Kátia Borges – A Tarde
Nascido na Itália, criado na Bélgica e radicado na Bahia, Ricardo Cappi é especialista em criminologia e atualmente conclui doutorado na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Sua tese sobre a redução da maioridade penal no debate parlamentar brasileiro estuda os pronunciamentos de senadores e deputados do país em relação à maioridade penal entre 1993 e 2007. Um discurso, segundo ele, marcado pela emocionalidade e intensificado pela repercussão na mídia de casos que mobilizaram a atenção da população.
Educador de adolescentes, Cappi veio ao Brasil para trabalhar no Projeto Axé, nos anos 1990, e aqui permaneceu, atuando entre a educação e a pesquisa. “Meus filhos são baianos e sou feliz aqui, embora motivado para o enfrentamento de todas as graves questões da atualidade”. Atualmente, é professor de criminologia nos cursos de direito da Uefs e da Uneb, ensina no mestrado profissional em segurança pública da Ufba, coordena uma pós-graduação na Uneb e é professor colaborador do mestrado em ciências sociais da UFRB. À Tarde, ele fala sobre o sistema penal brasileiro, o impacto da redução da maioridade penal e a indústria do medo que transforma os jovens em entidades ameaçadoras.
Temos um sistema prisional com mais de meio milhão de presos e considerado bastante deficiente. Não seria o caso de pensarmos nesse momento em uma reforma do sistema prisional brasileiro, e não em redução da maioridade penal?
A ideia de redução da maioridade penal existe desde que foram promulgados a Constituição (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Então, que ideia é essa? É a ideia de que utilizando o sistema penal com adolescentes estaríamos reduzindo a criminalidade. Temos aí uma série de questões a serem estudadas. A primeira é se o sistema penal, como temos hoje, contribui para a redução da criminalidade. Não há evidências, ou melhor, há mais evidências contrárias. O sistema penitenciário, desde a sua criação, lida com a própria falência. Ele não contribui, de fato, para responder à demanda de segurança da sociedade, demanda que é legítima. Ele se apresenta como uma solução fácil, porque depende da promulgação de leis. É só votar a lei de crimes hediondos ou uma lei que aumente a pena para determinado crime que nós teremos um aumento da utilização da prisão. Esse é o resultado que temos, terceira população prisional do mundo, superlotação e, ao lado dela, superencarceramento, que não é a mesma coisa. O superencarceramento significa que o sistema judiciário utiliza em demasia a pena de prisão no lugar das chamadas penas alternativas. Em relação às medidas socioeducativas, temos uma legislação tida como muito avançada, que prevê medidas diversificadas, que vão da privação da liberdade à advertência. Ora, o que nós temos, de novo, uma superutilização da pena de privação de liberdade em instituições que deixam a desejar e o negligenciamento das condições de cumprimento das medidas não privativas. No nosso imaginário, a punição ideal deve ser sempre a privação da liberdade.
Aqueles que defendem a redução da maioridade penal alegam que nossas leis são ultrapassadas no que diz respeito aos adolescentes.
Quando falo em legislação avançada, refiro-me aos tipos de resposta que ela prevê diante do ato infracional. Em relação à idade e à maioridade, precisamos entender que a ideia de discernimento, até certo ponto, constitui uma ficção jurídica. Meu filho, aos 8 anos, já sabia que furtar não era correto. Ninguém precisa chegar aos 18 anos para saber isso. Mas, do ponto de vista psicológico, estudos mostram que, embora o adolescente possa ter noção das coisas, o discernimento pleno é dado por uma série de elementos que constituem a maturidade afetiva. Não estamos falando de discernimento apenas do ponto de vista cognitivo, mas do ponto de vista afetivo. Dito isto, é bom lembrar que o ECA já responsabiliza os adolescentes, no sentido de que a uma conduta delitiva seguem-se as consequências. A saída, me parece, é pensar, no âmbito da juventude, e mesmo no âmbito dos adultos, em medidas que não repousem unicamente na ideia de castigo. Precisamos discutir o binômio transgressão x castigo.
Um dos argumentos favoráveis à redução da maioridade penal é que ele protegeria demais adolescentes em conflito com a lei.
O sistema penal tem um valor simbólico, mas a verdade é que ele nos protege muito pouco. E falo isso em geral. Por exemplo, dos homicídios cometidos em todo o planeta, em média, menos de 10 por cento chegam a julgamento. Isso significa que esse sistema não nos protege de fato em relação aos homicídios. Então em que medida o ECA seria mais protetor? Nossa responsabilidade é produzir uma política de garantia de direitos às pessoas e, de maneira especial, produzir uma resposta à conduta delitiva, que seja rápida, concreta e que solucione os problemas das vítimas. Na discussão sobre a redução da maioridade penal ainda não ouvi falar sobre as vítimas, em atenção especial a elas, apenas num desejo de castigo dos autores.
