* para Combate Racismo Ambiental
Sofia repara a foto do povoado de Bento Rodrigues, o ‘antes’ e o ‘depois’, pensa no futuro e sente um calafrio. Procura um canto pra sentar-se. Num segundo, toda ela se concentra naquela imagem, apesar do caos ao seu redor. É desolador! Antes as casas, as ruas, as edificações comunitárias, equipamentos de políticas públicas, muitas árvores e, principalmente, pessoas. Agora aquela cratera enorme, imensa, avermelhada, de sangue sugado e explorado, rastro da destruição provocada pelo rompimento das barragens de Fundão e Santarém, da Vale e BHP Billing (australiana), as duas primeiras gigantes do setor minerário no mundo todo, provocando o maior desastre ambiental da história de Minas Gerais. O helicóptero da mídia chega antes dos helicópteros de socorro às vítimas. E sessenta e dois milhões de m³ de rejeito contaminado, o equivalente a mais de seis milhões de caminhões de dez toneladas cada, são despejados sobre o povo e o ambiente. Germano, barragem das mesmas empresas, logo acima, tem o dobro do volume vasado. E centenas de outras barragens de rejeito, em Minas Gerais, não dispõem de sistema confiável de monitoramento e fiscalização. São verdadeiras bombas-relógio, que podem explodir a qualquer momento.
Após guardar a fotografia, Sofia olha o quadro do lado, com letras de pincel, onde constam os nomes de comunidades atingidas, o número de pessoas e a observação ‘isoladas’. Ela se levanta, pega a máquina, aproxima-se e registra aquilo. Entre as localidades, está Bento, Camargos, Santa Rita, Paracatu de Cima, Paracatu de Baixo, Campinas, Bicas, Goiabeiras. Sofia sabe que a lista tanto das comunidades quanto das pessoas é muito maior. Pensa, rapidamente, em Gesteira, Barretos, Barra Longa, toda a extensão do Rio Doce. Em seguida, sai andando pelo espaço imenso em que os atingidos estão sendo acolhidos, ouvido atento, mas imaginando aquela lama tóxica que percorrerá 500 km, aproximadamente, até Linhares – litoral capixaba. A TV já mostra peixes mortos. Há especialistas dizendo que essa contaminação poderá persistir por 30 anos. O impacto vai longe, na geografia e no tempo.
Entre as pessoas atingidas, muita dor, olhos lacrimejantes e vermelhos de tanto chorar. Os relatos são dramáticos! Sofia procura ouvir um e outro. Lembra dom Luciano: “quando não se pode fazer ‘nada’, ao menos ouvir”. Ouvir é passo importante na organização popular, que não precisa pedir licença e faz muita diferença em qualquer conjuntura. Um morador de Bento conta que avista a montanha de lama chegando, guiada por uma poeira vermelha, e sai correndo para o morro. Muitos vão juntos. Mas a lama vem galopante e engole alguns deles. Mais à frente, perto da caixa d’água de água potável improvisada no abrigo, a enfermeira vai de mão dada com a senhora, buscando consolá-la. Sofia ouve: ‘a senhora é forte, não é!?’. As duas choram. O filho dela morreu, mas ninguém quer contar-lhe a verdade. Diz-se apenas desaparecido.
Muita lembrança vem à cabeça de Sofia. Ela vê Filomeno à sua frente, na imaginação, um morador de Bento que, no final da década de 80, a acolhe tantas vezes em sua casa. Ele representa bem a índole daquele povo: simples, hospitaleiro! Povo que tantas vezes, há muitos anos, questiona a empresa, a contaminação das suas águas na horta comunitária, mas sem resultado. Diante da notícia de que Filomeno está vivo, um pingo de alegria a invade em meio ao mar de choro e indignação.
Agora, quase displicente, Sofia segue para outras repartições. Agradam-lhe muito as notícias de que dom Geraldo, bispo da Arquidiocese de Mariana, já se tenha pronunciado, de forma incisiva, na defesa dos atingidos. A movimentação em todo o local é enorme, num misto de dor, desespero e muita, muita generosidade. Doações chegam de todo o canto, principalmente roupas e alimentos. Várias comunidades da Arquidiocese de Mariana se mobilizam. Alguns padres, em generosidade, abrem as portas de suas casas em apoio aos que desejam ajudar o povo. Telefonema do Rio de Janeiro traz a notícia de uma contribuição em dinheiro. O drama é enorme, mas a generosidade é (quase) infinita. Voluntários ajudam por todo canto.
Os guardas municipais procuram controlar o espaço, estabelecendo áreas com entrada restrita. Sofia sorri sem querer quando vê que a camisa do Movimento passa, ilesa, no controle de entrada. Bom sinal! Carros da imprensa, com repórteres do Brasil e do exterior, com seus apetrechos, chegam a toda hora e fincam, também, suas barracas. As pessoas atingidas e acolhidas, naquele espaço, em torno de 500, vão, aos poucos, sendo transferidas para hotéis da cidade. A ordem é do Ministério Público Estadual, alegando melhor conforto. Mas isso vem a calhar com a vontade da empresa, que faz de tudo para escondê-los, separá-los, evitando, assim, a comoção coletiva e ações organizadas. Povo atingido junto pode ser perigoso. Dos hotéis, após uns dez dias, a empresa pretende levar as famílias para casas alugadas, comprar uma coisinha e pronto. O futuro, por enquanto, é totalmente incerto.
