Com o rompimento da barreira entre metáfora e concreto, a catástrofe torna o Brasil irrepresentável
Como não pensar, a cada dia, que a lama avança. Essa lama tóxica que mata gente, mata bicho, mata planta, mata histórias. Essa lama que engoliu um povoado chamado Bento Rodrigues, assassina o Rio Doce, avança pelo oceano, atravessa os estados e segue avançando. Essa lama que deixou meio milhão sem água. Essa lama venenosa que vai comendo o mundo como se fosse um organismo vivo. Essa lama morta que se move. E ao se mover, mata. Enquanto alguém toma um café, pega o ônibus, reclama do trânsito, faz um selfie, se apaixona, assiste a uma série do Netflix, se preocupa com as contas, faz sexo, se queixa do chefe, sente que o cotidiano não está à altura de suas grandes esperanças, briga no Facebook, faz planos para as festas de fim de ano, engole umas gotas de Rivotril, a lama avança. Enquanto escrevo, a lama avança. Piscamos, e a lama avança. Parece quase impossível pensar em algo além de que a lama avança. E ninguém pode afirmar até aonde a lama vai chegar.
É mais como um filme de imagens impossíveis, cada um entre seus muros, fronteiras cada vez mais enfarpadas, e a lama avançando. Dia e noite, essa lama que não dorme. Avançando. Talvez fosse necessário mais um movimento de vanguarda na arte, que desse conta do excesso de real da realidade. Da lama que avança. Concreta, espessa, tóxica. Inescapavelmente lama. Que Guernica poderá ser pintada diante da obra da Samarco, a mineradora que pertence à Vale (antes chamada “do Rio Doce”) e à anglo-australiana BHP Billiton? Precisamos de uma Guernica para representar o irrepresentável dessa lama que avança enquanto fazemos xixi.
Haveria de ter uma bienal das artes criando coletivamente representação diante da lama, em tempo real, uma bienal viva diante da lama morta que mata. Para que a lama que avança não pudesse ser esquecida para além dos que jamais poderão esquecê-la porque nela perderam quem amavam. Ou perderam um rio. Ou, no fio de voz do homem que conta para um repórter de TV que perdeu a fotografia do pai e da mãe, ele mesmo achando pouco, mas sentindo tão doído que era tanto. Não era carne, mas era história, história que dizia que ele teve um pai e uma mãe que um dia fizeram um retrato para se representar. E a lama comeu.
A lama avança. Não apenas como metáfora, como havia sido até 5 de novembro, quando a barragem se rompeu liberando todo o recalque. A lama avança matando Emanuely, Thiago, Waldemir, Claudio, Sileno, Marcos, Marcos Aurélio, Samuel, Mateus, Edinaldo, Daniel… Mais dois mortos ainda sem nome. Pelo menos 13 corpos já foram encontrados na barriga de baleia da lama. Treze gentes, com suas histórias, seus sonhos, seus desesperos, seus amores. Treze que se multiplicam por centenas que acordarão a cada dia com a faca do luto esburacando o peito.
E pelo menos oito desaparecidos, que um dia poderão ser cuspidos pela lama. Ou não. Oito que sumiram e que também eram amados por alguém e que também sonhavam e que também suavam e que também queriam. Oito de quem ainda se espera que apareçam para dizer que escaparam dos dentes da lama e para serem abraçados com força e para virarem histórias de superação ou conto de Natal. E há os peixes que são dimensionados em toneladas, e não parece possível compreender que vidas sejam dimensionadas em toneladas, apenas porque são outras vidas ou vidas de outros. Há as tartarugas. Há espécies que poderão deixar de existir, um tipo de vida que desaparece por inteiro, a pobreza máxima, insuperável, aquela para a qual não existe nenhuma possibilidade de Bolsa Família para resgatar. Há todas as plantas que não farão mais fotossíntese, árvores que já não respiram. Flores afogadas. Há o rio assassinado. O não rio.