O que traz à baila esta questão agora?
Vivemos um momento específico. A sociedade alega a existência da impunidade, e a redução da maioridade penal é uma ferramenta muito cômoda. Há uma ideia difusa e reforçada de impunidade, e a mídia é um ator significativo nesse processo. A verdade é que o sistema penal deixa impune a maioria dos crimes, e isso não acontece só no Brasil, mas no mundo inteiro. Nós é que temos a fantasia de que o sistema penal é eficiente. Pouquíssimos crimes chegam às malhas do sistema penal de fato, independentemente de quem os cometa, se pessoas ricas, da classe média ou pobres. Então a questão da impunidade é algo que pode ser levantado a qualquer momento, desde que este seja propício. Agora, parece que devemos colocar ordem na casa, quando temos uma desordem, se podemos dizer assim, há 500 anos no Brasil. Então, falar em impunidade me parece oportunismo. Sem contar que a redução da maioridade penal serve aos interesses de determinados políticos, por constituir-se em uma pauta fácil, numa perspectiva eleitoreira.
Haveria, então, uma intenção política na aprovação da PEC 171?
Do ponto de vista político, é uma demarcação entre uma elite essencialmente branca que, no aniversário do golpe de 64, obteve uma vitória entre aspas, demonstrando que podemos fazer leis sem levar em conta a opinião de especialistas e atendendo a uma suposta maioria. E aí entra o papel da mídia, que tem trazido à tona a violência praticada por adolescentes, quando sabemos, por estudos, que menos de 1% dos homicídios praticados têm como autores adolescentes. Isso em relação aos cerca de 50 mil homicídios registrados anualmente no país.
De acordo com o Unicef, apenas 0,5% dos adolescentes envolvem-se em crimes graves no Brasil. É uma argumentação que não encontra base nas estatísticas. Qual sua base então?
Se fizermos uma leitura da insegurança social, a contribuição dos adolescentes é muito pequena. Temos uma direita que, neste momento, está se sentindo forte e usa esse argumento certa de que vai encontrar apoio em muitos grupos. Outro motivo, este ligado ao estudo que fiz sobre os discursos parlamentares referentes a este tema, é a visão que se tem do jovem. O jovem é visto hoje como problema e não como possibilidade e recurso. O discurso sobre o jovem hoje é pautado numa visão amedrontada e amedrontadora. Se temos uma população amedrontada, esta sempre irá preferir candidatos que demonstrem ter a mão forte e o punho duro. Então o medo é rentável politicamente. E, diria mais, economicamente, o medo é uma alavanca muito forte para os meios de comunicação. Pense em tudo aquilo que consumimos para nos defender de nossos medos reais e imaginários. Os discursos que pedem a redução da maioridade penal são encharcados de medo.
Em contraponto, o assassinato de jovens, especialmente negros, representa mais de 70% dos homicídios no país.
Mais do que agressores, os jovens atualmente se constituem em vítimas, especificamente os jovens negros dos grupos subalternizados da população. E essa é uma discussão que não é feita de modo suficiente. Não há um alarme em relação aos 50 mil, 60 mil mortos que temos anualmente no Brasil. Em duas décadas isso dá mais de um milhão de mortos, o que é superior a qualquer conflito armado contemporâneo. Não temos essa mesma preocupação com a redução das mortes e com o impacto, muitas vezes negativo, do sistema de justiça criminal e segurança pública sobre essas mortes, não nos preocupamos com o tipo de resultado que as instituições produzem. As instituições ditas de segurança pública e de justiça criminal, ao final, conseguem realmente nos proteger, produzir a segurança que anunciam? É a grande questão.
E há o modo como são tratados os adolescentes da classe média, considerados infantilizados em relação aos adolescentes das classes mais pobres.
Sobre isso precisaríamos de mais pesquisas. Mas, por exemplo, um adolescente que bate em um colega no playground do edifício em que mora, num bairro de classe média, logicamente, se trazido diante da autoridade judiciária, não será castigado com o mesmo rigor do adolescente que furta CDs num ponto de ônibus na saída do shopping. Voltamos à mesma questão, como funciona nossa Justiça? A mesma coisa poderíamos dizer sobre a atuação das agências de segurança. Mas esta é uma primeira questão. A segunda questão é a infantilização. Eu acredito que os jovens das periferias, envolvidos em pequenos furtos e no tráfico, e falo aqui do tráfico miúdo, que esses jovens, no fundo, sabem aquilo que arriscam por um pouco de dinheiro. Existe, sim, uma consciência, não do próprio ato, mas da dureza da repressão.
Recentemente uma criança de 10 anos foi morta, supostamente pela polícia. Podemos dizer que, na prática, há a aplicação da penalidade máxima contra crianças?
