Indígenas e Funai discutem o futuro na semana de Mobilização Nacional Indígena e a Luta pela Terra
por Felipe Milanez, na Carta Capital
Às vezes, na Amazônia, parece que a melhor forma de explicar a articulação de interesses contra a floresta é por uma grande teoria da conspiração. Tal é a aparente coincidência de fatos que se somam e que visam atingir aqueles que defendem o meio ambiente. Nessa semana em que aconteceu a Mobilização Nacional Indígena e a Luta pela Terra, visitei duas grandes lideranças do povo Gavião Akratikateje, os Gaviões da Montanha, no sul do Pará, Ruivaldo Valdenilson (Nenzinho) e Katia Silene, filhos do grande líder Hõpryre, conhecido como Payaré, falecido há um ano.
Nessa semana, enquanto na Terra Indígena Mãe Maria os Gavião em cada aldeia estiveram reunidos discutindo como reagir à ofensiva da Vale, que decidiu cortar o repasse que fazia ao povo em razão dos impactos da atividade da mineração, a Eletronorte decidiu [realizar] uma reunião em Belém para, segundo os indígenas, pressionar as lideranças a autorizarem a construção da Usina Hidrelétrica de Marabá, que vai alagar parte do seu território tradicional. A falta dos recursos essenciais suspensos pela Vale provocou uma reviravolta nas comunidades; ao mesmo tempo apareceu uma solução “para todos os problemas” que seriam os royalties da usina. Confusos, os Gavião se reuniram.
Acompanhei dois dedicados funcionários da Funai, Juliano Almeida e Eric Oliveira, que foram auxiliar os indígenas a compreenderem esse momento — vendo eles atuarem, me convenci mais ainda de que não há dúvidas de que a Funai é um órgão essencial no auxilio aos indígenas na defesa de seus direitos.
Acontece que Payaré foi o grande líder do grupo dos Gavião que foram expulsos de suas terras pela Eletronorte para a construção de Tucuruí. Em 1989, Payaré liderou sue povo para ingressar com uma ação judicial contra a Eletronorte, pedindo indenização e a compra de uma área equivalente à área inundada. Os Gavião da Montanha venceram a ação em 2003, mas até hoje não receberam nem a indenização, nem uma nova área.
Nenzinho e Kátia, filhos de Payaré, como dito acima, são comprometidos em defender os ideais de seu pai. O primeiro é uma liderança de destaque na região, enquanto Kátia é a primeira mulher a assumir a chefia de uma aldeia dos Gavião: “meu pai era um lutador e também queria acabar com o machismo do nosso povo, por isso me nomeou”, ela me falou.
Da nossa longa conversa, apresento abaixo trechos dos depoimentos de Nenzinho. Kátia, que é a primeira mulher a ser cacique dos Gavião, estava embarcando para o Rio de Janeiro para unir-se a um protesto contra a mineradora Vale. Os Gavião tiraram fotografias ao lado dos trilhos que cortam a Terra Indígena Mãe Maria com faixas contra a Vale — protesto que motivou uma ação de reintegração de posse. O juiz deu a liminar no sábado 18, determinando que a polícia se dirigisse, neste Dia do Índio, domingo 19 de abril, para expulsar os indígenas das proximidades do trilho.
Sobre a Vale, disse Kátia, que se chama, no seu nome [idioma], Tonkuré Jonpti Akrikatejê.
A Vale deixou conflito. A Vale trouxe o impacto de separação, desunião e desigualdade. É um bicho papão. Um demolidor da natureza, máquina de acabar com tudo.
Ela criou expectativa, dando dinheiro e criando dependência. Mas ela nos trata como um animal. É assim que somos vistos. O que é a Vale? Um bicho cabeludo que mora no mato. É o bicho papão que vem comendo todo mundo. Hoje somos um povo infeliz. Preferíamos ser o que a gente era. Preferia não ter conhecido Vale. Eu tenho tanta coisa para dizer. Eu quero desabafar.
