Leitores me perguntam o que aconteceu com audiência deste blog depois que suspendi, por tempo indeterminado, a área de comentários devido à violência e ao ódio que transbordavam dali, tornando-o um espaço muitas vezes inócuo de discussão – por melhores que fossem as exceções.
A resposta é: ela aumentou. Claro que pode ser conjuntural ou apenas coincidência. Ou seja, não é possível dizer que um cachorro latindo para um Fusca 69 está diretamente relacionado a um eclipse lunar.
Mas não deixa de ser alvissareiro que a maior parte dos leitores continua por aqui, concordando ou discordando. E é em homenagem a eles, que encaminho uma coletânea de comentários reunidos ao longo dos anos neste blog, com breves réplicas da minha pessoa.
“Tá com dó de criança de rua/morador de rua/usuário de drogas? Leva para casa.”
Réplica: A sistemática ausência do Estado e a mais sistemática ação de determinados grupos ditos liberais de reduzir a importância da ação estatal ajudou a espalhar cada vez mais aberrações como essa. A discussão sai do âmbito das políticas públicas, que deveriam existir para dar apoio a determinadas populações fragilizadas, e passou para o espaço privado. Ou seja, sou eu que tenho que pegar cada pessoa pelo braço e dar comida em casa. Pois o Estado tem que se preocupar com coisas mais importantes, como auxiliar grandes corporações. Por outro lado, o comentário é recheado de rancor, como se a pessoa desejasse ver uma punição contra esses deslocados. “Por que tenho que me encaixar na sociedade e eles não?”, deve perguntar o comentarista. Daí para a desumanização e queimar índios na rua é um passo.
“Para que libertar escravos se eles vão gastar o dinheiro que ganham com cachaça, muitos deles até cometer crimes”
Réplica: Sim, apareciam comentários assim por aqui. Basicamente significa algo como: liberdade é algo para aqueles que sabem desfrutá-la com comedimento. Para não dizer o outro significado, que pende para um crime de ódio. Nossa capacidade de tentar controlar a vida do semelhante não conhece limites. Até onde sei, não existe punição preventiva. Quer dizer, até existe, haja visto as milícias rurais ou os grupos de extermínio em favelas, ou como ouvi dia desses, “atos radicais de limpeza social”. Mas isso – ainda – não é lei.
“Antes de falar mal de um agricultor/pecuarista, saiba que é ele quem coloca a comida na sua mesa.”
Réplica: Ninguém está criticando todos os agricultores ou pecuaristas, mas apenas aqueles que fazem caca. Esse tipo de comentário usava a velha técnica de convencer os outros de que você está falando mal deles também a fim de obter parceiros na luta contra o blogueiro. Identidade reativa, sabe? Criar um inimigo comum, no caso eu, ignorando as arestas que existem entre os produtores que atuam dentro da lei e os criminosos.
“Jogue o seu diploma no lixo.” “Você é um mala.” “Volta para o Japão!” “Como os seus amigos te aguentam?” “Cara, você tem cara de pirralho.” “Dou como 95 por cento de chances que o seu problema é falta de mulher!” “Você é um vendido!”
Réplica: É velha tática de atacar não o argumento mas o interlocutor – talvez até por falta de fatos sustentáveis para se basear. Mas não vou negar que muitos dos comentários desse gênero são criativos – o povo se esforça! Essa é a hora mais divertida da leitura.
“Você defende o aborto, não entende os desígnios de Deus e não dá a mínima para a vida.”
Réplica: Exatamente porque defendo, acima de tudo, a vida é que tenho essa posição. Mas poderíamos dialogar feito gente grande sobre o tema se fossem trazidos argumentos não sobrenaturais para essa discussão. Devido aos textos defendendo o santo direito da mulher ao aborto, e carregado de raiva ou de um ímpeto evangelizador, um leitor postava diariamente quase um capítulo inteiro da Bíblia na forma de comentários neste blog – que, graças a Deus, tinha filtro para segurar esse tipo de fanfarronice. Realmente, não entendo os desígnios de Deus e não faço ideia se ele joga dados. Mas me lembro de uma tira da Laerte em que Deus cria um céu mais legal para pessoas desregradas que se divertiram na vida. O aborto está longe de ser divertido, mas há pessoas que acreditam que a maior parte das mulheres que a ele recorrem adotam-no como costumeiro método contraceptivo. Afe.
