No Cimi
O final de semana foi de perplexidade e apreensão para as famílias Guarani que vivem no Morro dos Cavalos, aldeia Itaty, próximo à Florianópolis, a capital de Santa Catarina. A tarde de sábado começava tranquila e seca, depois de dias e dias de chuva. O povo descansava, alguns sentados à porta de casa, outros dormindo, quando uma caminhão e vários carros entraram terra adentro. Ouviram-se tiros, rojões e gritaria. Vários homens desceram e entraram na casa que fica do outro lado da estrada, há pouco tempo entregue ao povo Guarani como parte das terras devidas na demarcação. Pois eles invadiram o lugar e lá ficaram, iniciando um churrasco.
Perplexos, os Guarani iniciaram um trabalho de aviso a amigos e militantes sociais para que fossem até a aldeia em apoio às famílias. Já não é de hoje que a cacica Eunice Antunes vem recebendo ameaças de morte, e tampouco essa é a primeira vez que pessoas entram nas terras dos Guarani fazendo algazarra, tentando intimidar. Mas, aquele fato específico, na tarde de sábado, parecia fora de qualquer padrão. Mais tarde, soube-se, através de informações do CIMI/SC, que os invasores ali estavam capitaneados por um ex-morador do lugar, que teve seu pedido de reintegração negado no último dia 09 de outubro. Então, por conta própria decidiu retomar a casa, dizendo que de lá tinham de sair os Guarani.
A Polícia Federal, que foi chamada pelos Guarani, só chegou ao local no início da noite, acompanhada de policiais militares e da polícia rodoviária. Depois de muita conversa, permitiram que quatro homens ficassem na casa para novas conversas no dia seguinte. Mais apreensão na aldeia, visto que haveriam de passar uma noite com os invasores dentro das terras. Somente na tarde de domingo eles finalmente saíram da casa, mas não há garantias de que fiquem longe e deixem a propriedade em paz.
A terra do Morro dos Cavalos tem sido alvo de frequentes ataques e os Guarani sabem muito bem de onde eles vêm. Desde que começou o processo de demarcação do território eles enfrentam a fúria de algumas pessoas que se dizem proprietárias das terras e que não aceitam entregá-las para os indígenas. Essas pessoas já tentaram jogar as famílias vizinhas contra os Guarani, buscaram desqualificar os profissionais que fizeram os laudos antropológicos e aliaram-se a mídia comercial para realizar uma campanha sistemática contra os indígenas. Nessa cruzada encontram no grupo RBS um forte companheiro. Não são poucas as reportagens que se repetem na TV e nos jornais do grupo, buscando gerar preconceito e ódio contra os Guarani.
Durante as obras de duplicação da BR 101, por muito tempo esses veículos de imprensa inculcaram na opinião pública que eram os Guarani os que impediam a construção da estrada, mostrando-os como um atrapalho ao progresso do estado e responsabilizando-os pelas sucessivas mortes que aconteciam na estrada não duplicada. Não mostravam os argumentos nem a visão dos Guarani sobre o tema, e conseguiram gerar falsas informações, fomentadoras de discriminação.
Outro argumento bastante usado pelos veículos de imprensa é o de que esses Guarani não são de Santa Catarina, são do Paraguai, e que por isso, não teriam direito à terra. Ora, a história já registra a presença dos indígenas nessas terras muito tempo antes da chegada dos portugueses e também é sabido que é da cultura Guarani caminhar pelo território, nunca ficando fixa em um mesmo lugar. Logo, está mais do que comprovado de que essas eram terras históricas dos Guarani. Se os brancos invadiram os territórios e expulsaram os nativos do lugar, não é culpa deles. Hoje, com a luta pela retomada do território original é mais do que direito dos Guarani ocupar o que é deles, ainda que seja apenas um pequeno pedaço.
O trabalho de desintrusão das terras tem sido dificultoso e lento. A Funai garante apenas o pagamento das benfeitorias e as famílias que estão tendo de deixar suas casas querem também o pagamento pela terra, pois muitos deles a adquiriram de boa-fé. Essa é uma batalha que travam com o governo. Por outro lado, há outras famílias que ainda não receberam o dinheiro da indenização e isso leva a muita revolta. Essa demora em resolver a questão acaba também servindo de combustível para a explosão de preconceitos e violências na região.
Na última semana o jornal Diário Catarinense publicou nova reportagem, desta vez falando sobre a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa contra a Funai, que colocaria em questão a demarcação da terra Guarani. Esse tipo de coisa aprofunda na opinião pública a ideia de que os indígenas é que são os vilões da história, colocando as reivindicações das poucas famílias que seguem não aceitando a retirada em primeiro plano. É importante lembrar que a maioria das famílias já aceitou a indenização.
A cacica Eunice acredita que esse tipo de incitação promovida pelos jornais e pela televisão ajuda a criar esses conflitos. As pessoas se sentem respaldadas quando percebem o apoio da mídia comercial. Muitos interesses estão em jogo e o principal dele é especulação com a terra.
A Comissão Nhemonguetá, que reúne os caciques Guarani de Santa Catarina divulgou nota também responsabilizando a ação da mídia, apontando o Diário Catarinense como co-responsável pelo ataque. Igualmente solicitam à Presidenta Dilma Rousseff que assine de uma vez o Decreto de Homologação daquela terra indígena, o que permitirá o pagamento das indenizações aos posseiros, encerrando a questão.
O fato é que Santa Catarina, justamente pela omissão governamental, que prolonga a agonia e não assina o decreto de homologação, está colocada no mapa da violência explícita contra os indígenas, assim como o Mato Grosso do Sul, a Bahia, o Pará. Ações de jagunços, que pareciam ser coisa do passado, estão acontecendo sistematicamente no Morro dos Cavalos e as famílias estão sem proteção. E, aliada a essas ações criminosas, está em curso uma cruzada sistemática, via meios de comunicação, de demonização, desqualificação e deslegitimação. Como num teatro do absurdo, os verdadeiros donos das terras são os que precisam provar, a cada dia, que são filhos desse território.
Nesse fogo cruzado, os Guarani estão de prontidão e dispostos a defenderem o seu direito de viver em paz. O ataque desse final de semana terminou, mas todos sabem que não será o último. Até porque todas essas ações estão orquestradas com a investida que acontece em nível nacional de aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que pretende rever todas as demarcações de terras indígenas já feitas no país. O Brasil do século XXI parece disposto e seguir seu caminho eliminando os indígenas do território, invadindo suas terras para o bem do agronegócio.
É a luta de classe nítida e clara, uma vez que os povos originários do Brasil estão em luta por outro projeto de país e de mundo.