Apesar da imensa pressão sobre os Gavião — basta dar uma olhada pelo google para encontrar o quadrado verde próximo a Marabá cercado de um imenso desmatamento — a força desse povo é impressionante. Os jovens estudam direito, administração, medicina, jornalismo, pedagogia, etc., fazem filmes, têm um time de futebol profissional, estão articulados com os movimentos sociais na região e participam de debates, diálogos, seminários. Não será fácil essa articulação quase “conspiratória” que visa extrair minérios por suas terras (pela ferrovia) ou extrair energia do rio que banha as suas terras ser construída sem um acordo com os Gavião — ainda que essas forças estejam operando de maneiras sujas como a corrupção de lideranças, ameaças, intimidações.
Nessa semana da mobilização indígena, apresento um belo depoimento de Nenzinho, com pequenas intervenções de estilo. É hora dos povos indígenas serem ouvidos.
Depoimento de Ruivaldo Valdenilson (Nenzinho)
1: “pagam hotel chique para nos convencer a autorizar que destruam nosso território”
A Eletronorte me levou para discutir a construção de uma usina que vai afetar nosso território. Cheguei ontem de Belém. Lá a gente ficou hospedado no Hotel Sagres. Para mim, um hotel luxuoso. Estranhei de cara. Numa crise dessas que estamos hoje, para que ficar num hotel daqueles? E ninguém sabe quem pagou a viagem.
Foi quando começou a reunião, às nove da manha, que fui me deparar com a realidade. Era uma reunião política reunindo vários deputados, vereadores aqui da região, prefeitos em torno de Marabá. Eles fizeram uma exposição do projeto da usina. Depois, cada um deputado, prefeito, presidente de associação, tiveram a palavra e todos eles apoiam a construção da hidrelétrica.
Todos os que estão em volta querem esse falso progresso, essa ilusão da promessa de melhorar de vida que a Eletronorte faz. São todos os políticos que estão pautados em algum beneficio pessoal, uma saída financeira e emergencial para eles, o que está em jogo ali é politica econômica, desenvolvimento. Vi que todos os políticos estão querendo ganhar, e há toda essa pressão contra as comunidades indígenas.
Na reunião, a Eletronorte deixou claro que o único empecilho para usina acontecer é que os índios ainda não concordaram. Na minha frente.
Serviu para abrir os olhos que, politicamente, aqui na região, não temos parceiros. E a resistência tem que partir daqui de dentro do nosso povo.
Nessa reunião pudemos externalizar a nossa insatisfação com esse projeto. O que vemos nesse projeto é uma consequência do próprio projeto da Vale: traz negatividade para as comunidades indígenas.
O Palocci, da Eletronorte, fez uma proposta de 30 dias para a gente autorizar o estudo do componente indígena. Se após 30 dias a gente não aceitar, eles dizem que não querem mais conversar. E, se aceitarmos, vão fazer o estudo antes da concessão, e a empresa que fizer o estudo vai ganhar o consórcio, um contrato de 30 anos. Disse que depois do EIA-RIMA, a comunidade ainda poderia aceitar, ou não, o estudo. Essa foi a proposta.
O que eu vejo nessa colocação da diretoria da Eletronorte: são aquelas promessas que tentam ludibriar as lideranças indígenas; falam que a Vale, que é quem paga manutenção da saúde, atividade produtiva, não está mais fazendo isso. Bem nessa hora, a questão da Eletronorte, que estava parada, vem à tona.
A Eletronorte diz que o empreendimento pode ser muito bom para nós, que vamos ter recursos para o resto da vida, dinheiro perpétuo. Promessas que se a gente for analisar pelo histórico deles, das promessas com as outras barragens e etnias, não foram cumpridas.
Foi um momento politico deles, mas pedimos o nosso momento, para nos reunirmos sozinho nas nossas aldeias. E eu tive a oportunidade de demonstrar a minha insatisfação.