“Os negros continuam nessa situação hoje porque não quiseram trabalhar pesado ao serem libertados.”
Réplica: O 13 de maio de 1888 representou o despejo de pessoas na rua sem um processo de inserção civil, social, econômico. Pelo contrário, foram criados instrumentos para manter a mão-de-obra farta e ao alcance, mas sem os custos da compra. Nunca o país resolveu esse problema, sempre empurrando-o com a barriga. Aí quando se fala em ações afirmativas, ou seja, tratar desiguais de forma desigual por um tempo de forma a alcançar a igualdade, o pessoal chia. “Isso é racismo contra brancos!”, bradou um aqui por esses dias. Como um país quer se arvorar como uma democracia se paga bem menos para uma mulher negra que realiza a mesma tarefa que um homem branco?
“Deus criou o homem para governar e a mulher para estar ao seu lado.” “O marido tem direito a bater em sua mulher.” “Lei Maria da Penha não deveria existir porque em briga de marido e mulher não se deve meter a colher.”
Réplica: A maior parte dos comentários machistas foram anônimos neste blog. Por que será?
“Esses sem-terra/sem-teto são um bando de vagabundos. Apanhar é pouco, deveriam matar mais alguns para que parem de atacar a propriedade alheia.”
Réplica: Às vezes me pergunto quem foi que escolheu os temas dos livros de História usados nas escolas. Pois se os alunos entendessem como a política de terras no país garantiu que um punhado de pessoas concentrasse boa parte das propriedades (os dados do IBGE confirmam isso) entenderiam melhor o que significa lutar pela terra. Não é roubar, mas garantir que seja feito Justiça. Outra coisa: boa parte das vezes são pessoas desprovidas de bens materiais que transbordam fascismo ao criticar ocupações de terra ou de imóveis. Poderíamos falar durante dias sobre o que está por trás desses discursos, mas cito a raiva diante da coragem alheia, o desejo de ascensão social que culmina na mesma posição do latifundiário, os efeitos dos discursos (muito famosos na época da Guerra Fria) de que os comunistas vão invadir sua casa e tomar até o liquidificador depois de violentar sua filha… Ou posso estar enganado e todas as pessoas que deixavam esses comentários bizarros no meu blog são da TFP. Espero que não, pois imagine quando resolverem fazer um flash mob aqui na frente da minha casa?
“No meu mundo perfeito, não apenas uma oca, mas os moradores dela também seriam expostos como exemplares exóticos em zoológicos espalhados pelo mundo. Estes seres não contribuem em nada para a sociedade.”
Réplica: No meu mundo perfeito, o Palmeiras seria campeão todos os anos. No meu mundo perfeito, gordura de batata frita não iria entopir artéria. E, principalmente, no meu mundo perfeito, o bom senso e o respeito pelas diferenças reinariam e ninguém teria coragem de escrever um comentário assim.
“Trabalhei quando criança e isso formou meu caráter. Criança tem que trabalhar para não ficar fazendo arruaça na rua.”
Réplica: Boa parte dos comentários que eram postados sobre trabalho infantil são maniqueístas: ou a criança tem que ser burro de carga ou vai assaltar nos semáforos, não existe a opção estudar-brincar-crescer. Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação seja bonita o suficiente para ser copiada pelo seu filho. Mas será que eles não imaginavam que o trabalho infantil não precisava ser hereditário? “O trabalho liberta”, já dizia o portão do campo de concentração. No Natal, vou fazer uma lista para Papai Noel levar uma boneca de pano ou um carrinho de madeira para a porta desse pessoal amargo da vida.
“Queria ver você ter um filho homossexual.”
Réplica: Pode ser. Mas o nosso planejamento familiar prevê filhos apenas um pouco mais para frente.