Na cabeça de Sofia, apesar de muitas dúvidas, uma coisa já está clara. A diferença entre o ‘antes’ e o ‘depois’, nas comunidades, no rosto das pessoas atingidas, é do tamanho do crime da Vale e da BHP Billing. Elas acumularam muito dinheiro e uma imensa dívida social e ambiental, ao lado de sonegação de impostos, criando esse ambiente vulnerável que, agora, abruptamente, é despejado fora em forma de lama tóxica, destroçando e contaminando o que encontre pela frente. Isso é um soco na cara do povo mineiro e da soberania de nosso país.
As empresas, por seus gerentes, testas de ferro de grandes capitalistas, buscam naturalizar essa tragédia anunciada. A falta de chuva na hora do rompimento as obriga a construir a desculpa de terremoto, supostamente a partir de informações da USP e UND. A mentira arranjada às presas não calha. O terremoto seria pequeno e, de todo modo, a responsabilidade pelo crime continua sendo das empresas. Parece, agora, que a tática é outra: tratar o caso como normal e subestimar o seu impacto. A frieza das entrevistas denota isso. A resposta às perguntas e a explicação sedem lugar a frases ensaiadas. Na Coletiva de imprensa de sábado à tarde, 7/11, questionado várias vezes sobre o sistema de alerta, o gerente da Vale apenas repete, feito robô, que ‘cumprimos integralmente o plano de ação emergencial da empresa’. Mas que Plano, se ninguém foi avisado? Que plano, se nem uma sirene havia? Uma mulher de moto, correndo pela Comunidade de Bento, gritando nas casas, é mais eficaz que as empresas, e salva vidas em risco que as empresas negligenciaram. A histórica desconfiança do povo de Bento de que a qualquer momento aquele monstro poderia romper-se também acaba ajudando.
O rompimento de Fundão e Santarém é crime sobre crime. São seis alteamentos em Fundão, quatro deles sem licenciamento ambiental, com um excedente de 32% de rejeito no último período. São laudos técnicos de qualidade duvidosa em conluio com governos neoliberais, interessados no negócio. É o desrespeito ao princípio da precaução ao não paralisar as obras e ao não retirar todas as pessoas, trabalhadores e moradores de Bento, diante dos estouros que antecedem o dia fatídico, 5/11, sinais evidentes de que a barragem corria risco de rompimento. É a postura das empresas, agora, quando adotam uma atitude titubeante em relação à toxidade da lama, desestimulando a tomada de medidas sérias e preventivas em relação à qualidade da água e induzindo populações ribeirinhas ao seu consumo, colocando, mais uma vez, suas vidas em risco.
São esses crimes, e outros, que pesam sobre as costas dessas empresas. Infelizmente, outros virão. Um deles será a tentativa de negação dos direitos das famílias atingidas e, depois, provavelmente, a criminalização das lutadoras e lutadores, a qual inverte a ordem das coisas, transformando bandidos em vítimas e vítimas em bandidos.
Os governos, tanto municipal quanto estadual, buscam ser eficientes. Isso é bom! Mas o Prefeito de Mariana confessa o seu limite. Quase 90% da arrecadação do Município vêm justamente dessa atividade mineradora, agora criminosa. O melindre aumenta com o fato da Samarco, que hoje não é dona de nada, ser usada pela Vale e BHP como braço de ‘filantropia’ na região, atendendo uma coisinha e outra, uma espécie de terceirização da política pública. A chantagem das empresas são favas contadas se o Prefeito não caminhar próximo do povo organizado, e de seus apoiadores.
Fernando Pimentel, por sua vez, a despeito da presença eficaz da estrutura do Estado em socorro às vítimas nessa tragédia anunciada, quer o crescimento da exploração de Minério em Minas Gerais. Ele defende Projeto de Lei 2.946/2015, em tramitação na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, para dar ‘mais agilidade ao processo de licenciamento’. E, enquanto Fundão e Santarém se rompiam em Mariana, acontecia, em Belo Horizonte, a 2ª edição do Fórum Brasileiro da Mineração, na Fiemg, com presença de ao menos quatrocentos empresários do Setor minerário e autoridades, entre as quais o Governador. Ao tomar conhecimento do rompimento, Altamir Roso, Secretário de Desenvolvimento, presente no Fórum, em BH, declara que a ‘Samarco é vítima de uma tragédia’. Que desacerto! Que vergonha!
O Ministério Público Estadual quer o fechamento da Mina do desastre criminoso. Não é sem razão! O povo de Mariana e região com seus administradores, alguns sérios e de boa fé, merecem e podem viver sem as chantagens das empresas mineradoras. A sua riqueza histórica, a sua beleza natural – apesar de toda a agressão -, as próprias crateras da destruição, a sua posição geográfica estratégica oferecem base pra isso. Parte do capital das empresas mineradoras, acumulado historicamente, levando o minério e deixando a miséria, deve ser reivindicada e aplicada em projetos estruturantes, criando as condições pra essa liberdade, ‘ainda que tardia’. O mesmo esforço do socorro imediato às vítimas, da plena garantia de seus direitos, precisa ser empregado na construção desse futuro, pra além do ‘antes’ e do ‘depois’. O fortalecimento da organização do povo e o apoio efetivo das instituições, entidades, autoridades e pessoas de boa vontade constroem esse caminho árduo, mas necessário.
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Foto: Mariana (MG) – Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)