Tragédias não são medidas pela quantidade de corpos amontoados, mas pelo que elas significam para cada um. Tenho uma certa dificuldade em absorver comentários de pessoas que reclamam que determinado massacre ganhou destaque quando outro, bem maior, permaneceu desconhecido. Até porque essa mesma pessoa provavelmente ignorou uma série de outras tragédias e, evitando buscar informações, responsabiliza apenas a imprensa. Que tem suas culpas, claro, mas não está sozinha.
Estou resgatando um texto que escrevi sobre a comparação de desgraças e a questão da empatia. Creio que vale a pena neste momento em que uma competição entre Paris, Beirute, Mariana ou Baga parece ter ocupado as redes sociais.
Mantive, durante anos, na sala do meu escritório uma capa da revista Time retratando centenas de corpos espalhados no chão de Ruanda, vítimas do genocídio perpetrado pela maioria hutu contra a minoria tutsi em 1994. Nela, pessoas procuram por parentes e aves procuram por almoço.
O título era algo como “Este é o início dos últimos dias, o apocalipse” – talvez uma tentativa de chamar a atenção dos Estados Unidos e Europa para o massacre através de um elemento simbólico que está no alicerce de sua fundação: o julgamento final do Novo Testamento.
Mas não era o começo do fim, apenas mais um expurgo – tanto que, após os 800 mil mortos em Ruanda, tivemos tempo de matar mais 400 mil no Sudão.
Essa capa era um lembrete para me empurrar para fora da zona de conforto. E também uma verdade incômoda. Em 1998, quando estava cobrindo a guerra pela independência de Timor Leste, onde o exército indonésio matou – de bala ou de fome – mais de 30% da população da ilha, um vendedor me disse, ao saber de onde eu era, que ficava feliz pelo Brasil, visto como um grande irmão lusófono, apoiar a luta.
Não tive coragem de dizer a ele que o meu país nem sabia de sua existência e que se aqueles mauberes pardos vivessem ou morressem, praticamente nenhuma ruga de preocupação seria produzida. Duvido que entre vocês, leitores, muitos tenham ouvido falar do Massacre do Cemitério de Santa Cruz, em Dili, capital de Timor. Imagine quantos massacres mais, mundo afora, acontecem invisíveis.
Por que relatamos tão pouco mortes nesses locais? A discussão faz parte de alguns debates acalorados em jornalismo. Isso é de interesse público? Do nosso público? As pessoas se interessam em saber sobre isso? Como as pessoas vão se interessar sobre isso se não as informamos com a devida importância? É possível ter opinião formada (não preconceito de internet) sobre aquilo do qual nunca se ouviu falar? Enfim, “Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais”?
Some-se a isso alguns elementos. Na teoria, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito à dignidade por termos nascido humanos. Na prática, a vida de não brancos vale menos que a vida de brancos. E a vida de ricos vale mais que a vida de pobres. E as das mulheres menos que as dos homens. Simples assim. Se essa vida for de religião que cause estranhamento aos olhos ocidentais, pior ainda.
Outro elemento é a justificativa cultural, de que mortes em Nova Iorque, Roma, Paris e Londres causam mais impacto porque estão mais “próximas” de nós. Elas aconteceriam no mesmo “caldo cultural” em que estamos inseridos, com o qual temos uma histórica troca e convivência mútua e através do qual construímos nossa sociedade.
Sabemos quem são e como vivem e trabalham os moradores dessas cidades. E, a partir desse conhecimento, geramos empatia: nos projetamos no outro, entendemos a sua dor e conseguimos até senti-la.
Sim, mas se dividimos elementos simbólicos com a “metrópole” também temos elos com as outras “colônias”, que passaram por processos históricos semelhantes aos nossos e, como nós, têm que pagar, até hoje, seus tributos. Seus problemas econômicos e sociais são semelhantes e, não raro, suas dores também. Damos as costas ao Sul e nos projetamos apenas ao Norte, sonhando, talvez um dia, em sermos reconhecidos como parte da mesma civilização ocidental da qual não fazemos parte.
Não é inato um jovem brasileiro se interessar mais por Miami do que por La Paz. Ele aprende isso. Da mesma forma que aprende que a África, boa parte da América Latina e o Sul da Ásia são locais em que a vida não vale muita coisa, em que selvagens se matam desde sempre, como se as marcas da colonização e os processos políticos e econômicos globais, somados à ignomínia dos seus líderes locais, não valessem de nada.