E a lama avança.
Não como metáfora.
Mas também como metáfora. Enquanto a lama avança – “vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “não vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “alcançou o ninho das tartarugas-gigantes”, “praias são interditadas no Espírito Santo”… –, há uma lama metafórica que entra pela nossa boca e nos faz tossir. Mas a tosse não nos liberta, porque estamos intoxicados de lama. Essa lama que circula pelas veias desse corpo que chamamos de país.
A lama que nega a lama. Assim como Vale e BHP Billiton fingem que a Samarco é outra coisa que não elas mesmas. Assim como o governo federal finge que aplicar multas é uma demonstração de força, sem dizer que apenas 3% das multas são de fato pagas pelas empresas multadas, e sem dizer que não haverá dinheiro que possa dar conta da reparação. Nem mesmo os 20 bilhões de reais que o governo federal anunciou exigir na Justiça. Sem admitir, principalmente, que se uma barragem de rejeitos de mineração rompeu em Mariana é porque há algo (cor)rompido em todo o processo que permitiu que essa barragem rompesse. Algo que precisa ser corrigido já, porque há outras barragens, outras lamas, que podem avançar a qualquer momento porque há algo corrompido há muito que precede a lama que mata. E agora aquilo que era metáfora já não é.
Enquanto a lama que mata avança, outra lama que também mata, a lama que pode ser chamada de primordial, também avança. E avança rápido. Quando a lama que mata avançava havia 20 dias, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional, vale a pena prestar atenção nas palavras escolhidas para nomear essa comissão do Senado, aprovou um projeto do senador Romero Jucá (PMDB-RR)para acelerar a liberação de licenças ambientais para “empreendimentos de infraestrutura estratégicos para o interesse nacional”. Devido à pressão do momento, a exploração de recursos minerais foi retirada da lista dos projetos considerados prioritários. Mas a lista dos beneficiados pelo licenciamento facilitado não é nada pequena: obras dos sistemas viário, hidroviário, ferroviário e aeroviário, portos e instalações portuárias, energia e telecomunicações.
Não um projeto para tornar os processos de licenciamento ambiental mais rígidos e eficazes, menos sujeitos a corrupção e a pressões. Não um projeto para fortalecer os órgãos responsáveis, garantir monitoramento e informações independentes e ampliar as equipes de fiscalização. Não. Vinte dias depois de a barragem romper e a lama avançar sobre o corpo do país, essa comissão do Senado aprovou um “rito sumário”, que facilita a licença para as empresas e limita o prazo entre o pedido do “empreendedor” (mais uma palavra interessante) e o licenciamento ambiental a cerca de oito meses. Se o órgão responsável pelo licenciamento não cumprir o prazo, libera-se automaticamente. Sem qualquer análise sobre a vida, sobre o planeta, sobre o futuro. Porque, como declarou o autor do projeto, Romero Jucá, o licenciamento ambiental é o “vilão” dos grandes empreendimentos. Nesta lógica do senador, tão cristalina quanto a água do Rio Doce dificilmente voltará a ser, acabará se concluindo que a catástrofe de Mariana foi causada pelo excesso de rigor no licenciamento ambiental da obra da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton).
E a lama avança.
A quem serve esse projeto que avança no Senado, enquanto avança a lama que mata? Ao país, é o que dizem. É parte de algo batizado de “Agenda Brasil”, um pacote de propostas “com o objetivo de estancar a crise política e estimular o crescimento da economia”. Foi apresentado em agosto pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), como uma salvação para o Brasil e para a fragilizada presidente Dilma Rousseff (PT).
O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros. Mas é a lama que avança.
