A Argentina continua tentando assegurar que não haverá impunidade quanto aos crimes de sua ditadura. E aqui no Brasil? Bem, aqui não acontece nada.
Eric Nepomuceno, Carta Maior
Não é ainda uma decisão firme, mas é um bom começo: na terça-feira 21 de abril, a juíza federal Alicia Vence determinou ao Ministério Público que apresente provas sobre a participação de dois civis, na época funcionários da Mercedes-Benz, sobre o seqüestro de 18 trabalhadores que integravam a comissão sindical interna da fábrica. Três deles sobreviveram. Os outros integram a lista de quase 30 mil ‘desaparecidos’, ou seja, foram assassinados em centros clandestinos de detenção e tortura mantidos pela ditadura que durou de 1976 a 1983.
Os promotores de Justiça querem que, além de oito militares que são julgados, também sejam levados ao tribunal Juan Ronaldo Tasselkraut, que na época do seqüestro dos trabalhadores era o gerente de Produção, e Rubén Pablo Cuevas, responsável pelo departamento jurídico. Entre os militares que respondem a esse processo estão dois ex integrantes do Estado Maior do Exército nos tempos da ditadura, e que irão ao tribunal pela primeira vez. Os outros já receberam várias condenações. Entre esses outros está o general Reynaldo Bignone, o último dos generais a ocupar a presidência durante o regime militar (entre julho de 1982 e dezembro de 1983), e é uma das figuras mais sanguinárias daqueles tempos de horror. Já levou uma sentença de prisão perpétua, além de outras a longos períodos de prisão. Está preso, e bem preso, numa base militar, de onde não sairá.
Em 1975, tempos da nefasta e esdrúxula Isabelita Perón, a comissão sindical interna manteve um duro enfrentamento com a direção da Mercedes-Benz. Houve uma greve, e 115 operários da fábrica de San Martín foram despedidos. Começou, então, outro enfrentamento entre a comissão sindical e a empresa, para que os despedidos fossem readmitidos. Tasselkraut, o responsável pelo fluxo de produção, havia sido promovido pouco antes da greve. Era uma figura especialmente autoritária, que se jactava de seus vínculos com militares do Exército.
Depois do golpe de março de 1976 e da instauração de mais sanguinária ditadura da história argentina, o conflito foi resolvido através dos métodos que rapidamente se tornaram habituais: os membros da comissão foram seqüestrados, levados para centros de tormenta e, dos 18, só três sobreviveram.
Tasselkraut e Cuevas denunciaram os sindicalistas, sabendo perfeitamente qual seria seu destino. Aos olhos dos promotores, eles foram cúmplices da ação do Exército. Na época, a Mercedes-Benz era uma das 20 empresas com maior faturamento no país, e tinha como seu principal cliente precisamente o Exército, grande comprador de caminhões.
Até agora, a juíza Alicia Vence havia se recusado a incluir os dois civis no processo. Ter aceitado examinar as provas de acusação foi considerado um gesto positivo, por tratar-se do passo inicial para que o caso seja levado a julgamento. Analisadas as provas, o juiz decide pela abertura – ou não – do processo.
A resistência de juízes aceitarem que civis sejam processados como cúmplices no caso se seqüestro, tortura e morte de operários durante a ditadura vinha sendo, segundo advogados argentinos, um empecilho para que se faça justiça no país. Pouco a pouco, porém, essa resistência foi se diluindo, e surgiu uma ampla seqüência de brechas que permitiram levar funcionários de empresas privadas aos tribunais.
Há vários antecedentes. Um deles envolveu outra fabricante de veículos, a Ford. Agora mesmo, três ex-diretores da sucursal argentina da multinacional estão no banco dos réus, lado a lado com dois militares. Os três executivos costumavam freqüentar delegacias e centros clandestinos de tortura para onde operários da Ford tinham sido levados, para participar de interrogatórios, ou seja, presenciavam sessões de tortura. Empresários, produtores rurais e banqueiros que foram cúmplices, por ação ou omissão, de crimes cometidos durante o período em que imperou o Terrorismo de Estado também respondem à Justiça.
E aqui no Brasil? Bem, aqui não acontece nada. Documentos levantados pela Comissão Nacional da Verdade e pelas comissões estaduais registram a visita de empresários e altos funcionários do setor privado a centros de detenção e tortura. Há dados comprovando quem foram os funcionários de indústrias que denunciaram trabalhadores.
Da mesma foram, porém, que militares e agentes de segurança que foram comprovadamente torturadores, violadores e assassinos contam com a férrea proteção de uma Lei da Anistia que lhes assegura impunidade absoluta apesar dos crimes cometidos, a mesma proteção se estende a quem não era funcionário público mas participou ou presenciou aberrações contra os Direitos Humanos mais elementares.
A Argentina continua acrescentando capítulos à sua grande lição, que foi a de assegurar que não haveria nem há nem haverá impunidade.
Uma lição que o Brasil, por poltrão, insiste em não aprender.
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