Frederico Füllgraf, especial para o Brasil 247
Eleito com apenas 36,6% dos votos e menos de 1,5% à frente do segundo colocado, Jorge Alessandri Rodríguez (35,275), após uma campanha extremamente polarizada e renhida, mas ratificado com 81,38% dos votos pelo Congresso chileno, em novembro de 1973, o médico Salvador Allende Gossens assumia o poder no Chile à frente de uma coligação de centro-esquerda, formada pelos partidos Socialista, Comunista e o social-democrático Radical, conhecida como Unidade Popular.
Durante três anos, Allende tentou implementar seu programa de campanha, cujo foco era a nacionalização de setores-chave da Economia – sobretudo o cobre, controlado por multinacionais dos grupos Rockefeller e Rothschild –, a aceleração da reforma agrária – legada por seu antecessor democrata-cristão, Eduardo Frey Montalva, e baseada no modelo da pequena propriedade de agricultura familiar -, o congelamento dos preços dos alimentos; o aumento continuado dos salários dos trabalhadores – pagos com a emissão de dinheiro novo – e a reforma da Constituição, com vistas a um sistema parlamentar unicameral.
Contudo, desde seu início, as iniciativas do governo foram bloqueadas no Congresso e contestadas nas ruas – processo radicalizado com greves de caminhoneiros, desabastecimento, atentados a bomba e assassinatos perpetrados pelo movimento fascista Pátria & Libertad, que culminaria na devastação da Economia e a quebra da legalidade democrática.
Enquanto, por um lado, o governo atendia as reivindicações salariais e financiava a expansão do setor público com a emissão de dinheiro novo, por outro, as classes abastadas e seus partidos da direita radicalizaram a sonegação, reduzindo drasticamente a arrecadação tributária e aumentando o déficit público. Em 1972 – com um perigoso ambiente inflacionário de 173%, que em meados de 1973 saltava para 413%, gerador do crescimento negativo de 5,57% – o choque de forças tirava a Economia dos eixos, comprometendo o projeto allendista da construção de uma democracia socialista pela via pacífica.
Em plena campanha eleitoral de 1970, o governo Richard Nixon, assessorado por Henry Kissinger, já articulava a neutralização de Allende mediante a provocação de uma guerra civil. Sua primeira intervenção foi o assassinato do general constitucionalista René Schneider, comandante do Exército. Uma vez eleito Allende, Nixon e Kissinger implementaram o plano insurrecional “Track” 1 e 2, financiando a desestabilização da Unidade Popular com dezenas de milhões de dólares, investidos na guerra midiática e em atentados da extrema direita; plano escancarado trinta anos mais tarde com a desclassificação dos documentos da CIA (“The Pinochet File”), tornados públicos e comentados em 2003 pelo jornalista Peter Kornbluh (leia também: Frederico Füllgraf, Especial: El Mercurio no banco dos réus | GGN).
Nas eleições parlamentares de março de 1973, a Unidade Popular obtém 45% dos votos, fazendo naufragar o plano da direita, que pretendia alcançar 2/3 e assim destituir o governo.
Três meses depois, militares sublevados ensaiam o golpe com o “tancazo” fracassado de final de junho, durante o qual é assassinado o jornalista argentino, Leonardo Henrichsen, que filma sua própria morte.
No auge da crise institucional, que Allende pretendia debelar com a convocação de um plebiscito, em 10 de setembro de 1973, na manhã do dia seguinte, em Valparaíso, a Marinha deu início ao golpe de Estado que, mediante tortura, o assassinato de 4 mil oposicionistas e o exílio de 200 mil chilenos, implantou uma das mais sanguinárias ditaduras da história latino-americana.
Em diversas ocasiões Allende advertira que, caso fosse alvo de um golpe, não renunciaria e só abandonaria morto o palácio La Moneda.
Eis aqui a crônica de seu último combate, defendendo a Democracia:
* * *
Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973.
São 6h da manhã quando Hugo García, guarda-costas do presidente, assume seu posto na avenida Tomás Moro nº 200, no distrito de Las Condes.
Quinze minutos depois, toca o telefone.
Na linha, o general Jorge Urrutia – comandante da polícia militarizada, Carabineros – pede para falar urgentemente com o presidente. García desperta Allende que, algo irritado, retruca,“¿qué pasa?”.
Faz frio. Sonado, Allende joga um robe-de-chambre sobre os ombros e vai atender o telefone.
Do outro lado da cidade, o telefone soa nervosamente na residência de Roberto Aurelio Sanchez Celedón, assessor de Allende na Força Aérea. O secretário do comandante do Exército, general Augusto Pinoche, recém-nomeado por Allende como sucessor do general Carlos Pratts, pede a Sánchez Caledón que venha imediatamente ao ministério da Defesa para receber um comunicado.
Na residência oficial, o ouvido colado ao telefone, Allende é informado que no porto de Valparaíso, sua cidade natal, a Marinha acaba de sublevar-se.
