Cândido Grzybowski*, Ibase
A crise, com suas confusões e desencontros, algo espalhafatoso e de muita fumaça política, acaba encobrindo processos mais profundos, que podem fazer ruir estruturas fundamentais para o próprio aprofundamento da democracia. Não bastasse o avanço no Congresso de uma agenda extremamente regressiva e conservadora em termos da laicicidade do Estado, liberdades individuais, direitos de escolha e de ser diferente, estatuto do desarmamento, terras indígenas, mineração, temas que já contaminam o debate público, temos a grande questão das políticas sociais postas em questão como conquistas da Constituição Cidadã de 1988. Parece absurdo, mas há atores influentes, que merecem destaque na grande mídia, vendo as conquistas democráticas constitucionais em termos de saúde, educação e previdência como a origem da crise fiscal do Estado.
Mas existe perigo maior, porque sorrateiro e altamente destruidor. Trata-se do desmanche da capacidade do Estado em ser indutor e regulador da economia. Estamos sob ameaça de desmontar o que, sabemos, levou muito tempo para ser construído: um Estado com capacidade de condicionar o tipo de desenvolvimento econômico. Isto tem a ver tanto com as políticas públicas de desenvolvimento, sinalizando as opções estratégicas, como com o papel indutor de agências públicas, verdadeira infraestrutura motora e indutora do desenvolvimento perseguido. Refirmo-me, aqui, ao estratégico papel das empresas públicas.
Muitos países gostariam de contar com o denso tecido econômico e, sobretudo, com a capacidade de autarquias e empresas públicas como Petrobras, BNDES, Fiocruz, Eletrobras, Furnas, Itaipu, Chesf, BB, Caixa, BnB, Basa, Finep, Embrapa, entre tantas outras, incluindo as empresas estaduais. É por ter poder político sobre este conjunto econômico estratégico que o Estado brasileiro pode ser força de empuxe de um desenvolvimento que não seja determinado pela necessidade absoluta de acumulação acima de tudo. Aliás, em algumas áreas estratégicas estamos num impasse total pela privatização realizada, algumas vergonhosas ao ponto de terem significado verdadeira transferência generosa de patrimônio público a interesses privados. A isto se somam as concessões, especialmente no transporte urbano, uma escandalosa renúncia do Estado em garantir a prestação de um serviço essencial em termos de direito civil e político de mobilidade.
O fato é que, aproveitando o momento de crise política e de seu impacto na economia, prosperam sorrateiramente prospostas no sentido de reduzir o poder indutor do Estado e de suas empresas. Claro, tudo em nome da sacrossanta lei do livre mercado. Olhando bem, o ajuste conduzido pelo Levy, um orgânico de tal modo de pensar e estrategicamente ligado ao setor financeiro, é sobretudo uma preparação do terreno institucional para que a privatização e a liberalização adquiram condições de serem implementadas com força. Seu ajuste – visto de um ponto de vista de economia democrática e includente, é um desajuste e um real desmonte. Com juros estratosféricos que só fazem aumentar a dívida pública e as transferências financeiras para a banca, ele é a causa principal da própria crise fiscal e, em consequência, econômica. É por falta de uma ativa política antirrecessiva do Estado que a economia brasileira perde fôlego, os empregos diminuem, arrecadam-se menos impostos e caminhamos para trás. Estamos numa perigosa queda livre. O Estado deixa de ter a capacidade de moldar a economia para ser mais inclusiva e sustentável, tudo em nome de mais facilidades para o tal ajuste destrutivo do mercado.
Precisamos fixar trincheiras para impedir que se consuma um verdadeiro atentado às possibilidades de até sonhar em outra economia, outro desenvolvimento, em justiça social, bem estar e sustentabilidade. Foi difícil montar e, ainda mais, manter e redirecionar o sistema de empresas públicas que temos. Ele é indispensável para o Estado poder definir as condições fundamentais do rumo que deverá seguir o desenvolvimento do país. Claro, a sua existência somente não é suficiente, mas sem tal tecido econômico público a tarefa de pensar outro desenvolvimento se torna praticamente impossível. Será que, para avanços substantivos na democratização do Brasil, podemos prescindir do BNDES, da Petrobras e de tantas mais? Existiria indústria naval sem a Petrobras e a condicionante do requisito nacional? Sem o BNDES teríamos os investimentos em infraestrutura de que tanto precisamos? Sem a Caixa existiria um programa como Minha Casa Minha Vida que, apesar de seus notórios problemas, tenta enfrentar a democraticamente prioritária questão da habitação popular? Enfim, que desenvolvimento é possível imaginar sem as empresas públicas brasileiras como força indutora e condicionante?
Este é um debate que precisamos, como democratas e cidadãos, engajados em construir um país com maior justiça social e maior sustentabilidade, não podemos deixar ser pautados pelos interesses e forças em prol do livre mercado. Penso que a defesa da democracia que conquistamos faz 30 anos nos mostrou que a questão de fundo não é econômica, mas de poder político. É pela política democrática que avançamos, pouco mas avançamos, em termos de empregos, salários, políticas sociais. Preservar a democracia é, sem dúvida, manter a institucionalidade estatal e aperfeiçoá-la. Desmontar, reduzir o Estado, privatizar, tudo isto vai no sentido de reduzir o poder transformador da democracia, por menor que ele possa parecer na atual conjuntura de crise de hegemonia e impasse político.
*Cândido Grzybowski é Sociólogo, diretor do Ibase.