“Se você critica tanto São Paulo, seu fdp, porque não se muda daqui? Tenho orgulho de ser bandeirante, sou a locomotiva que puxa este país!”
Réplica: São Paulo, ame-o ou deixe-o. Depois perguntam porque a redemocratização é lenta nas entranhas de alguns. Esse comentário estava em um post em que escrevi que parte da população de São Paulo, pobre ou rica, guarda o ranço quatrocentão, bandeirante, o nariz empinado e arrogante diante do restante do país. É aquela coisa: se você é paulista e critica o estado, bom sujeito não é. O bom é que a pseudo-hegemonia perde força a cada dia.
“A empresa X gera empregos para o Brasil. E você? Quantos empregos gera?”
Réplica: Trabalho é a única coisa que gera riqueza, portanto sem força de trabalho nenhuma empresa gera riqueza real. Em outras palavras, não é um favor contratar alguém, uma vez que alguém vai ficar com o lucro obtido por essa pessoa. O dono do capital precisa do trabalhador, contudo é comum as empresas e parte da mídia inverterem o discurso, mostrando a bondade de contratar empregados. Faça-me um favor! Aliás, fico na dúvida: será que comentários assim vieram dos departamentos de comunicação cujo trabalho é garantir a imagem da empresa, de empregados de alto escalão das mesmas ou veio de trabalhadores da base que sentem orgulho louco e cego de fazer parte de uma grande corporação? Se forem as opções “a” e “b”, OK, faz parte do jogo. Se for a “c”, começo a me preocupar pela raça humana.
“Bandido bom é bandido morto”
Réplica: Para começo de conversa, diga-me com quem andas que te direi quem és. Afinal de contas, matar é a solução, porque pau que nasce torto não tem jeito, morre torto. E, na periferia, filho de peixe, peixinho é. Revidar é nosso direito, pois quem com ferro fere com ferro será ferido. Ou eles ou nós, pois o pior cego é aquele que não quer ver!
É tão fácil repetir idéias feitas, sem pensar, né?
“Você pensa assim porque um destes pulhas malditos ainda não estupraram sua mãe. Seja mais corajoso, pára de ficar escrevendo só o politicamente correto”
Réplica: Antes de mais nada, notem o detalhe do “ainda”. Minha mãe agradece imensamente ao leitor o destino que ele, carinhosamente, preparou a ela. Fácil é escrever o que o senso comum deglute com facilidade e que está guardado em nossos instintos mais animais. Difícil é redigir algo com a certeza absoluta de que apenas uma minoria vai ler o texto até o final e, daí, refletir. Em um assunto polêmico, boa parte das pessoas passa o olho de forma transversal, capta algumas palavras como “direitos humanos”/ “traficantes”/ “Estado” ou “Palmeiras”/ “futebol” / “campeão” e sem nenhuma intenção de expor idéias ou debater, pinça um capítulo de sua CPA (Cartilha Pessoal de Abobrinhas) e posta como comentário. É a vitória da experiência individual sobre a necessidade coletiva, da emoção do momento sobre a racionalização necessária para que não nos devoremos a cada instante.
“Por mim, aqueles 200 traficantes fugindo pelo morro deveriam ter sido todos metralhados em frente às câmeras”
Réplica: E depois, redimidos por todo o sangue na TV, eu e meus filhos sairíamos para comer uma bela macarronada ao sugo – pasta regada a um saboroso suco de uva. Suco, não que é coisa de pobre. De um bom vinho… Lembram daquela série de TV, Justiça Final, que contava a história do juiz Nicolas Marshall, que julgava e executava os bandidos no ato, sem tergiversar, nem fazer trolóló? Pois bem, ela fez muito mal a uma geração inteira. Tem gente com dificuldades cognitivas graves e que não consegue entender, nem a pau, que o Estado tem que fazer Justiça e não vingança. Ninguém está sugerindo que o Estado deve entregar o monopólio da violência, se tiver que matar, infelizmente, ele irá matar. Mas por necessidade, não por prazer; em combate, não de forma preventiva; seguindo a lei, e não por capricho personalista.
