A esquerda desconectada e o impasse das novas manifestações. Entrevista especial com Bruno Cava

“De onde virá um protesto ancorado na crise, que tem uma formulação, uma pauta, uma agenda de direitos? Esse é, hoje, o grande impasse nas manifestações”, pergunta o pesquisador

Por Patrícia Fachin – IHU On-Line

Os protestos de 15 de março e 12 de abril compõem “um novo ciclo de manifestações”, o qual é pautado pela “indignação que já estava presente desde 2013, mas que não tinha encontrado uma forma de canalização”, diz Bruno Cava em entrevista concedida à IHU On-Line, pessoalmente, na última segunda-feira, quando esteve participando do Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na avaliação dele, atualmente a insatisfação da população encontra eco no discurso contra a corrupção e coaduna contra a presidente, a partir do “fora Dilma”.

O pesquisador critica as análises que tentam desqualificar os grupos que saíram às ruas no dia 12 de abril, por conta da diminuição do número de participantes. “Analisar quantitativamente é insuficiente”, pontua. Para ele, a diminuição do número de manifestantes se deve ao fato de que “antes do dia 12 de abril não houve a mesma provocação que ocorreu em 13 de março, quando uma manifestação pró-governo foi para a rua”.

As manifestações do dia 15 de março tiveram mais adeptos porque partiram da “dimensão de confrontar, de dar uma resposta” ao protesto organizado pelos governistas. No dia 12 de abril, a insatisfação não mudou e “o pano de fundo de indignação é geral em todas as classes sociais, todas as regiões do Brasil, todas as faixas etárias e níveis de escolaridade, ou seja, a insatisfação continua a mesma, mas não houve aquela ‘cutucada na onça’, como a que ocorreu no dia 13 de março”, compara.

Segundo ele, “quando a manifestação diminuiu de tamanho, quando havia 2,5 milhões na rua e agora tem 700/800 mil, isso foi visto como uma descarga para esse pessoal que não apoia as manifestações, embora o número de manifestantes seja pelo menos 10 vezes superior ao máximo do que todas as forças de esquerda conseguem colocar na rua hoje — isso com movimentos como MST ou CUT, movimentos que existem há mais de 30 anos”.

Pautas potenciais que apontem para a queda do padrão de vida das famílias, para a crise econômica e para a situação do trabalho com a aprovação do PL 4330, que regulamenta a terceirização, ainda não encontraram uma forma de articulação nas ruas, porque não existem “grupos políticos” para articulá-las.

Segundo Cava, isso acontece porque a “aposta de vários grupos que se colocam à esquerda” é “construir, a partir da indignação popular, uma pauta de direitos, mas sem gritar ‘fora Dilma’ e sem entrar de cabeça no discurso da corrupção. Assim, a esquerda encontra dificuldades em agir, “porque os signos que eles vão usar, ou seja, de vermelho, bandeiras sindicais, bandeiras de movimentos sociais, que são tradicionalmente associados à esquerda, são considerados pela população como parte do problema”, constata.

“É paradoxal – continua – porque a esquerda quer, de certa forma, dar um sentido com a pauta de direitos, mas ela não consegue entrar no movimento de indignação, porque este movimento é totalmente por fora dos canais dos partidos de esquerda”.

Na interpretação de Cava, a crise política do PT e da presidente Dilma demonstra “o problema de renovação da esquerda”, que ainda é “pautada por um discurso socialista que está ficando cada vez mais descolado das mobilizações sociais e das próprias lutas por direitos”. Para ele, as críticas às manifestações demonstram que “o 15 de março assustou bastante não só o PT e o governo, mas a esquerda, que pensou: ‘nós estamos afundando juntos, nós estamos indo para o fundo do poço juntos, é o fim de um ciclo, não é só o ciclo do PT, mas é o ciclo de todo o imaginário de esquerda no Brasil, nós estamos muito longe de nos recompor’”.

Bruno Cava tem acompanhado as manifestações que se organizam no país desde 2013 e chama a atenção para adiferença entre as mobilizações de dois anos atrás e as que ocorrem neste ano, e pergunta: “Agora, qual o sentido? Qual a narrativa? Qual será a pauta em que isso irá coadunar? É acerca dessas perguntas que vejo uma situação de enorme impasse”.

Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como descreve as manifestações que aconteceram no Rio de Janeiro, no domingo, 12 de abril? O que viu durante as manifestações?

Bruno Cava – Um novo ciclo de manifestações se abriu em 2015, um ciclo de manifestações que vem de uma indignação que já estava presente desde 2013, mas que não tinha encontrado uma forma de canalização, que não tinha encontrado sentido, e que em 2015 convergiu para a questão da corrupção.

A grande pauta hoje é, de fato, a questão da corrupção, seja porque o tema está no noticiário todos os dias, seja porque existe um fundo material real desta indignação, que é a percepção de que estamos vivendo o início de uma crise econômica que não encontra uma resposta, muito pelo contrário, encontra um silêncio por parte do governo.

O governo não está sendo capaz de oferecer uma resposta clara à população e, de fato, a operação Lava Jato está se ampliando e se enraizando por uma série de outros atores políticos. A base do governo, inclusive, está sendo implicada em grande escala, principalmente o PMDB, o PP, mas também o PT, e aí estamos falando do tesoureiro do partido, ou seja, figuras que são difíceis de dissociar desse projeto político. Então, a convergência da corrupção, de certa forma, acaba também repercutindo em uma insatisfação com o governo. E, num presidencialismo, a insatisfação com o governo coaduna na presidente; é inevitável não convergir num “fora Dilma”.

Existe uma indignação geral que não encontra vazão no sistema representativo, esta indignação convergiu na corrupção, diferente de 2013, quando se tinha uma série de pautas muito mais claras, como, por exemplo, a questão do transporte público, das tarifas, a questão da moradia, a mobilização pelos direitos humanos, a pauta sobre a PEC-37, que retirava o poder de investigação do Ministério Público, as manifestações contrárias à “cura gay”.