Mas esse estudo deles é como receita de bolo, já vem pronto. Queremos parâmetros para as comunidades indígenas decidir se vai ser bom ou não. A Eletronorte faz o estudo biológico, da diversidade, mas não faz o social. O impacto não acontece só na biodiversidade, mas no social também. Será que um projeto de casa de farinha, criação de porco, vai suprir as necessidades indígenas? Para mim existem coisas maiores.
Se for colocados certos interesses das comunidades, não sei se a Eletronorte vai se comprometer. Eles prometem, mas depois que o projeto está implantado, é outro cenário.
Muito mais vantajoso do que as promessas da Eletronorte é viver a vida tranquila.
2: Os impactos do desenvolvimento
O impacto da Vale no nosso povo fez com que as comunidades se fragmentassem.
Quero mostrar, para a Vale e a Eletronorte, o valor que tem a terra, um peixe, um animal. Essa é a única reserva que existe para nós.
Nós, seres humanos, dependemos da natureza. Não venham dizer que aqueles que estão no cargo de politico, empresário, não estão nem ai. Agora sim, mas lá na frente eles também vão sofrer as consequências desses impactos.
Em razão desse crescimento acelerado e desorganizado, sem se preocupar com a natureza, vão fazer com que a terra sofra. Um dia essa terra vai secar, não vai ter árvore, vai ficar um imenso deserto e essas pessoas que estão achando que não têm nada a ver também vão sofrer. Um dia a natureza vai cobrar essa conta e quem vai pagar somos nos.
Tem que ter essa parceria com a natureza. Sem natureza não temos vida. Estamos cavando nossa própria ruína.
Não é só os povos indígenas que vão passar por isso, mas todos os povos. Nem a maior tecnologia do mundo vai fazer brotar água. Não vai ter mais árvore para que respiramos ar puro. Como vamos sobreviver no mundo desse jeito?
Quem paga essa conta é o povo, da classe baixa, os pobres. Nos é que pagamos essa conta.
3: A luta de meu pai
Meu pai lutou muito para ficar na nossa terra e não sair, quando fomos transladados. Foi a luta de um homem que não se curvou diante da ditadura militar.
Infelizmente, a força politica muito maior fez com que viéssemos para cá. Eu muito novo e não entendia essa luta. Mas ele nunca deixou de contar a historia para nos. Meu pai liderou o povo dele muito cedo, nas brigas, na guerra, e ele sempre mostrando o caminho. No dia que meu pai nos deixou, eu fiquei muito triste.
Com 10 anos de idade, mais ou menos, ele já era um líder. Ele teve que cuidar da mãe dele, a minha avó, porque seu pai já não estava mais vivo. Se embrenharam na mata fugindo da guerra para sobreviver. E conseguiram sobreviver. Fazer com que o povo dele sobrevivesse à guerra interna dos povos. Guerra de índios mesmo para enfrentar outra guerra maior que é o contato com o branco. Muita gente veio a morrer, e depois, a imunidade do índio é diferente da imunidade do branco. A gripe, a diarreia assolou muito, não teve como curar. Morreu muito índio desde esse contato.
Branco deixava espelho, facão, como se fosse uma troca: vocês se entrem e nós te presenteamos com isso. É exatamente o que acontece hoje com a Vale e a Eletronorte. Só é uma troca maior.
Meu pai mostrava para o povo não a vantagem de ganhar muito, mas de sobreviver do mato, da floresta, que é mãe que nos criou, da floresta tiramos nossos sustento.
Ele dizia que lutava contra a Eletronorte; o que está em jogo é a floresta, a natureza mãe que nos criou. Eles querem tirar isso tudo de nos e não podemos deixar que isso aconteça.
A Eletronorte precisa não só indenizar mas olhar para o povo indígena como uma sociedade que vive com a natureza.
Assista ao recado de Nenzinho Gavião: