Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
Em 1500, num 22 de abril, conta a história, chegaram os homens de Portugal nas costas de Pindorama. Vinham em busca de ouro, encontraram gentes. Pessoas de paz, dispostas a ver o outro, sem medo ou estranhamento. Deles, diz Pero Vaz de Caminha, o escrivão:
“Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. …A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos…Os cabelos são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar”.
Ali estavam os Pataxó, espiando a praia, vendo chegarem aquelas naves gigantes sobre o mar, e nelas, homens como eles. Não tinham lendas de deuses que viriam, por isso receberam a todos como se recebe a um desconhecido qualquer que nos acena na entrada de casa. Convidaram para entrar, visitaram as naus e trocaram presentes. Não sabiam que os que ali chegavam só queriam roubar as riquezas, o ouro, a prata. Brincavam com os estranhos, como crianças. “Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer,” diz Caminha.
A essa confiança, os portugueses revidaram com álcool e pregação. “Agora já andam mais mansos”, repete Caminha, como se lidasse com animais. E sentencia, ao rei: “Porém o melhor fruto, que nela (a terra recém-encontrada) se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. Por salvação, que fique claro, queria dizer a submissão dos indígenas ao deus cristão e ao rei de Portugal. Assim foi sendo criado o que hoje chamamos Brasil.
Hoje, passados 515 anos ainda podemos encontrar pessoas como Caminha, que acreditam que a “salvação” do indígena está na sua inclusão à “civilização” branca. Para isso, roubam-lhes a terra, matam e desaparecem seus filhos, enquanto seguem oferecendo bugigangas. A inclusão é, de fato, uma ilusão.
A diferença é que os povos indígenas contemporâneos estão calejados. Sobreviveram a duras penas ao extermínio e já não olham para os não-índios com “mansidão”. Isso pode ser visto na semana de mobilização em Brasília. Pintados para a luta, eles exigiram o que lhes é direito: território e autonomia. E não aceitarão menos do que isso.
Num 22 de abril, os portugueses encontraram um povo desconhecido para eles. Não souberam respeitar a vida que aqui já existia. Mas, sempre é tempo. E a gente celebra, não o massacre, não a invasão, mas a possibilidade de, quem sabe, um dia, realizarmos, por fim, o encontro necessário. Alguns já conseguiram. Outros ainda precisam de muito chão.
Viva o dia da terra, viva o mundo indígena, e que vivam todos aqueles que já conseguem viver em comunhão, reconhecendo os direitos indígenas e caminhando com eles na luta.