O Brasil precisa avançar, lembrou Renan Calheiros com pose de estadista, certo de que nenhum cidadão brasileiro que acompanhou sua trajetória nos vários governos e parlamentos da redemocratização possa ter qualquer dúvida sobre a veracidade de sua preocupação com o país, sobre o seu amor exacerbado pela Constituição, sobre o seu compromisso maior com o interesse público. Ele, investigado pela Operação Lava Jato; ele, o homem suspeito de ter pagado a pensão de uma filha com dinheiro de uma empreiteira; ele, que usou o avião da FAB para levá-lo a Pernambuco para fazer um implante de 10 mil fios de cabelo, a Força Aérea Brasileira a serviço de sua urgência de deixar de ser careca. E a Agenda Brasil avança, facilitando o licenciamento ambiental em nome não dos interesses individuais e privados, de forma alguma. Renan Calheiros e o grupo de senadores que aprovou o projeto garante que não se trata disso. E aquele que acredita que a lama jamais chegará a sua porta acredita.
A Agenda Brasil avança em nome do “interesse nacional”.
E a lama avança.
A comissão de nome interessante do Senado aprovou o projeto no dia 25 de novembro. No mesmo dia, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT-MG), também aprovou o seu na Assembleia Legislativa de Minas. Sim, ele, o homem que comanda o estado em que se iniciou aquele que é considerado “o maior desastre ambiental da história do Brasil” – e que, a depender das investigações da Polícia Federal, poderá ser promovido a “maior crime ambiental da história do Brasil”. O governador propôs acelerar o licenciamento ambiental, inclusive para mineradoras, porque, como todos sabem e o acidente da Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) provou, a demora no licenciamento ambiental é o grande problema do Brasil.
Não as pressões, a corrupção, os interesses privados acima dos interesses públicos, a precariedade dos estudos prévios e dos estudos de acompanhamento, a fragilidade do monitoramento, a indigência da fiscalização. Não. O problema do Brasil é que o licenciamento ambiental demora, o drama do país são esses ambientalistas que ficam exigindo que barragens como a do Fundão tenham monitoramento, fiscalização e um plano em caso de acidentes. Como governador diligente e preocupado com o meio ambiente, afinado com os desafios em debate na Conferência do Clima que se inicia em Paris, Pimentel resolveu o problema, em perfeita sintonia com os elevados princípios dos deputados mineiros que aprovaram o projeto.
Com o licenciamento ambiental acelerado, obviamente barragens não vão mais se romper matando gente, bicho, planta, rio. Faz completo sentido, quem haveria de discordar dessa lógica límpida como a água do rio Doce dificilmente voltará a ser? Tanto empenho e celeridade para quê? Para priorizar as grandes empresas, como empreiteiras e mineradoras, que por coincidência são também grandes financiadoras de campanhas eleitorais? Claro que não, garantem os que fazem as leis. Isso tudo é para o bem do Brasil. E aquele que se comove com as imagens dos soterrados pela lama no noticiário da TV, mas tem certeza de que a massa tóxica jamais chegará à sua porta, muito menos ao seu nariz, acredita.
E a lama avança.
Logo no dia seguinte ao rompimento da barragem, o secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas, Altamir Rôso, já havia se apressado em garantir, antes do início de qualquer investigação: “a Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) é uma das que mais se preocupam com segurança e com meio ambiente”. E, em seguida: “A Samarco (leia-se Vale e BHP Billinton) também é vítima”.
E a lama avança.
Mas ainda há quem acredite que ela jamais chegará à sua porta.
A Organização das Nações Unidas denuncia que as medidas tomadas pelo governo federal, a Vale e a BHP Billiton têm se mostrado “claramente insuficientes” para enfrentar uma catástrofe equivalente ao volume de 20 mil piscinas olímpicas contendo lama tóxica, que contamina solo, rios e sistemas de abastecimento em áreas superiores a 850 quilômetros e que não se sabe até onde vai chegar. A ONU declara que é “inaceitável” que se leve três semanas para divulgar que há risco tóxico na lama que avança. A ONU afirma que “o desastre é um trágico exemplo da falha na condução de negócios com relação aos direitos humanos e com relação à diligência para prevenir abusos”. Dilma Rousseff, a presidente que levou uma semana para sobrevoar (mais uma palavra interessante) a região daquele que é considerado o maior desastre ambiental do país que governa, nega qualquer negligência do seu governo.
Talvez o problema seja não a incompetência na prevenção e no enfrentamento da catástrofe, mas a incapacidade de a ONU compreender que o desenvolvimento é o grande “interesse nacional”. Em nome de uma causa maior, os obtusos precisam entender a necessidade de fazer sacrifícios, ainda que os sacrificados jamais sejam os que defendem a necessidade de fazer sacrifícios. Na posição de restos, os sacrificados não crescem. Submergem.
E a lama avança.
Assim como avança o novo Código de Mineração no Congresso. Uma parcela significativa dos deputados da comissão responsável pela sua criação recebeu doações de empresas ligadas à mineração. Mas, como aquele que acredita que a lama ainda não chegou à sua porta tem certeza, este é um mero detalhe que não corromperá o alto senso de dever cívico dos parlamentares. Na hora de legislar e decidir como proteger Brasil e os cidadãos brasileiros para que catástrofes como as das barragens da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) não se repitam, eles não pensarão em quem financiou suas campanhas, mas apenas no “interesse nacional”.
E a lama avança.
Em 24 de novembro, o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), outro nome para se prestar atenção, deu a licença de operação à barragem de Belo Monte, no Pará. A presidente do órgão, Marilene Ramos, afirmou durante o anúncio: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.
E a lama avança.
Três dias depois dessa frase lapidar da presidente do IBAMA, a empreiteira Andrade Gutierrez fechou acordo com a Procuradoria Geral da República, conforme informaram os principais jornais brasileiros, comprometendo-se a detalhar vários esquemas de corrupção, entre eles propinas envolvendo Belo Monte, uma obra estimada hoje em mais de 30 bilhões de reais. Pagamentos de propinas na obra da hidrelétrica já foram relatados em acordos de outras delações premiadas da Operação Lava Jato por executivos de empreiteiras que formam o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), contratado pela Norte Energia para executar a obra, e estão sendo investigados. Mas em Belo Monte o “interesse nacional” é tão imperativo que nem mesmo 23 ações do Ministério Público Federal denunciando violações à Constituição foram capazes de interromper a obra, que será julgada como “fato consumado”. Como escreveu o presidente da Norte Energia, Duílio Diniz de Figueiredo, após a licença de operação, “é um orgulho para o Brasil ver Belo Monte se tornando uma realidade”.
E a lama avança.
Ao anunciar a licença de operação, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a presidente do IBAMA afirmou que a Norte Energia tinha “atendido integralmente” às exigências, “menos 10%”. Dias antes, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) já havia dado o seu aval à licença de operação, apesar de mencionar uma série de pendências e descumprimentos de condicionantes. A mesma FUNAI que, em vez de ser fortalecida para que os povos indígenas afetados pela obra pudessem ter maior proteção diante da empresa, passou exatamente pelo processo contrário: teve seu quadro em Altamira reduzido de 60 para 23 funcionários, no período em que se construía uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
E a lama avança.
A palavra “condicionante” sofreu uma intervenção original no texto da Licença de Operação, em uma das interpretações recentes da língua portuguesa de maior criatividade, expressa por essa frase que abre uma nova página na literatura brasileira: “A validade desta LO (Licença de Operação) está condicionada ao cumprimento das condicionantes constantes no verso deste documento….”. Como se sabe, a língua é viva. E, assim, o que era condição para acontecer virou condição depois do acontecido.
Mas, assim como as autoridades do IBAMA e da FUNAI acreditam, aquele que acha que a lama jamais chegará à sua porta, muito menos à sua garganta, também tem certeza de que é justamente agora, quando a Norte Energia já conseguiu tudo o que quer, que a empresa fará questão de cumprir cada uma das suas obrigações legais. Faz todo o sentido. É sempre um prazer constatar que as ações do governo estão em sintonia com o pensamento lógico.