Agora, em 2015, esse novo ciclo é inteiramente determinado pelo lado da corrupção, embora isso também existisse em 2013. É claro que você pode dizer que a corrupção é análoga de muitas questões. Por exemplo, a pessoa está insatisfeita com o serviço de saúde, pelas filas de atendimento, pela precariedade dos planos de saúde, e ela acaba atribuindo a responsabilidade à corrupção. Então, quando se fala em corrupção, não se trata de um discurso vazio; tem um rol de insatisfações que não encontraram formulação fora da corrupção.

IHU On-Line – Por que essa insatisfação não se aplica à crise econômica evidenciada pelo baixo crescimento e ao aumento do custo de vida, exemplificado na conta de energia, da gasolina, por exemplo?

Bruno Cava – Isso tem a ver com a campanha eleitoral. Toda a campanha da Dilma e do PT enfatizou que o país não precisava de um ajuste econômico, que não haveria qualquer tipo de interferência nos direitos trabalhistas, ou seja, o voto pela continuidade seria o voto mais seguro para conduzir a economia. Ao contrário, os outros dois candidatos afirmaram que seria necessário fazer um ajuste econômico. Quando terminou a eleição, o ajuste foi feito, ou seja, houve cortes sociais, cortes de subsídios, aumento de tarifas, como o aumento da tarifa da conta de energia, aumento do valor da gasolina, aumento de juros.

Em suma, todo este pacote de medidas econômicas que foi tomado contraria exatamente o discurso central da campanha eleitoral da Dilma, que tinha como discurso “não mexer no direito dos trabalhadores nem que a ‘vaca tussa’”. Quem não lembra aquela inserção na propaganda eleitoral em que a comida estava sumindo dos pratos e os banqueiros estavam comandando? Só que hoje temos um banqueiro comandando o Ministério da Fazenda: o ministro Levy vem do Bradesco.

Então, embora o projeto econômico dos três candidatos, no final das contas, acabaria sendo o mesmo, um deles disse que não faria o que acabou fazendo. Então, isso gerou uma percepção de frustração, de mentira, inclusive naqueles que apoiavam a candidatura pela esquerda, que viam isso como sagrado nas vias sociais, nas vias trabalhistas. Obviamente todas essas ações entram no pacote de indignação.

Mas para chegar à rua, o que acontece? Ainda não existe formulação disso; você não vê na rua, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde tenho acompanhado com mais afinco as pesquisas e os relatos, grupos levantando cartazes ou exprimindo o motivo de estar lá, ou o fato de estar sem seguro desemprego, ou reclamando porque a conta de luz aumentou, ou que o custo de vida aumentou, ou que está havendo demissões. Mas a indignação por perceber que o discurso de que a economia não vai mal é uma mentira — porque na verdade estamos mal —, sem dúvida gera a alta intensidade do protesto.

IHU On-Line – Quer dizer que os manifestantes ainda não processaram os efeitos da questão econômica?

Bruno Cava – Vejo que existe um problema que é da própria esquerda, porque é a esquerda que faz esse discurso do trabalhador, da saúde, da educação, da segurança no trabalho, dos direitos sociais. Mas como a esquerda, de certa forma, encontra-se paralisada com esta situação, porque no segundo turno ela apoiou a candidata que, após eleita, implementou o programa da oposição, isso em grande parte a desmobilizou.

O problema é que hoje se tem um programa sendo implementado através do Congresso, que também passa pela base do governo. Não podemos esquecer que o PMDB no Congresso não é oposição à presidente Dilma, ele é parte do governo, só que existe uma tensão interna, ou seja, o Congresso quer passar medidas ainda mais conservadoras, como a redução da maioridade penal e agora o projeto de lei que vai liberar a terceirização na atividade-fim das empresas.

Apesar desse cenário, toda a indignação coaduna no discurso da corrupção, porque a esquerda não corre neste discurso que é feito também por grupos que são ligados à intervenção militar, embora sejam muito minoritários, grupos que são caricatos da direita reacionária brasileira, e isso acaba afugentando parte da esquerda. Então, se tem uma dificuldade de ter uma formulação política, uma formulação discursiva a partir da crise econômica, que passe por dentro dos processos massificados.

O que está acontecendo hoje? Uma tendência a ter protestos pequenos, como o que está marcado para o dia 15 de abril contra a terceirização, organizados pela esquerda, mas que são mobilizados dentro daquela velha forma sindical e partidária da militância e não atingem a população em grande escala. E os protestos, organizados ao redor da corrupção, que são heterogêneos obviamente, que têm vários grupos, como, por exemplo, o #VemPraRua, o Movimento Brasil Livre – MBL, passam pela pauta da corrupção.

A questão é: De onde virá um protesto ancorado na crise, que tem uma formulação, uma pauta, uma agenda de direitos? Esse é, hoje, o grande impasse nas manifestações. O fato de se ter uma crise não significa que iremos sair nem para pior nem para melhor; o fato de se ter uma crise significa uma oportunidade de construir uma coisa nova.

IHU On-Line – A pauta da terceirização apareceu nas manifestações?

Bruno Cava – Não vi nenhum cartaz contra a terceirização no Rio de Janeiro e em todos os outros locais que acompanhei.

IHU On-Line – A terceirização, ao que tudo indica, poderá prejudicar os trabalhadores como um todo. Atribui a falta desta pauta nas manifestações por conta da pauta maior em torno da corrupção?

Bruno Cava – O que aconteceu foi que no dia 15 de março um dos principais grupos de mobilização, o #VemPraRua, não tinha encampado a pauta do impeachment. Os outros dois grupos que são fortes nas redes sociais, o MBL e os Revoltados, encamparam essa pauta.

De março até abril houve uma grande discussão entre esses grupos de qual seria a pauta do dia 12 de abril e houve o risco de eles romperem a unidade, porque alguns têm uma pauta mais liberal-pragmática, e outros têm de fato a pauta da intervenção militar, que é minoritária, mas está lá.

Para não romper a pauta, eles fecharam no “fora Dilma” e concentraram toda a energia nessa pauta. Ao mesmo tempo existe um rechaço de dentro dos grupos mais articulados com movimentos sociais tradicionais, sindicatos, grupos mobilizados mais à esquerda de participar destas manifestações, que poderiam pautar isso, que poderiam tentar encontrar um tipo de inserção que não fosse provocativa, porque obviamente não se pode ir à rua com a bandeira vermelha que é associada ao PT. É preciso ter um tipo de estratégia de inserção desta pauta na manifestação, mas não existe a vontade política de fazer um outro ato separado.

Em junho também houve este problema durante a final da Copa das Confederações — no dia 30 de junho, durante o jogo entre Brasil e Espanha no Maracanã. Na ocasião, o ato principal que estava reunindo todos os grupos que estavam na rua durante aquele mês, estava agendado para acontecer à tarde. Mas os grupos mais ligados aos partidos socialistas de esquerda, os movimentos sindicais, o MST, a CUT, fizeram um ato pela manhã para deixar claro que eles não estavam se juntando. Só que quando você não se junta, você não deixa de reforçar todo aquele movimento, porque o movimento é fortíssimo.

IHU On-Line – Em que aspectos há aproximações e diferenças na manifestação do último domingo com a do dia 15 de março? Como vê, nesse sentido, os comentários entusiastas de que as manifestações foram reduzidas?

Bruno Cava – Analisar quantitativamente a manifestação é insuficiente. O fato de ter um milhão ou 100 mil ou 500 mil, é um dado, mas isso não explica totalmente a manifestação. Você pode ter um milhão na rua durante todo o mês, até o final do ano, e isso não significa nada, porque manifestação é organização, criação de formas de organização e de mobilização, ou seja, significa ter grupos que consigam, de certa forma, manter regularidade para manifestações e que tenham pautas, capacidade de articular estas pautas. Sem isso a manifestação pode ser uma festa, pode ser uma passeata meramente ocasional.

De todo modo, em parte, atribuo a diminuição do número de participantes ao fato de não ter havido, antes do dia 12 de abril, a mesma provocação que ocorreu em 13 de março, quando uma manifestação pró-governo — que, embora fosse justamente tensionar o governo à esquerda, a saída pela esquerda, era uma manifestação dos grupos ligados ao governo e ao PT, à CUT e ao MST, tanto que os grupos mais à esquerda, por exemplo, ligados ao PSOL, não participaram — foi para a rua dizendo: “nós vamos para rua e vamos disputar com aquele discurso de desqualificação do outro lado, que é coxinha, que é golpista”, enfim todos os adjetivos de desqualificação. Essa atitude gerou uma provocação e muitas pessoas foram às ruas no dia 15 de março porque estavam insatisfeitas e quiseram mostrar que de fato nós não estamos satisfeitos com o governo Dilma, não estamos satisfeitos com as medidas que foram tomadas e com a corrupção.

O dia 15 de março teve esta dimensão de confrontar, de dar uma reposta e, por isso, ocorreram panelaços. De 15 de março até 12 de abril, a insatisfação, de acordo com as pesquisas do Datafolha, não mudou: 62% rejeitam ou acham o governo ruim ou péssimo, e em 12 de abril o número é o mesmo. Ou seja, o pano de fundo de indignação é geral em todas as classes sociais, todas as regiões do Brasil, todas as faixas etárias e níveis de escolaridade, ou seja, a insatisfação continua a mesma, mas não houve aquela “cutucada na onça”, como a que ocorreu no dia 13 de março.

O segundo ponto que explica a diminuição de participantes é o desgaste natural de toda manifestação. Se não criar algo novo, se não mostrar que aquilo está indo para algum lugar, que está gerando uma consequência, gera uma desmobilização. Isso aconteceu em junho de 2013 e é normal em mobilizações de massa. Para os próximos protestos, os grupos estão querendo fechar agora no impeachment.

IHU On-Line – O impeachment é a melhor pauta?

Bruno Cava – Não é a melhor pauta porque simplesmente trocar o presidente não vai resolver o problema da corrupção. Além disso, também há poucos elementos, do ponto de vista jurídico, para implicar no processo de impeachment da presidente.

IHU On-Line – Então, por que a escolha por esta pauta?

Bruno Cava – Se você analisar do ponto de vista intelectual se o impeachment é a melhor solução, obviamente verá que não é. Mas existe um sentimento popular de revolta, que no presidencialismo coaduna na presidente, e que é legítimo. Então, a pessoa gritar “fora Dilma” não é uma coisa absurda.

IHU On-Line – Mas, em contrapartida, governistas e intelectuais governistas derrubam essa pauta e fazem defesa ao governo, inclusive melhorando a imagem do partido.

Bruno Cava – Sim, e aí novamente voltamos para o cenário das eleições. Qual é o sonho do governismo? Repetir o que aconteceu na eleição, ou seja, ter um terceiro turno, regularizar a sociedade colocando de um lado os eleitores da Dilma e do outro os eleitores do Aécio, e com isso é criada uma divisão em dois campos, quando a situação é muito mais complexa do que isso.

As manifestações não são simplesmente um grupo ligado ao PSDB e muito menos ao Aécio. O Aécio entrou na eleição com 15% dos votos e deu aquela disparada no final, mas boa parte dos votos dele é um voto de protesto, um voto de mudança que não está associado a um compromisso com o candidato. E nem em relação à Dilma; o voto da Dilma não é um voto comprometido de “estou com a Dilma até a morte”, não é, tanto que a popularidade dela despencou.

A realidade não é a realidade eleitoral, mas à medida que é pedido o impeachment, é pedido que as pessoas se posicionem. Por isso os três grupos (Revoltados, o MBL e #VemPraRua) convergem nessa pauta. Mas do mesmo modo como eles convergiram para esta pauta, ela pode ser uma armadilha também, porque esta pauta pode gerar uma repolarização que vai gerar um impasse, porque mesmo dentro do sistema político brasileiro interessa a muito pouca gente o impeachment.

A quem interessa o impeachment? Ao PMDB não interessa; o PMDB já está governando, é o governante de fato. O PSDB está preparado para assumir a presidência agora? Não parece. Então, é uma pauta que é tudo ou nada, porque ou massifica muito para conseguir levar a uma situação de impeachment — é preciso uma mobilização muito maior e muito mais intensa para conseguir —, ou essa pauta vai acabar favorecendo a própria presidente, o próprio governismo.

IHU On-Line – Qual seria a pauta que poderia unificar os três grandes grupos de protestos?

Bruno Cava – É incontornável a corrupção. Tem de haver um discurso para corrupção. Agora, tem de haver um discurso que não pode ser simplesmente positivista, que não pode ser simplesmente “vamos punir os culpados”. É necessário apontar uma reforma do sistema político. Não uma reforma política imaginada pelo governismo, mas uma reforma política dando mais democracia, mais instrumentos de participação, de decisão, de capacidade de as pessoas se envolverem diretamente.

IHU On-Line – A piora do padrão de vida não parece uma boa pauta?

Bruno Cava – Sim, mas quais grupos políticos vão articular esta pauta dentro da indignação popular? A aposta de vários grupos que se colocam à esquerda, que se colocam abertamente como a saída pela esquerda, é qual? Nós vamos construir, a partir da indignação popular, uma pauta de direitos, mas sem gritar “fora Dilma” e sem entrar de cabeça no discurso da corrupção.

Existe uma dificuldade muito grande nesse sentido, porque os signos que eles vão usar, ou seja, de vermelho, bandeiras sindicais, bandeiras de movimentos sociais, que são tradicionalmente associados à esquerda, são considerados pela população como parte do problema. E sem gritar “fora Dilma” é muito difícil construir algo a partir da indignação que está coadunada na presidente.

Por exemplo, em junho de 2013, no Rio de Janeiro, a indignação coadunou no governador com o “fora Cabral”, e o Cabral teve que renunciar em 2014 para o Pezão poder concorrer a governador. É paradoxal, porque a esquerda quer, de certa forma, dar um sentido com a pauta de direitos, mas ela não consegue entrar no movimento de indignação, porque este movimento é totalmente por fora dos canais dos partidos de esquerda.

IHU On-Line – O que isso mostra sobre a esquerda?

Bruno Cava – Mostra o velho problema da renovação, embora não exista uma esquerda, mas existam várias esquerdas. Mas, de todo modo, existe o problema de renovação da esquerda, ou seja, a esquerda é muito pautada por um discurso socialista que está ficando cada vez mais descolado das mobilizações sociais e das próprias lutas por direitos também, que não são lutas pelo socialismo, mas são lutas por moradia, por direito à cidade, por direito ao transporte, que não estão diretamente ligadas a um projeto de Estado socialista.

Como o PT governa há 13 anos, existe um desgaste por 13 anos de governo, e o PT sempre se afirma novamente de esquerda e faz questão de usar este discurso, o qual ainda “cola”, porque no segundo turno da eleição o grande discurso que conseguiu captar o voto de esquerda foi o voto de barrar a direita. Ou seja, implicitamente quer dizer que a Dilma era mais esquerda que o Aécio, mais esquerda que a Marina, por simplesmente barrar a direita, por escolher o “menos pior”.

As próprias esquerdas acabaram associando seus símbolos, seus discursos, suas bandeiras, no segundo turno da eleição, ao governo Dilma. Então, agora, como essas esquerdas vão dizer para a população que não apoiam o governo Dilma? A população vê a bandeira vermelha, vê aquela estética de manifestação e associa imediatamente ao PT, e a indignação está totalmente contra o governo. Por isso, precisamos de uma esquerda antropofágica, uma esquerda que consiga inovar em termos de signos e discursos para poder trabalhar com esta indignação.

IHU On-Line – Existem novos signos e discursos em perspectiva?

Bruno Cava – Junho de 2013 foi um grande laboratório disso. Foi um momento em que tínhamos as pautas de direitos e havia massificação nas ruas. Havia uma grande quantidade de manifestantes vindos de vários lugares da cidade; não havia somente a classe média dos bairros mais ricos da cidade, que fazem protesto de esquerda.

Ao contrário, havia representantes da periferia, de uma semiperiferia, naquele cinturão que é chamado de classe C ou classe D da cidade, havia manifestação de grupo das favelas da Rocinha e do Vidigal, através da campanha do Amarildo. Houve a manifestação da Maré também, quando teve a chacina após um dos protestos. Nesse momento se engendraram várias tentativas, várias ocupações, novas formas de fazer mídia — o midiativismo — e construção de redes que juntasse tudo isso.

O problema foi que parte da esquerda, principalmente a governista, desqualificou as manifestações sistematicamente, então atrapalhou bastante. Em 2014 tivemos a Copa das Copas, que foi o momento em que esses movimentos, que surgiram de junho de 2013, foram massacrados, com prisões, com espionagem em massa, com ativistas presos por organizarem-se politicamente. E, depois, a eleição foi aquele momento em que se pegou toda a multiplicidade de sujeitos sociais, toda a diversidade de pautas, e se enquadrou em dois moldes, ou seja, forçou aquela multidão em dois e, somente dois; foi uma operação ortopédica. Isso foi feito a um custo político e simbólico altíssimo.

IHU On-Line – Em seu comentário no Facebook, você chama atenção para a “diversidade social e racial” entre as 10 mil pessoas que estiveram na Av. Atlântica, no Rio de Janeiro, na manifestação do dia 12 de abril. Essa afirmação foi proposital para chamar a atenção, inclusive, para as manifestações que ocorreram em março, de que havia uma diversidade entre os manifestantes? Ou essa é uma característica nova, que não apareceu em outras manifestações?

Bruno Cava – No dia 15 março eu não fiz pesquisa de campo. Mas no dia 12 eu fui com um grupo e fiz uma pesquisa e tirei fotos. Em São Paulo, Pablo Ortellado também está fazendo uma pesquisa empírica das manifestações. Mas claramente a manifestação do dia 12 de abril não é a manifestação da elite branca; tinha uma diversidade enorme de pessoas que moram em bairros bem distantes da zona Sul do Rio de Janeiro, de cidades vizinhas, pessoas que estão se organizando, por exemplo, em Rio Bonito, em Nova Iguaçu, em Magé, e é evidente a diversidade social que está presente na manifestação.

Houve um momento no final das manifestações que achei muito interessante, quando o #VemPraRua colocou um rapper da favela para falar. Esse foi um momento tenso, porque foi a primeira vez que aquilo acontecia no sentido de se ter um discurso de um sujeito social diferente. Ele foi lá e fez um rap, cantou e interagiu bastante. No primeiro momento aquilo gerou um choque de várias partes da manifestação que não estavam acostumadas, que não estavam preparadas para aquilo, mas funcionou, ou seja, existe uma abertura para este tipo de discurso. Podem até falar que essa foi uma jogada do movimento para provar que negros participaram da manifestação, mas a esquerda faz muito isso; “pelo amor de Deus”, se você analisar a diversidade social e racial da esquerda, você chegará a algumas conclusões bem interessantes.

Mas de certa forma deu certo, funcionou e um grupo da favela mobilizado se fez presente e passou seu recado. Para mim este foi um momento definidor. Eu achava que o rapper seria rechaçado naquele instante e ficaria bem clara a conotação elitista da manifestação, mas não aconteceu isso, foi justamente o contrário e não foi uma coisa automática; ele começou a falar, foi falando e foi envolvendo as pessoas aos poucos.

IHU On-Line – Os discursos humildes da presidente depois das manifestações do dia 15 de março tiveram algum impacto nas manifestações de abril?

Bruno Cava – Não, não teve impacto nenhum, tanto que as pesquisas de popularidade continuaram com os mesmos índices. A questão é como Dilma vai sair desta “sinuca de bico” em que ela se colocou. Quanto mais ela cortar na carne as operações da corrupção, mais ela fica sem condições de implementar qualquer tipo de política. É uma situação de perde-perde. Se você me perguntar o que o governo deveria fazer, eu diria: não deveria ter se colocado nesta situação, em primeiro lugar.

IHU On-Line – Como interpreta as diferentes análises feitas, especialmente via redes sociais, que tentam legitimar ou deslegitimar as manifestações?

Bruno Cava – Novamente, uma comparação boa para ser feita é a eleição. O que menos se teve na eleição foi debate; a eleição foi uma sucessão de “memes”, de uma desconstrução pessoal, ou seja, o foco era sempre na pessoa, era sempre tentar descobrir os pontos fracos de cada um e começar a atacar esses pontos, passando por cima, travando qualquer tipo de debate.

Houve muita produção que, ao invés de qualificar o debate, o confundiu. As campanhas operaram a partir da lógica da desconstrução. O que é essa lógica? As pessoas tomam o seguinte posicionamento: eu não entro em nenhum debate, eu ataco, eu parto para a ridicularização, para a desqualificação, para desacreditar.

Boa parte do debate hoje nas redes, e não é só sobre a manifestação, mas em qualquer tema, segue a mesma lógica da desqualificação, da desconstrução. É muito difícil travar um debate, e as redes sociais não favorecem a tranquilidade e a arena de debate que seja saudável. Ela favorece o ataque, a curtida do deboche; é muito difícil, de fato, através das redes fazer uma análise ou ter acesso a opiniões mais embasadas, a discussões mais ricas.

Com relação aos intelectuais, ainda não li todos os textos, mas me pareceu que o 15 de março assustou bastante não só o PT e o governo, mas a esquerda, que pensou: “nós estamos afundando juntos, nós estamos indo para o fundo do poço juntos, é o fim de um ciclo, não é só o ciclo do PT, mas é o ciclo de todo o imaginário de esquerda no Brasil, nós estamos muito longe de nos recompor”. Isso acuou bastante e gerou uma paralisia e até um início de repensamento na esquerda.

Quando a manifestação diminuiu de tamanho, quando havia 2,5 milhões na rua e agora tem 700/800 mil, isso é visto como uma descarga para esse pessoal que não apoia as manifestações, embora o número de manifestantes seja pelo menos 10 vezes superior ao máximo do que todas as forças de esquerda conseguem colocar na rua hoje — isso com movimentos como MST ou CUT, movimentos que existem há mais de 30 anos.

IHU On-Line – Quem está na rua hoje pode ser chamado de multidão?

Bruno Cava – É complicado esse debate, mas esse é o debate, ou seja, que a multidão não é espontânea. A diferença entre a multidão e a massa é que a multidão não é espontânea, não é homogênea como a massa. A formação de massa era uma formação do fascismo na década de 1920, de 1930, a partir de uma propaganda massiva de Estado, de partido, de se construir aquele sujeito homogêneo que era quase uma tropa militar. A multidão, não, a multidão é uma rede de singularidades, ela tem uma diversidade de sua composição política e, apesar disso, ela tem potência política, porque a diferença gera uma ressonância, uma força maior do que se trabalhar a partir do mesmo.

Agora, ela tem linhas organizativas de novo tipo, não é organizada da forma vertical como a forma tradicional do sindicato, do partido ou daquele movimento social mais tradicional, mais orgânico; ela é uma rede de singularidades, mas é organizada, é capaz de sustentar um discurso, uma pauta, é capaz de produzir direitos.

IHU On-Line – Vou perguntar de novo: o que estamos vendo nas ruas é multidão?

Bruno Cava – O que está acontecendo nas ruas é uma manifestação, é um momento em que deságua na rua uma rede de mobilização, uma rede de discussão que é alimentada pela indignação, ou seja, são os indignados. A pergunta não é exatamente se você tem, por exemplo, uma multidão na rua, mas se esse processo político constituinte, esse processo de novos sujeitos sociais, pode ser chamado de multidão, e uma das suas expressões seria a rua.

