Por Gustavo Guerreiro, O POVO
Na última semana espalhou-se nas redes sociais uma imagem impactante: a do corpo de Aylan Kurdi, criança encontrada morta no litoral de Bodrum, na Turquia após naufrágio de embarcação de refugiados sírios que seguia em direção à Grécia. A foto ilustra com extremo grau de dramaticidade aquilo que a Anistia Internacional chamou de “a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial”, responsabilizando a comunidade internacional pelo “fracasso vergonhoso” no acolhimento aos desesperados em busca de abrigo.
Os diversos naufrágios dos últimos meses ganharam dimensões de tragédia humanitária. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas cerca de 220 mil africanos tentaram atravessar o Mediterrâneo em 2015. Destes, mais de 2.500 morreram ou desapareceram tentando chegar à costa europeia em embarcações precárias. Em 2014 foram 3.500. A maioria partiu da Síria, por conta da guerra civil que assola o país há mais de quatro anos e que gerou cerca de quatro milhões de refugiados. Os demais são da Líbia, Eritreia, Nigéria e Somália, onde enfrentam extrema pobreza, fome, guerras civis e conflitos étnicos.
A raiz da crise está na desestabilização política dos países, nos quais governos ocidentais através da OTAN têm interferido militarmente, como em 2011, na derrubada de Gadhafi na Líbia, e na tentativa de remover Assad, na Síria. Patrick Weil, historiador especialista em imigração da Universidade de Paris questiona “Quem colocou a bagunça na região se não a coalizão que foi ao Iraque e, em seguida, à Líbia?”. Weil ainda vê uma segunda razão, quando afirma que a paralisia da Europa se fundamenta na difícil mudança dos regulamentos da UE “que demandam muitos meses de conversações”. Cada vez mais, o problema produz desafios para além do continente. Demonstrando despreparo diante da crise, os líderes europeus discordam sobre o que fazer e recrudescem a vigilância de suas fronteiras. A simples repressão apenas empurrará os refugiados, que morrem aos milhares, para tentar rotas ainda mais perigosas. Um plano da União Europeia de enviar forças navais para destruir barcos de contrabandistas surtirá o mesmo efeito, senão pior.
Lidar com esse problema envolve uma resposta à altura das circunstâncias. Todavia, as autoridades europeias recorrem a um discreto subterfúgio, qual seja o de substituir o termo “refugiados”, condição efetiva da massa que foge de seus países, por “imigrantes”. Essa manobra é explicável pelo fato de que um dos fundamentos das operações de controle migratório é relativo ao princípio da não devolução de refugiados a seus países de origem, o que é expresso em diversos tratados internacionais. A manobra político-jurídica na designação dos movimentos humanos que ocorrem na Europa permite a burla de tais acordos. Não os considerando refugiados, mas imigrantes, as autoridades europeias indicam que a rejeição desse princípio parece ser uma questão de tempo.
A maior preocupação dos líderes europeus é a de não criar um “fator de atração” para os imigrantes. Ignoram convenientemente as Convenções de Dublin e de Genebra, que estabelecem os direitos dos indivíduos em situação de asilo e as responsabilidades das nações concedentes, enquanto processa-se um genocídio.
Indícios de que terroristas do Estado Islâmico (EI) se infiltrariam na Europa disfarçados agravam o problema, transformando-o em uma ameaça global. Em fevereiro deste ano, o EI ameaçou expulsar 500 mil pessoas das regiões que controla. A covarde estratégia é utilizada como arma psicológica. Assim, a imigração ilegal transforma-se em uma ameaça continental com consequências imprevisíveis e não gerenciáveis pela União Europeia.
A comunidade internacional deve aceitar que os fluxos de imigração não podem ser interrompidos, especialmente enquanto a situação ao sul não der sinais de que irá se estabilizar. As pessoas que procuram refúgio não o fazem para “invadir” ou “conquistar” outras terras, mas porque sua sobrevivência tornou-se insuportável. A disposição para empreender tais viagens é indicativo dos horrores que enfrentam em seus países.
Os gestos improvisados de solidariedade civil se multiplicam pela Europa: a Alemanha, apesar da reação dos neonazistas, 800 mil refugiados, com barracas e apoio material, enquanto a pequena Islândia passou a contar com mais de 11 mil voluntários para receber os refugiados em suas casas. Ressoam, assim, os ecos de Aylan, anunciando que nem tudo está perdido.
*Gustavo Guerreiro, Mestre em sociologia e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.
–Imagem: Centenas de refugiados andam em direção à Grécia. | ©Amnesty International (Photo: Richard Burton)