“Por que o país não acaba com essa merda de direitos humanos?”
Réplica: Fazem parte dos direitos humanos seu direito de ir à igreja e professar uma fé, de se organizar em um partido ou uma associação, de votar e ser votado, de não ser molestado por ter uma cor de pele ou orientação sexual diferentes, de poder ir livremente de casa para o trabalho sem o risco de ser abordado e preso sem justificativa, de ter igual direito, sendo homem ou mulher, de ter uma opinião diferente e não ser incomodado por isso (desde que essa opinião não machuque os demais), de ter um emprego decente, de não ser torturado gratuitamente, de ter acesso a um julgamento justo e não ser condenado sumariamente. Querem acabar mesmo com “essa merda de direitos humanos”? Tudo bem? Mas me avisem antes, porque não vou querer ser o último a apagar a luz.
“Você fica criticando os casos em que os homens batem nas mulheres. Mas, pelas Leis de Deus, há direitos dentro da relação e ninguém pode se intrometer nisso. Você não sabe o que levou o homem a determinado ato, então não se intrometa.”
Réplica: Aleluia, irmão! Nem sei por onde começo… Bem, talvez pelo mais óbvio: se você não é casado, faça-nos um favor, não case. Melhor ainda, nem chegue perto de uma mulher – nem de sua mãe. Pelo menos, não antes de resolver alguma coisa que tem que ser resolvida aí dentro. Além disso, não há absolutamente nada que justifique violência física ou terror psicológico em uma relação. E, sim, é dever de qualquer pessoa em sã consciência se intrometer, como também tarefa do próprio Estado garantir a integridade da pessoa.
“Leis de Deus”? Há interpretações machistas dos textos das três grandes religiões monoteístas (cristianismo, islamismo, judaísmo) sistematicamente sendo usadas para escravizar as mulheres em suas relações. E uma luta grande das mulheres para dar uma outra visão – das Católicas pelo Direitos de Decidir a muçulmanas que citam o próprio Corão para mostrar que não são pessoas de segunda classe. Mas, como sabemos, essa ação tem sido facilitada pelo fato de as três grandes religiões terem sido recentemente assumidas por mulheres.
“[Os rapazes agredidos por serem gays] Deveriam ter apanhado mais.”
Réplica: Esse comentário aí em cima nem foi publicado. Denunciei o autor direto aos órgãos competentes. Posts sobre direitos dos homossexuais são os que mais dão dor de cabeça, pois tenho que ficar de olho aberto. O pessoal apela a um nível que vocês não têm ideia, utilizando mais palavrões do que palavras em uma única frase. Outra coisa fascinante: héteros não podem defender direitos de homossexuais. Na cabeça desse povo as coisas só fazem sentido se forem bem maniqueístas, bem preto no branco. Então, se você escreve criticando os jovens delinquentes que desferiram golpes de lâmpada fluorescente contra os rapazes na Paulista, você tem que ser gay. Daí vem uma segunda constatação: para as mesmas pessoas, “gay” é xingamento obsceno. Enfim, se esse pessoal lelé da cuca gastasse a mesma energia com a qual discute o direito de duas pessoas do mesmo sexo terem os mesmos direitos de duas pessoas de sexo distintos, já teríamos a cura do câncer.
O que mais me constrange nesse comentário é que não basta os jovens terem apanhado, o comentarista queria que eles apanhassem mais, sofressem mais, feito uma onda sádica de punição, como um açoite virtual. Uma vez que ele não pode chicotear esses malditos sodomitas em praça pública e, graças aos céus, a internet garante a covardia do anonimato, ele desfere um golpe digital, como se dissesse “foi pouco”. Torcida por sangue, por morte? Talvez. Ouvi dia desses uma pessoa dizer que, se pudesse, espancaria os homossexuais. Por quê? Nojo. Poderíamos discutir aqui durante dias os motivos que levam alguém a um quadro de patologia social como essa (de querer o mal do seu semelhante mesmo sem o conhecer). Prefiro apenas acreditar que há cura para a homofobia. Tem que haver.