A barragem de rejeitos de mineração da Samarco (leia-se Vale e BHP Billiton) que rompeu tinham como condicionante um plano de contingência.
E a lama avança.
Belo Monte começa a encher o lago num momento em que a região passa por uma seca histórica e a vazão do rio está perigosamente baixa. Antes, havia uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA) permitindo o enchimento do reservatório apenas entre janeiro e junho, fora do período de estiagem. Mas ela também foi derrubada, como denunciou o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo. Cerca de 1.800 famílias expulsas de suas casas e ilhas procuraram a Defensoria Pública da União em busca de justiça. A população atingida só teve acesso à assistência jurídica no início deste ano de 2015, cinco anos após o leilão da obra. Também o governo não cumpriu com suas obrigações, como homologar a Terra Indígena Cachoeira Seca, a mais desmatada do Brasil: só em 2014 saiu dali uma quantidade de madeira capaz de encher 13 mil caminhões madeireiros.
Lideranças da floresta amazônica e organizações socioambientais denunciam que ninguém sabe o que acontecerá com o Rio Xingu e com todos que vivem nesse delicado ecossistema. Denunciam que ninguém consegue avaliar com a necessária precisão o tamanho do impacto da operação de Belo Monte, já que os órgãos fiscalizadores dependem das informações e análises fornecidas pela própria empresa. Como os órgãos também eram dependentes na catástrofe da bacia do Rio Doce, que já alcançou o oceano.
Mas talvez aquele que acredita que a lama jamais chegará à sua porta conclua que todas essas pessoas que alertam para o impacto de Belo Monte nada sabem do “interesse nacional”. Diante do temor e da dúvida, é preciso invocar a frase da presidente do IBAMA, para recuperar de imediato a tranquilidade e a confiança no desenvolvimento: “Postergar a licença de operação seria punir o Brasil”.
E a lama avança.
E a lama avança para muito além, derrubando as fronteiras entre o público e o privado, entre os partidos e também entre os poderes, se imiscuindo a cada dia um pouco mais, empapando os dias, emprestando ao cotidiano a sua textura tóxica. E também aí ninguém sabe até aonde a lama pode chegar. Quantos pontos ela poderá ligar não apenas nos contratos da Petrobras, mas também no setor elétrico. E talvez adiante.
E a lama avança.
A mudança climática marca o momento em que o homem não apenas teme a catástrofe, mas torna-se a catástrofe. É assim que o Brasil chega à Conferência do Clima, em Paris: levando no currículo “o maior desastre ambiental da história” e a Licença de Operação à Belo Monte, mais uma barragem gigantesca na Amazônia como fato consumado.
E a lama avança.
Que momento da história do Brasil, este em que há tanta lama por todos os lados e, ao mesmo tempo, essa lama concreta, que avança e que mata. Essa lama das imagens, essa lama morta que parece viva porque anda, essa que só rompeu a barragem que a segurava por conta da lama ainda mais tóxica que a precede. O momento da história em que a lama rompeu a barragem do simbólico para invadir o real em sua forma concreta.
Diante de tantas autoridades, em tantas esferas, que frente à lama dizem agir “em nome do interesse nacional”, talvez seja a hora de começar a pintar a nossa Guernica para tentarmos uma representação da catástrofe. Uma Guernica de imagens, mas também de vozes. Uma Guernica de memórias e de testemunhos. Uma Guernica que confronte “o interesse nacional” e que o denuncie. Uma Guernica que exponha a perversão das barragens e também das fronteiras.
Porque a lama avança. E aquilo que atravessa o vão da porta da casa já não é poeira.
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Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com. Email: [email protected]. Twitter:@brumelianebrum.
Imagem: Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco/Vale/BHP. Foto de Antonio Cruz /Agência Brasil.