Não gosto de falar sobre casos específicos, mas não podemos negar que temos um sistema de segurança que mata muito e de modo preferencial jovens e negros de grupos populares. E essa questão não nos situa bem no campo internacional. Nesse momento, por exemplo, há uma grande mobilização dos grupos de direitos humanos quanto à letalidade do sistema de segurança brasileiro. Isso é urgente. Não existe correlação entre a dureza do sistema penal e a segurança da sociedade.
Nos 54 países que tiveram a maioridade penal reduzida não se verificou uma diminuição significativa da criminalidade.
Os argumentos baseados nesses dados são frágeis e mesmo contraditórios. O que significa o fato de países ditos civilizados terem idade penal definida em 16 anos, por exemplo? O que temos que verificar é como essas penalidades são aplicadas e cumpridas em cada país.
Impressiona o uso de termos bíblicos na PEC 171 e o tom emocional do texto. O que o senhor pensa desses aspectos?
Vivemos, de 20 anos para cá, um processo legislativo penal da emoção. Há pesquisas que mostram que os projetos, as propostas e a atividade dos senadores e deputados aumentam quando há situações de grande impacto emotivo, e a imprensa tem seu papel nisso. Quanto mais distante da emoção é que o processo legislativo tem maiores chances de corresponder a critérios de justeza. O apelo emotivo precisa ser respeitado, mas não pode ser considerado o elemento que fundamenta o processo legislativo. A dor das vítimas precisa ser respeitada e precisamos pensar em leis que garantam para essas vítimas algum tipo de solução concreta. A redução da maioridade penal não constitui uma solução concreta para as vítimas dos delitos. A dor da vítima é utilizada, geralmente, para castigar o autor, e aí há uma ruptura lógica. A menos que estejamos voltando à lei de talião, ao olho por olho, dente por dente. Quanto à religião, me espanta que seja suprimida a dimensão do perdão, da escuta do outro, da leitura do humano. Esse apelo religioso, paradoxalmente, está esquecendo essa parte, preferindo uma visão mais arcaica e castigadora.
O senhor falou sobre uma ação concreta em relação às vítimas, a que se refere?
Temos um movimento hoje, que é apoiado pela ONU, chamado de justiça restaurativa. O que há de interessante nela é o que se pretende. Diante de um delito, produzir uma resposta concreta para a vítima, para que esta seja amparada nos seus direitos de ser escutada e atendida, do ponto de vista material e psicológico. E, se for o caso, envolver o autor do delito nessa reparação. A justiça reparativa não é apresentada como solução, mas deveríamos fazer maiores tentativas nesse sentido. Temos um sistema que hoje separa autor e vítima e que repousa no castigo. A vítima, muitas vezes, é esquecida nesse processo. Nosso imaginário da punição é ainda muito pobre. Diante do crime, tomados pelo medo e pelo ódio, somos pouco criativos em relação às formas de punição e de reparação.
O senhor acredita que as penalidades aplicadas aos adolescentes são justas, mesmo em casos de crimes violentos?
Diria que, para pensar um sistema de justiça, precisamos primeiro pensar na regra. Só assim poderemos tratar as exceções. E a regra, para mim, deveria ser a intervenção sem privação da liberdade, sendo que, em alguns casos, teríamos uma privação da liberdade que permitisse um trabalho mais intensivo de recuperação. Mas a verdade é que temos invertido isso. Entre as pessoas privadas de liberdade no Brasil, 50% não cometeram crimes violentos. Isso significa que tratamos com privação de liberdade tanto aquele que cometeu um furto como aquele que se envolveu de forma corriqueira com o tráfico. Então já não temos como diferenciar, uma vez que a pena privativa serve para todo mundo e para tudo. Em alguns casos, pode-se pensar, sim, na privação de liberdade. Mas, na maioria dos casos, deveríamos pensar no fortalecimento – e é aqui que o ECA ainda é mal compreendido – das medidas socioeducativas em meio aberto.
E o argumento do uso de crianças como soldados no crime?
Não temos parâmetros seguros sobre a dimensão disso. Mas eu diria que o aliciamento é um argumento para não reduzir a menoridade penal. Temos aí um paradoxo. O argumento do aliciamento me parece contrário à redução da maioridade penal. Quando pensamos em justiça e em segurança pública, precisamos lançar o olhar não só sobre quem pratica, mas sobre as instituições. Sabemos que as questões de segurança só podem ser resolvidas com atores que aceitam e decidem jogar com as regras do jogo, e as regras são claras: respeito às leis, às pessoas e aos direitos delas. Ora, me parece que grandes transformações ainda precisam acontecer. Precisamos fazer com que o Brasil saia da lista de países que ainda hoje são tidos como violadores de direitos humanos nos setores da segurança pública e da justiça criminal, e esta questão é muito mais importante que discutir a redução da maioridade penal, para que não acabemos voltando à barbárie.