IHU On-Line – Então, “esse processo político constituinte, esse processo de novos sujeitos sociais pode ser chamado de multidão e uma das suas expressões está sendo a rua”?

Bruno Cava – É complicado “bater o martelo” dizendo é multidão ou não é multidão. Porque se eu digo que é multidão, estou usando um conceito para fazer apologia de um determinado processo; se eu bato dizendo que não é multidão — muitos usam essa expressão para desqualificar —, da mesma forma estou julgando o processo de cima.

Para dizer o que é multidão, primeiro precisaríamos entender os processos de dentro, pesquisá-los efetivamente — tem pouquíssima gente pesquisando esses processos —, analisar os sujeitos que estão se constituindo e analisar se existe dentro desse projeto alguma tendência de fazer multidão por dentro do processo; não necessariamente toda a manifestação seria multidão.

Poderia haver uma tendência ali dentro que está associada a outras redes, a outras formas de mobilizar que talvez não estejamos vendo e que isso é multidão; teria que pesquisar.

IHU On-Line – Mas você, enquanto pesquisador que utiliza esse conceito, está neste processo de investigação para saber se se trata ou não de multidão? Há pesquisas empíricas neste campo?

Bruno Cava – Esta categoria é muito difícil. No Rio de Janeiro, a rede de pesquisadores de que participei, na Universidade Nômade, esteve muito presente em junho de 2013 e lá, claramente, tinham processos de fazer multidão. Existia, sim, a linha longitudinal das manifestações e que se tornou predominante no Rio de Janeiro em outubro — porque no Rio de Janeiro os protestos foram de junho até outubro. Em outubro, claramente, se tinha um processo de novo tipo, de organização de novo tipo, de mobilização de novo tipo, que é um processo que pode se expresso por este conceito de multidão.

Hoje, estamos fora. Por que estamos fora? Quem organizou essas indignações foram grupos ligados nas redes sociais, que vêm de uma mobilização que não participou de junho, nem o #VemPraRua, nem o MBL, nem o Revoltados. Eles aprenderam com junho.

Embora o conteúdo das pautas seja diferente, a forma de trabalho é parecida: a capacidade de se organizar nas redes sociais, de ter um discurso agregador sem unificar necessariamente em uma só ideologia ou em um partido. A maioria das pessoas que estão na rua, embora não tenham votado na atual presidente, rechaçam qualquer partido: 85% não simpatizam com nenhum partido nas pesquisas da Perseu Abramo e do Datafolha. Isso é uma forma nova de organizar, ou seja, você não é obrigado a estar fechado com um programa para participar de manifestação; você pode participar da manifestação e levar seu cartaz, participar com a sua diversidade e a partir daí encontrar uma ocupação, ou um grupo no Facebook, ou uma assembleia e começar a se envolver mais.

IHU On-Line – E o que aconteceu com a multidão de junho de 2013?

Bruno Cava – A leitura mais presente entre nós é que a eleição foi um processo de destruição da multidão. A multidão funciona de forma transversal, não precisa ter um centro de comando onde se elaboram os discursos. O que foi a eleição? Foram dois centros de comando que mandavam para todos seus militantes, para todas suas mídias, as mensagens, os discursos, e a pauta do dia era reproduzida. Quando chegávamos nas redes sociais, onde nós estamos — somos apenas indivíduos nas redes sociais —, éramos bombardeados pelos “memes”. Uma guerra estava acontecendo, com cobranças para que as pessoas participassem a partir das visões dos centros de comando. Ou você participa ou está do outro lado, era um discurso binário. Eu, pelo menos, estou bem pessimista em relação à capacidade de fazer multidão no atual contexto; teria que haver algum passe, alguma forma de salto qualitativo para isso acontecer.

IHU On-Line – Esse salto qualitativo passa pela existência de um líder político que possa representar a multidão?

Bruno Cava – Sim. Na eleição de 2014 tinha a Marina. O discurso da Marina e sua própria construção política desde que saiu do governo, em 2008, vinha nessa direção de afirmar um novo sujeito político, uma sociedade em rede, uma sociedade conectada globalmente, enfim, ela apostou mesmo nessa linha que, em termos de discurso, dialogava com junho de 2013 muito melhor que os outros candidatos.

IHU On-Line – A Marina Silva seria a representante da multidão?

Bruno Cava – Não, a multidão não admitiria uma representante, a multidão poderia ter uma tática eleitoral. A potência está com a multidão, ela nunca delega um representante a essa potência. A multidão, como é um sujeito político gerador e constituinte, tem sempre a potência ao lado dela.

Naquele momento da eleição, a Marina tinha a possibilidade de ser um vetor desses processos, mas por inúmeras falhas, pela própria situação que ela se colocou na campanha: sem um partido próprio, sem um grupo de elaboração próprio, entrando de forma improvisada depois da morte do Eduardo Campos, com infinitamente menos recursos, infinitamente menos condições e com os erros que ela cometeu também, se colocando em uma posição defensiva tentando arriscar e jogar para os dois lados. E, ao tentar jogar para os dois lados, ela perdeu a capacidade afirmativa, a capacidade de ocupar o vazio. Para ocupar o vazio você não pode ficar só na defesa; é preciso ter capacidade afirmativa. Ela acabou sendo destruída por esta máquina binária, cometeu vários erros, não teve também como contornar os erros durante a campanha e passou muito longe de conseguir exprimir junho de 2013.

Mas era, de fato, entre as três candidaturas com mais chance de ganhar a eleição, a que chegou mais perto de abrir este processo. Talvez, por isso, Giuseppe Cocco compara, com um pouco de ressalvas, mas compara ao que está acontecendo na Espanha com o Podemos, que é o partido que está acolhendo também esta insatisfação com todo o sistema político e quer inovar em formas de democracia.

