”. Sensibilidade e inteligência acima da média o levaram a perceber o problema da fome, denunciá-lo, propor soluções e convencer com eloquência que agir se fazia urgente. Tudo isso sem nunca ter passado fome na vida.
Nasceu no Recife em 5 de setembro de 1908, filho único de um vendedor de gado e leite e uma professora. O menino morava em uma velha casa colonial à beira do rio, bem próxima às palafitas que pareciam boiar no mangue. Anos depois, escreveria seu único livro de ficção inspirado na vida de uma daquelas famílias que viviam como os caranguejos, imagem que lembrava bem: “Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife”.
Josué estudou em boas escolas da cidade, foi a Salvador para cursar a tradicional Faculdade de Medicina da Bahia e completou a formação no Rio de Janeiro, aos 20 anos. Depois voltou ao Recife, onde se casou e teve três filhos.
Geografia da fome
Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça / Quanto mais miséria?tem, mais urubu ameaça, cantava o também pernambucano ?Chico Science em Da Lama Ao Caos, em 1992. Décadas após Josué ter comparado os caranguejos com os homens do mangue, em Homens e Caranguejos, influenciou o mais importante movimento da música brasileira depois da Tropicália. O Mangue Beat de Chico Science e companhia tinha como símbolo um “caranguejo com cérebro”. E, como patrono, Josué de Castro.
Mas Josué ia além da lama e de sua cidade: “Não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente. A fome era um problema mundial, um drama universal”. Entre os 29 livros traduzidos para 25 idiomas, o que mais sintetiza suas ideias é Geografia da Fome, de 1946. “O livro nos deu a impressão de que o Brasil acordara de uma grande ilusão”, declarou o historiador Barbosa Lima Sobrinho. Nas palavras do folclorista Câmara Cascudo, Josué “enfrentou justamente esse assunto tabu, difícil, negaceado, escondido nos relatórios e coberto com os retalhos de sinônimos bonitos como mentiras”.
A partir daí, o tabu passa a ser combatido. Josué lutou pelo salário mínimo, conquistado no governo de Getúlio Vargas, e depois pelos restaurantes populares. Trabalhou em muitas políticas públicas de educação alimentar. Fundou e participou de diversas entidades, como a Sociedade Brasileira de Nutrição e a Associação Mundial de Luta contra a Fome. Além de lecionar Fisiologia e Geografia Humana – sendo nomeado Professor Honoris Causa em diversas universidades –, foi também duas vezes deputado por Pernambuco.
Morre-se também de saudade
É de se imaginar o que aconteceu na ocasião do golpe militar com quem dizia que “metade da população brasileira não dorme porque tem fome e a outra metade não dorme porque tem medo de quem tem fome”. Josué era embaixador do Brasil na ONU quando teve os direitos políticos cassados, em 1964. Viveu exilado na França, exercendo atividades em diversos países.
Um amigo que o encontrou em Paris anotou no diário: “Vinha vindo pela calçada fronteira, como se não soubesse em que se ocupar na tarde cinzenta, longe de sua pátria, longe de seus livros, longe de seus amigos. Para mim, que o conhecera extrovertido e fluente, sua figura alta e triste impressionou”. Ansioso pela Anistia, morreu aos 65 anos, em 24 de setembro de 1973, sem retornar à pátria da qual foi uma das maiores cabeças. Havia afirmado, pouco antes: “Não se morre apenas de enfarte, ou de glomeronefrite crônica. Morre-se também de saudade”.
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