Em Taqui Pra Ti
Reparem bem: é sempre com a respiração ofegante e com a cara crispada que Aécio Neves da Cunha (PSDB), o neto, aparece na televisão exigindo o impeachment da presidente Dilma Vana Rousseff (PT). Sua fala grávida de dramaticidade profetiza o naufrágio do Brasil se Dilma continuar pilotando o barco verde-amarelo. Com ela no comando, o Titanic tupiniquim se aproxima velozmente do iceberg. É a catástrofe iminente, o apocalipse now. Por isso, há urgência imperiosa de apeá-la do poder, em nome – ele jura – da moralidade. Só assim, Aécio salva o Brasil da corrupção. Será?
Permanentemente tenso, Aécio, candidato derrotado à presidência, nunca relaxa. Se sorri, arreganha os dentes numa careta ameaçadora, num esgar hostil, o que o torna cada vez mais parecido, física e espiritualmente, ao ex-governador Carlos Lacerda (UDN), que tentou derrubar vários presidentes eleitos democraticamente: Getúlio (PTB), Juscelino (PSD) e Jango (PTB), não escapou sequer seu correligionário Jânio (UDN), cuja gestão ele infernizou até à renúncia. É que todos os presidentes ocupavam um lugar que ele achava que era seu. O “caráter golpista compulsivo” de ambos já foi lembrado por André Singer. Nunca um “tucano” se assemelhou tanto a um “corvo” – apelido que Última Hora deu a Lacerda que secava qualquer governante eleito nas urnas.
A ideologia é a mesma. Aécio copia Lacerda quando identifica a corrupção como fruto exclusivo da conduta desviante de pessoas ou da ação de quadrilhas e se apresenta, ele próprio, como paladino da honradez, da probidade e da decência. Corruptos são sempre os outros. Nenhuma análise histórica é feita. O Brasil só pode ser salvo por alguém de conduta ilibada e de reconhecida honestidade – ele, é claro – que se apresenta à nação como tal. Esse filme a gente já viu com Collor, o caçador de marajás.
Sinal de trânsito
A comparação, no entanto, termina aqui, pois até onde sabemos Lacerda nunca foi envolvido nesse tipo de escândalo. O aeroporto de R$ 14 milhões construído com recursos públicos em fazenda da família Neves, o mensalão do PSDB mineiro ou o metrô de São Paulo tornam o discurso de Aécio como a voz de alguém que se diz virgem em plena zona.
– O moralista é como um sinal de trânsito que indica para onde se pode ir para uma cidade, mas não vai
– já nos ensinava Charles Dickens. Aécio é um semáforo. Ele está tão obcecado com a queda da Dilma que não escuta sequer a voz dos cardeais do seu próprio partido. Quem diz que não há fatos que justifiquem o impeachment são os insuspeitos FHC, Serra e Alckmin que não podem ser acusados de petralhas.
– Como um partido pode pedir impeachment antes de ter um fato concreto? Não pode. Não faz sentido antecipar esse movimento, enquanto não houver decisões de tribunais ou provas concretas de irregularidades cometidas pela presidente. Quem diz é a Justiça, a polícia, o tribunal de contas. Os partidos não podem se antecipar a tudo isso, não faz sentido, é precipitação – declarou Fernando Henrique (PSDB) no seminário de ex-presidentes latino-americanos em Comandatuba, Sul da Bahia.
Mas Aécio, o Collor das Alterosas, está ansioso e aflito. Avexadinho, na qualidade de presidente nacional do PSDB, já contratou o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. para dar formatação jurídica ao impeachment, apoiado no Tribunal de Contas da União (TCU) que por enquanto apenas aprovou uma série de oitivas para esclarecer as chamadas “pedaladas fiscais” – seja lá o que isso signifique – mas não tomou ainda qualquer decisão sobre a questão.