IHU On-Line – É necessário o surgimento de um “Podemos” no Brasil para avançar em termos de pauta e representação política?

Bruno Cava – Essa é uma grande questão também. Qual é a liderança que vai, de fato, vetorizar ou que vai simbolizar isso? Porque o que pode acontecer é: ou a volta do Lula, que seria mais do mesmo novamente, ou algum oportunista.

IHU On-Line – O que diferencia os círculos comunitários de hoje com o que as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs faziam junto com a Igreja durante o surgimento do PT?

Bruno Cava – O surgimento do PT é o surgimento de tudo isso que falamos de horizontalismo, de formas de democracia participativa, multiplicação de núcleos de base, de associações de moradores, de movimentos da saúde da periferia, de comunidades eclesiásticas de base, as pastorais da Terra que iam se enraizar, do sindicalismo que é uma luta por um sindicato de novo tipo.

Enfim, o surgimento do PT é o surgimento do novo e completamente atravessado pela multidão no final da década de 1970 para 1980, que ocupou um vazio, que é o vazio da crise econômica e política da ditadura, que foi acelerada por esses processos de mobilização, como as grandes greves, os protestos contra a ditadura, do movimento estudantil, do movimento negro unificado, do movimento das mulheres.

Mas muitas pessoas, principalmente à esquerda, pretendem reproduzir este processo ou acreditam que a saída é reproduzir este processo para fazer um novo partido hoje. Teríamos que começar a construir qualidade de trabalhos de base, de participacionismo, todo aquele processo que vai culminar não no governo Lula, mas no orçamento participativo em Porto Alegre em 1989, na prefeitura da Luiza Erundina em 1989, em São Paulo. Porto Alegre e São Paulo foram grandes laboratórios entre instituição e movimento.

Mas o mundo mudou, as formas de organização da vida, de organização social, de como nos organizamos mudaram muito. Hoje trabalhamos completamente conectados, temos uma conexão com a cidade que é diferente da conexão de cidade com o território daquela época, que era uma conexão mais local, uma conexão com seu ambiente de trabalho. Hoje estamos em rede, nos comunicamos a grandes velocidades e a grandes distâncias. Participamos de grupos de afinidades e interesses diferentes ao mesmo tempo, não temos uma vida orgânica, arrumadinha, estamos em três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Então, não tem como reproduzir um método de organização, um método de construção que era próprio dos anos 1970, 1980, no século XXI, em 2015.

Mesmo porque aqueles pobres do PT, os sem terra, os sem teto, mudaram também. Hoje se tem em torno de 100 milhões de brasileiros que pertencem à “nova classe média”, que são pobres que conquistaram alguma renda, mas também tiveram acesso a ferramentas, ao conhecimento, a mídias, a redes, e também criaram suas próprias culturas de resistência, seus próprios termos de sociabilidade e de produção cultural. Não precisa que venha um partido ou que venha um grupo de pedagogia do oprimido para ensinar, para emancipar; as pessoas são autônomas. Então, se existe uma diferença, não diria que é uma diferença com o ciclo de cidadania, porque creio que seria uma megalomania querer comparar os ciclos de cidadania incipientes — temos em torno de 10 a 15 ciclos espalhados — com a CEBs.

Os ciclos não são necessariamente enraizados em territórios. Podem ser temáticos, de afinidades, podem atravessar as cidades também; os ciclos não têm um lógica piramidal. Todos os ciclos são interdependentes e estão no mesmo patamar, são a tentativa de criar uns pontos de cultura. Os pontos de cultura são mais próximos dos ciclos de cidadania, porque a lógica dos pontos de cultura é baseada na negociação de recursos, de tempo, recursos inclusive com o Estado para poder construir algum tipo de mobilização, mas você elabora e executa esse movimento por conta própria, como os pontos de cultura. Eles negociavam os recursos, mas quem determinava o que era cultura era o próprio ponto de cultura, ele tinha autonomia para isso. Ou seja, o Estado não diz o que eles têm de fazer e não há uma política que determina o que os pontos têm de fazer. É muito mais horizontal este ponto de vista do que uma lógica de pirâmide, uma lógica partidária do tipo clássica.

IHU On-Line – A multidão não quer participar politicamente de uma instituição?

Bruno Cava – Primeiro, a multidão — esse conceito do Antonio Negri e do Michael Hardt — é uma tentativa de pensar o povo, é um conceito para substituir o povo no momento em que não se tem mais aquela unidade homogênea criada pelo Estado a partir da nacionalidade, ou aquela unidade clássica do nacional popular de Antonio Gramsci, com todas as tentativas socialistas de construir o povo em oposição à burguesia. Ou seja, a multidão é um conceito de um sujeito, mas que não está dado, não existe algo que mostre onde está a multidão; multidão é um fazer, é um processo, é uma permanente construção e reconstrução de um processo. Um processo que tem linhas organizativas que vai se transformando.

A multidão atravessou o governo Lula. O que foi a reinvenção do Brasil nos últimos 15 anos? O Brasil melhorou, não podemos colocar uma venda sobre esse aspecto. Só que a situação melhorou não só porque o Estado foi lá e deu algo. Ela melhorou porque a população se apropriou dessas políticas, tomou posse dessas políticas e reinventou o Brasil. Quem reinventou o Brasil não foi o governo X ou Y, o partido X ou Y; a transformação foi uma conquista social, resultado de muita mobilização desde o ponto de vista mais cotidiano no sentido de luta. Esse é um processo que não precisa de uma liderança que diga o que fazer e não precisa de um partido que vai dar um programa a ser seguido. Não é simplesmente uma construção dos sindicatos ou das empresas; é um processo autônomo.