Alarmado, junto com Joan Enrique Garcés – cientista político espanhol e seu principal assessor – Allende dispara telefonemas aos três comandantes-em-chefe das FFAA, mas nenhum deles atende.
Sánchez Celedón chega ao ministério da Defesa. O secretário lhe entrega uma ordem de Pinochet: Allende deverá abandonar o país em um avião especialmente fretado.
São 7h35 e o oficial da aeronáutica se apressa para encontrar o presidente, mas este acaba de embarcar no carro dirigido por seu chofer, Julio Soto, rumo ao palácio La Moneda, no coração de Santiago.
Allende pede a Soto que aperte o pé no acelerador. Ele quer chegar ao La Moneda antes dos golpistas da Marinha.
Colado à viatura do presidente, um comboio de mais três carros, com quinze homens do GAP a bordo, desce a Costanera do rio Mapocho em direção ao centro; os pneus chiando no asfalto semi-úmido.
Estranha paisagem: não há viv´alma nas ruas, Santiago jaz aos pés da cordilheira como cidade-fantasma.
Os homens do GAP – corpo de jovens guarda-costas que contava com aproximadamente quarenta integrantes, conhecido como “Grupo de Amigos do Presidente” – levam suas AK-47 e sub-metralhadoras no colo; os dedos no gatilho.
Enquanto a caravana se aproxima do palácio do governo, Allende especula se Exército e Carabineros estão com o Governo. Contar com seu apoio significará sufocar o motim da Marinha.
São 8h e, um a um, os homens do presidente vão chegando ao La Moneda. Primeiro, Arturo Jirón, chefe da equipe médica e ministro da Saúde. Entre os assessores diretos estão Joan Garcés, Carlos Jorquera – chefe de comunicação do presidente – mas também oficiais da guarda do palácio, integrada pelos Carabineros.
Então Allende fala ao rádio pela primeira vez, informando o país do motim, que ainda supõe circunscrito apenas à Armada. Jorquera pergunta ao presidente, onde estará o general Pinochet, e este responde: “El pobre Pinochet debe estar preso!”.
Menos de 48 horas atrás, no domingo, dia 9, Pinochet reunira-se com ele na residência de Tomás Moro, oportunidade na qual o general lhe reiterara sua “lealdade”, mas fazendo um reparo. Allende escolhera o día 10 de setembro para anunciar um plebiscito para resolver a crise política, garantindo que, se perdesse a consulta popular, não hesitaria em demitir-se. Pinochet então lhe pediu que adiasse seu anúncio para depois do dia 11 e Allende confiou em sua palavra.
Mal termina sua alocução e as rádios da direita formam cadeia e transmitem o primeiro comunicado dos golpistas. Paralelamente, tanques atiram contra a Rádio Nacional e invadem a Rádio da Universidade Técnica, as torres transmissoras das rádios Corporación e Portales são bombardeadas por aviões. Agora, observado por Joan Garcés, seus dedos tamborilam nervosamente sobre o tampo da escrivaninha. A ficha cai, o milico o tinha traído!
Às 9h Isabel Allende Bussi, filha do presidente, chega ao Moneda pela entrada Morandé, 80. Ela e sua irmã Beatriz, assessora de Allende, não querem deixar sozinho seu pai.
Desde as 8h45, os comandantes de Marinha, Exército e Aeronáutica se comunicam por rádio: Pinochet instalado na central de telecomunicações de Peñalolén; o almirante Patricio Carvajal – junto com os generais Sergio Nuño, Ernesto Baeza e o general da aviação, Nicanor Díaz Estrada – no ministério da Defesa, a poucos metros do Moneda; e o comandante da Força Aérea, Gustavo Leigh, na Academia de Guerra, em Las Condes.
Suas conversas pelo rádio, aqui reproduzidas no original e grampeadas por autor até hoje anônimo, deixam entreouvir o ranço autoritário e golpista e a ironia assassina de Pinochet:
“Atención Puesto 1, Puesto 1 de Puesto 5, adelante, cambio.
– Puesto 1, Puesto 1 a Puesto 5, adelante, cambio.
– Carvajal: Patricio necesita hablar con Augusto.
– Pinochet: “Augusto escuchando, Augusto escuchando”.
– Carvajal: “Allende está en La Moneda”
– Pinochet: “Entonces hay que estar atentos, matar la perra se acaba la leva”.
– Carvajal: -Ellos están ofreciendo parlamentar.
– Pinochet: -Rendición incondicional, nada de parlamentar. Rendición incondicional.
– Carvajal: -Muy bien, conforme. Rendición incondicional en que lo toma preso, ofreciéndole nada más que respetar la vida, digamos.
– Pinochet: -La vida y su integridad física y en seguida se le va a despachar para otra parte.
– Carvajal: -Conforme, o sea que se mantiene el ofrecimiento de sacarlo del país.
– Pinochet: -Se mantiene el ofrecimiento de sacarlo del país… Y el avión se cae, viejo, cuando vaya volando. (sic!!)
– Carvajal: -Conforme… conforme (Risos).