Se eles tivessem oportunidade de conhecer o outro, as coisas seriam diferentes.
Uma menina-bomba, com cerca de dez anos de idade, teria se explodido, levando 20 pessoas consigo em um mercado na cidade de Maiduguri, norte da Nigéria, área de atuação do Boko Haram – milícia fundamentalista que deturpa os ensinamentos do islamismo em sua luta por poder. Ganhou pouca atenção no noticiário.
Da mesma forma, provavelmente você nunca ouviu falar de Ricky.
Tive o prazer de conhecê-lo há alguns anos. Sua história é incrível. Ele foi raptado e escravizado quando criança pelo Exército de Resistência do Senhor, em Uganda – um grupo fundamentalista que deturpa os ensinamentos do cristianismo em sua luta por poder, liderado por Joseph Kony, que se dizia porta-voz de Deus. Os meninos passavam por lavagem cerebral para se tornar soldados e, as meninas, para servir de escravas sexuais. Ele conseguiu fugir, graduou-se e criou a Friends of Orphans, uma organização não-governamental que luta para reintegrar esses jovens à sociedade.
Disse-me que não há como alguém conhecer uma criança que foi escravizada para matar e morrer e aquilo não mudar a vida dessa pessoa definitivamente. Porque o relato levaria a perceber que todos aqueles que matam em nome de Alá ou Jeová, na verdade, não acreditam neles. E que mesmo esses “combatentes” não são bestas-feras, mas pessoas transformadas em máquinas de guerra. Às vezes em nome daquilo que enche o tanque de nossos carros, às vezes em nome daquilo que brilha em dedos e pescoços.
Entramos na rede e, em um pé de página, a Anistia Internacional denuncia que os açougueiros do Boko Haram podem ter matado centenas, em sua maioria mulheres, crianças e idosos, na Nigéria. Faltam braços para apurar e checar a informação ocupados com outros assuntos. Alguns importantes e que também são de interesse público. Outros, nem tanto.
Temos afinidade com aquilo que nos é mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que a libertação de 150 escravos que sangram na Amazônia para produzir boi que muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de um jovem sequestrado em nossa cidade.
Mas todos sabem o que é uma criança. É duro, portanto, imaginar que não desperte sentimentos. Talvez isso ocorra por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer qualquer coisa para resolver o problema – mesmo que a indignação com a história de vida daquela criança africana possa te levar a ajudar na melhoria da qualidade de vida das crianças que estão ao seu lado.
Talvez a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar perdido numa cama na beira de estrada depois de uma hora de sexo forçado ou coberta de sangue após um dia de confronto armado ou explodida em mil pedaços após um ataque suicida não é uma coisa fofa de se ver. Pelo contrário, para muitos é tão repugnante a ponto de transferirem a culpa pelo ocorrido para a própria vítima que “se deixou ficar naquela situação indigna aos olhos de Deus”.
Mas a discussão não é apenas sobre a distante África, mas também sobre as periferias de nossas cidades que ficam logo ali. Em São Paulo, no Rio e em tantas outras, há uma matança de jovens, negros e pobres – segundo as estatísticas do poder público. Mas desde que seu sangue não respingue nos outros, tudo bem.
É impossível comparar tragédias pelo número de mortes, uma vez que uma única morte pode compor uma tragédia.
E a indignação por algo não exclui a indignação por outra coisa.
Mas jogar para baixo do tapete os incômodos que também dizem respeito a todos nós, não fazem eles desaparecerem.
Portanto, busquem informação na internet para além de sua zona de conforto. Não fiquem esperando que a mídia sirva você de bandeja. Você não defende tanto sua autonomia, seja independente, vá atrás! Mas também exijam de nós, jornalistas, que tenhamos coragem de oferecer informação que as pessoas não querem ler a despeito da audiência, da circulação e de outras formas de medir o “interesse público”. Ou seja, que divulguemos o que vocês não querem ler.
Por fim, dei de presente a capa da revista para uma amiga que estava em seus primeiros passos no jornalismo. Não que eu não precise mais do lembrete, a ética é o exercício diário da memória. Mas aquilo é muito forte para ficar na memória de uma pessoa só. Torço para que a geração dela, inspirada em nossos erros e acertos, seja melhor que a nossa.