O conceito de multidão não se opõe à instituição; não há uma dicotomia entre multidão de um lado e, de outro lado, as instituições e os aparelhos partidários. A multidão é potência social, é criatividade, é democracia — capacidade de criar democracia, de se agenciar e construir juntos ações coletivas e afetos implicados desta democracia. Na verdade, as instituições sem uma legitimidade, uma participação de processos ativamente democráticos, se esvaziam, geram um deságio entre a República representada e o representante. Essa é a crise que vivemos da representação, que não acontece só no Brasil, mas é mundial. Trata-se de um processo de esvaziamento, de desconexão, e isso gera um vazio.

IHU On-Line – Depois das manifestações de domingo, o que vislumbra acerca de novas manifestações no país?

Bruno Cava – A crise econômica ainda não pegou os efeitos para valer, o ataque na massa salarial dos direitos ainda vai cobrar custos e isso vai desdobrar-se ao longo de todo o ano, e até o final do ano não tem nenhuma saída à vista para esta crise. Isso certamente vai gerar indignação, porque as pessoas vão perder o que elas têm. Esse é o primeiro momento, desde 2003, em que se tem uma crise econômica que realmente vai atingir as classes populares. Tem ainda a grande desilusão da eleição, porque a Dilma foi eleita em uma euforia, como uma alternativa na capacidade de gerir o país sem crise. Isso gera uma percepção de que o governo é arrogante e que fez uma campanha de mentiras, o que certamente será acentuado durante este ano.

Agora, qual o sentido? Qual a narrativa? Qual será a pauta em que isso irá coadunar? É acerca dessas perguntas que vejo uma situação de enorme impasse, como havia comentado no início, ou seja, tem os grupos mais mobilizados ao redor da corrupção, querendo somente o impeachment da Dilma e se concentrando nesta pauta; de outro lado, as manifestações mais ligadas aos grupos do governo ou que são do governismo crítico, que dizem que a saída é pela esquerda, mas, no momento de fazer mobilizações, as fazem junto com os movimentos sociais ligados ao governo, os quais não têm capilaridade popular, nem capacidade de mobilização além de suas redes antigas, as velhas estruturas partidárias, e que não encampam o discurso da corrupção. Então, é muito difícil eles se conectarem ao sentimento popular.

O trabalho a ser feito hoje, um trabalho ativista de construção de discurso, de ousadia, seria o de buscar nas margens dos dois grupos o limiar dessas manifestações da corrupção e ao mesmo tempo estar presente em manifestações como a contrária à terceirização, tentando tensionar para que não caia na ordem da polarização do governismo. O problema é que, assim como na eleição, agora a capacidade de repolarizar o cenário político ainda é muito forte, e isso cria um redemoinho. E esse redemoinho tende a cooptar tudo o que vê pela frente. É muito difícil conseguir escapar dessas duas esferas.

Mas não vejo outro jeito, não dá para imergir em um grupo que pode parecer uma alternativa mais conservadora para a crise, porque podemos chegar a algo parecido com o cenário argentino de 2001, em que cinco presidentes caíram em três meses. Do mesmo modo, não dá para imergir simplesmente, acriticamente, em manifestações do governo. Se participarmos dessas manifestações, estaremos defendendo o quê? Uma pauta que não é de direitos, pelo contrário. A própria PEC da terceirização foi engendrada no governo. Essa tentativa de separar o governo, ou seja, de separar o Poder Executivo e o Legislativo, é uma tentativa formal, porque o governo é composto pelo Poder Executivo e por uma base no Poder Legislativo, que justamente se chama “base do governo”.

O PMDB, majoritário no Congresso, também é governo, o Renan Calheiros, o Eduardo Cunha, os governadores do PMDB, o Pezão no Rio de Janeiro, também são base do governo. Na verdade não é governo, é governabilidade: há um esquema de governabilidade que é pautado pelo PT e que agora tenta criar uma nova dialética do “menos pior”. Criou com o Aécio e agora tenta criar com o PMDB e com Eduardo Cunha. Então, uma defesa do governo, ainda que seja pela esquerda, é defesa disso; o que é o mais neurótico de tudo.

IHU On-Line – Como vê esse discurso de sempre tentar isolar o PT dos demais partidos?

Bruno Cava – É o discurso da tese defensiva. Quando você assume uma tese defensiva, ou seja, uma tese que não fala em mudança, que fala em só manter o que se tem, você cede o discurso da mudança, do propositivo, para a oposição. Hoje, os grupos mais à direita estão começando a dominar, a se apropriar de todo o discurso da mudança, enquanto os grupos à esquerda ficam simplesmente lutando para barrar a direita pelo “menos pior”, contra o retrocesso.

IHU On-Line – Por que há tanta discordância dentro da esquerda e a dificuldade de encontrar uma pauta unificadora?

Bruno Cava – O Brasil é muito difícil, mas a esquerda é mais difícil ainda de se entender. Não tenho essa resposta. Mas acho que o principal não deveria ser a esquerda, ou seja, não deveria ser uma disputa pela ideologia da esquerda por ser de esquerda, deveria ser pelas lutas existentes, pelas pautas existentes, ou seja, partir do que são efetivamente os sujeitos sociais mobilizados, suas perspectivas de lutas e projetos de mobilização, e a partir daí construir.

Marx e Engels falavam isso na Ideologia alemã: o comunismo, ou seja, a luta de classe é um movimento real de superação do estado de coisas, não existe um comunismo que é meramente um discurso, ou projeto, ou modelo de sociedade; isso é socialismo utópico. Ele é necessariamente uma imersão nas forças reais mobilizadas que já existem em seu tempo de luta e a partir daí se constrói um projeto político institucional.

A esquerda tem dificuldade de se conectar às lutas reais do seu tempo e aí ela se esvazia e vira uma ideologia, no sentido ruim de ideologia, ou seja, uma bandeira vermelha. A partir dai é que surgem as brigas, como se fosse religião: se discute um monte de questões de dogma, de doutrina, mas dentro da vida de cada um, talvez, essas questões não sejam tão impactantes. A esquerda também começa a discutir uma série de pontos ideológicos, só que se você for para as lutas existentes, essas discussões não fazem muito sentido.

Foto: linhaaberta.com

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