O corpo da guarda do La Moneda, que até ali protegia o presidente, se retira, e nesse momento Allende percebe que acabava de ocorrer um golpe na hierarquia de comando dos Carabineros, neutralizado pelos golpistas.
Às 09h10, o presidente consegue comunicar-se com a Rádio Magallenes, a única emissora constitucionalista ainda no ar, e faz seu último discurso – “Las grandes Alamedas”:
“Seguramente ésta será la última oportunidad en que pueda dirigirme a ustedes. La Fuerza Aérea ha bombardeado las torres de Radio Portales y Radio Corporación. Mis palabras no tienen amargura sino decepción. Que sean ellas el castigo moral para los que han traicionado el juramento que hicieron: soldados de Chile, comandantes en jefe titulares, el almirante Merino, que se ha autodesignado comandante de la Armada, más el señor Mendoza, general rastrero que sólo ayer manifestara su fidelidad y lealtad al Gobierno, y que también se ha autodenominado Director General de carabineros. Ante estos hechos sólo me cabe decir a los trabajadores: ¡Yo no voy a renunciar!”
Com a mão direita levantada, Allende aparece à janela de seu gabinete, de frente para a Plaza de la Constitución, e se despede do Chile.
Às 10h15, o presidente convoca uma última reunião com seus ministros, escolta, assessores e filhas: “Os jovens que não sabem usar armas, podem ir-se, assim como as mulheres, que não têm nada que fazer aqui”. Também pede a Joan Garcéz, seu assessor espanhol, que abandone o palácio :”Você é estrangeiro, não pode ficar aqui e, além do mais, eu preciso de alguém que conte o que aconteceu aqui”. Com suas duas filhas tem uma conversa enérgica, principalmente com Beatriz, que está grávida de sete meses. Mas “nem pensar!”, ambas negam-se a abandonar o palácio.
Só minutos depois, quando tanques tomam posição na Plaza Constitución e disparam contra o La Moneda, é que Isabel e Beatriz cedem e se despedem do pai com um último abraço apertado, represando as lágrimas.
Das 108 pessoas que tinham acudido ao palácio, agora restavam apenas umas 40, sendo 30 do GAP, com poucas armas.
Pelo rádio, os golpistas anunciam que às 11h vão bombardear o La Moneda, enquanto tanques, metralhadoras pesadas e morteiros atacam o palácio desde as ruas laterais.
Para impedir o cerco, Allende ordena aos GAP ocuparem o 7° e 8° andares do ministério de Obras públicas, contíguo ao palácio. O presidente veste um casaco e empunha seu fuzil dado de presente por Fidel Castro, em 1971.
Às 12h05, quatro caças Hawker Hunter invadem o céu sobre o La Moneda, disparando mísseis Sura P-3. Impedido de sair à rua, o cinegrafista alemão, Peter Hellmich, filma a sequência desde a janela do banheiro de seu apartamento, no Hotel Carrera, do outro lado da Plaza Constitución. Únicas, suas imagens rodaram o mundo e quarenta e tantos após o golpe são de prender o fôlego e as batidas cardíacas.
Fazendo tabela com os bombardeios, os generais Carvajal e Baeza ligam mais uma vez a Allende, tentando convencê-lo a renunciar e entregar-se, mas Allende nega-se.
Dali e de dentro do palácio, do meio-dia às 3h da tarde, trinta homens mal armados resistem contra o Exército, a Marinha e a Aeronáutica do Chile, armados até os dentes.
Quando acabam suas munições, os allendistas rendem-se, abandonando o palácio com mãos na nuca e recebidos com pontapés e coronhadas.
Na rua Morandé, em frente a um tanque estacionado, são sujeitados ao chão, a boca contra o asfalto. O oficial do blindado pede permissão ao general Javer Palacios – chefe da operação de tomada do palácio – para “passar o tanque sobre os comunistas”. Palácios não dá permissão, mas o sadismo do pedido é o prenúncio da truculência que se abaterá sobre o Chile até 1990.
Às 16h, uma ambulância dos bombeiros chega para apagar o incêndio no La Moneda.
Coberto com uma manta boliviana, o corpo de Salvador Allende, com o crânio devastado, é retirado dos escombros e transladado ao Hospital Militar.
Allende foi exumado duas e sepultado três vezes.
Após seu primeiro enterro, virtualmente anônimo, porque a ditadura temia uma insurreição, poucas horas após seu ataúde ter baixado à terra, foi desenterrado e roubado por um grupo de moradores de um bairro pobre de Viña del Mar, para se certificarem de que era mesmo seu presidente. Surpreendidos por militares, abandonaram o féretro em plena rua e Allende foi reconduzido à sepultura.
Suicídio ou fuzilamento?
Dizia Jorge Teillier, em Poemas secretos: “Para hablar con los muertos / hay que saber esperar: / ellos son miedosos / como los primeros pasos de un niño. / Pero si tenemos paciencia / un día nos responderán / con un regreso oscuro de pájaros”.