Por Maria Rita Kehl e Daniel Pierri, na Folha
Na semana anterior ao Dia do Índio, foi enviada aos ministros do Supremo Tribunal Federal uma cópia do “capítulo indígena” que compôs o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ele descreve o modo como povos indígenas do país foram vítimas de gravíssimas violações patrocinadas pelo Estado brasileiro, de 1946 a 1988.
Foram massacres para a abertura de rodovias, torturas de vários tipos, proibição do uso das línguas maternas e etnocídios. Crimes subordinados ao propósito de removê-los de suas terras de acordo com os interesses dos diferentes governos.
Segundo a CNV, ao menos 8.350 indígenas foram mortos nesse período. A comissão reconhece que essa cifra deva ser muito maior, já que só foi possível analisar alguns casos, mas ela já representa 20 vezes o número da lista oficial de mortos e desaparecidos.
O capítulo foi enviado ao STF, pois sua 2ª Turma invalidou recentemente três processos de demarcação de terras sem sequer permitir a produção de provas. Dois dos casos –Guyraroka, dos kaiowa, e Limão Verde, dos terena– localizam-se no Mato Grosso do Sul, onde o “modus operandi” dos governos militares foi amplamente descrito pela CNV, que reconheceu a responsabilidade do Estado no esbulho dessas terras.
Se consolidarem jurisprudência, as teses mobilizadas nessas decisões resultariam na anulação de quase todas as demarcações em curso, abrindo um novo ciclo de remoções forçadas, desta vez sob respaldo judicial. A partir desse capítulo indígena, o Supremo terá elementos para rever essas decisões quando forem submetidas ao plenário.
Com base em uma ampla análise documental, a CNV sustenta que o esbulho das terras indígenas foi fruto de uma ação sistemática e deliberada do Estado brasileiro, que emitia certidões negativas da presença indígena em áreas sabidamente ocupadas por índios e patrocinava a ação de particulares para efetivar a sua expulsão forçada.
A crise humanitária que acomete o povo guarani kaiowa é conhecida: altíssimas taxas de violência e de suicídios, resultado direto da falta de terras e do confinamento em reservas diminutas, que mais se parecem com campos de concentração. Passados 26 anos da promulgação da Constituição, a realidade desse povo afetado pelas ações do Estado ditatorial é ainda mais grave.
Isso em razão da expansão da fronteira de colonização, que ocupou completamente as áreas onde os índios podiam se refugiar para organizar sua resistência cultural e política refundando seus tekoha (“lugar onde exercemos nossa maneira de viver”). Há situações similares no Sul, Sudeste e Nordeste.
Entre as recomendações apresentadas no capítulo indígena, a CNV elencou o avanço nas demarcações de terras como a principal forma de reparação coletiva pelas violações sofridas no período investigado.
O Brasil não tem ideia da riqueza humana e cultural que se perde ao insistir em uma política que não se cansa de tentar transformar índios em pobres, “integrados” às levas de marginalizados que ocupam as periferias das grandes cidades.
Nesse Dia do Índio, convidamos a sociedade brasileira a se somar ao apelo para que o STF reconheça o caráter reparatório da política de demarcação de terras indígenas e abandone quaisquer interpretações restritivas do artigo 231 da Constituição que resultem na anulação de processos de demarcação.
Não podemos aceitar que os povos indígenas sejam novamente penalizados em um conflito que tem o Estado brasileiro como principal responsável.
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MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, integrou a CNV – Comissão Nacional da Verdade na coordenação do grupo de trabalho sobre povos indígenas e camponeses
DANIEL PIERRI, 30, antropólogo, foi colaborador do grupo de trabalho sobre povos indígenas e camponeses da CN