De qualquer forma, nessa sexta-feira (24), em Brasília, em reunião que não contou com a anunciada presença de FHC, mas sim com a de Aécio Neves, a bancada do PSDB na Câmara definiu que vai apresentar na próxima semana, “entre terça e quarta-feira”, o pedido de impeachment da presidente Dilma, com base nas “pedaladas fiscais” e no esquema do petrolão. Se vai fazer o que promete, só o saberemos nos próximos dias.
O brasileiro que rala e que se sente órfão de lideranças está legitimamente indignado com as lambanças cometidas por setores do PT no poder, que se equivalem às presepadas da oposição, louca para destroná-lo. Trocando um pelo outro, não precisa de troco. A perda de credibilidade no PT, que é um dado real, não confere credibilidade ao PSDB. O certo é que muita gente do PT se lambuzou e deu assim asas para os urubus. O país quer acabar com a corrupção, mas como?
Antropologia da corrupção
A solução – diz Aécio – é a queda de Dilma, mas tal alternativa é de um simplismo atroz, como se pode concluir lendo os trabalhos do antropólogo Marcos Bezerra, da UFF, que pesquisa o tema desde 1989. Ele publicou “A prática da corrupção no Brasil: um estudo exploratório de antropologia social”, além de sua tese de doutorado “Em nome das ‘bases’: Política, clientelismo e corrupção”. Aprofundou a questão num pós-doutorado na França, na École Normale Supérieure.
Bezerra, citado aqui anteriormente, descreveu os mecanismos usados por políticos e empresários. Analisou casos de corrupção municipal e nacional, explicando a ligação entre o comportamento político e as práticas corruptas e corruptoras. Mostrou a rede de relações de interdependência mantidas entre políticos locais e nacionais, em função do acesso aos recursos financeiros da União.
Essa história de que todo mundo é corrupto, de que a corrupção faz parte da natureza humana ou de que é uma marca cultural do Brasil – tudo isso é papo furado, segundo Marcos Bezerra. Para ele, a corrupção é prática de uma minoria dentro da sociedade brasileira, onde a maioria não rouba (ou seja, nós, eleitores de Marina, Dilma e Aécio). Quem inventou essa história de que todo mundo é ladrão foram os próprios corruptos, que dessa forma querem legitimar a sua conduta.
Segundo Marcos Bezerra quem favorece a prática corruptora é o atual sistema político-administrativo. Portanto, de nada adianta trocar pessoas, se os mecanismos permanecem os mesmos. Novos corruptos aparecerão. Se São Francisco de Assis ocupar o poder pelo Partido Celestial, nesse contexto, em alguns meses estará mais sujo do que pau de galinheiro. A corrupção se combate punindo os transgressores, é verdade, mas especialmente transformando o sistema. O que interessa, além da esfera criminal, é reformar a estrutura política que produz o dinheiro sujo.
Talvez a principal conclusão do antropólogo seja aquela que se refere ao seguinte dilema: quem vota as medidas para a reforma do sistema são precisamente aqueles que no exercício da atividade política se beneficiam dele e por isso não querem mudança. Daí, a necessidade de mobilização da sociedade. Se não houver pressão efetiva da população, não haverá mudança no sistema que favorece a corrupção. Como senador, Aécio não apresentou qualquer projeto de reforma política nessa direção.
Se é correto o que diz o antropólogo, a queda de Dilma em nada contribui para melhorar o país, atende apenas a voracidade de poder dos que querem o seu lugar. Aécio não está pensando nos destinos do Brasil e sim na sua ambição pessoal. Sua pressa, sua aflição, sua sofreguidão, numa leitura “pissica-analítica”, demonstra talvez que ele foi contaminado pela síndrome de Tancredo, que nadou, nadou e morreu na praia. Suspeito que Aécio, como Lacerda, jamais será presidente. Falta-lhe a sobriedade e a grandeza de um estadista. Aécio é tucano, se comporta como um corvo, mas seu voo é de galinha.