Por Clóvis Brighenti, do Cimi Regional Sul
Na memória da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), este 8 de abril entra para a história como o dia em que os Guarani, Kaingang e Xokleng Laklãnõ a conquistaram. O diploma de graduado foi entregue para 78 alunos, sendo 23 Guarani, 21 Xokleng Laklãnõ e 34 Kaingang, que concluíram o curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. O sentido da conquista não é o de apropriação, mas de modificação dessa importante instituição como lugar de todos, para todos, um lugar onde os povos indígenas podem frequentar a sua maneira; lugar onde suas línguas são valorizadas e os conhecimentos tradicionais são tratados de maneira igualitária ante os conhecimentos ditos científicos. A cor da UFSC também mudou. Os rostos brancos ficaram misturados com peles escuras, aproximando-se do cotidiano brasileiro. A UFSC nunca mais será a mesma.
Iniciado em fevereiro de 2011, o curso foi composto por alunos Guarani, Kaingang e Laklãnõ/Xokleng, provenientes dos estados de Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Teve como fundamento as questões ambientais e territoriais. “Territórios Indígenas: A questão fundiária e ambiental no Bioma Mata Atlântica, foi o eixo que norteou todo o conteúdo ministrado. As terras nessa região são minúsculas, e praticamente desflorestadas. Elas ocupam menos de 0,3% do território regional, o que impõe grande desafio para a sobrevivência dos povos indígenas. As 42 disciplinas ministradas, os trabalhos Tempo Comunidade e as Atividades Acadêmico-Científico-Culturais (AACCs), que integraram a estrutura curricular do curso, foram momentos importantes de reflexão sobre esse contexto territorial/ambiental e de desafios ao pensar metodologias de abordagem em seus locais de trabalho, como as salas de aula nas escolas indígenas e junto às lideranças e famílias nas comunidades. Sem dúvida a devolução das terras é urgente e necessária, como bem destacaram os alunos no juramente de formatura:
“(…) contribuir nas lutas do meu povo, fortalecer a nossa identidade, manter a nossa língua, cultivar nossa forma própria de viver através de nossas práticas educativas. Construir caminhos de sustentabilidade com os quais podemos fortalecer a autonomia, a autodeterminação, a liberdade, com fartura e alegria, com crianças sadias, com jovens e adultos bem-aventurados. Mas, para alcançar essa condição precisamos de terra. Precisamos das nossas terras tradicionais. Juro!”
A estrutura do curso pensada a partir da pedagogia da alternância, composta por um Tempo Universidade e um Tempo Comunidade, permite ao aluno indígena desenvolver a interculturalidade em processo. Na universidade são convidados a conhecer teorias e temas reflexivos sobre as temáticas estudadas, e na comunidade o processo é inverso, são convidados a olhar para si próprio, para seus pares, para os conhecimentos tradicionais. E em ambos espaços fazem as junções de temas. Talvez a maior riqueza está em ver-se, perceber-se enquanto sujeitos portadores de conhecimentos singulares e valorizar esses conhecimentos incentivando as vivências comunitárias.
O curso não forma apenas professores, capacita pessoas que atuarão nas comunidades, seja em sala de aula, seja na vida cotidiana de seu povo, na intervenção das políticas públicas e na defesa dos direitos. Serão fundamentalmente defensores de seus povos e mediadores com o universo externo. O conceito tradicional de professor foi rompido, porque foram formados cidadãos. O curso se caracterizou pelo mais baixo índice de evasão em cursos de licenciatura com 65% de conclusão.
Os seus conhecimentos e vivências estão disponíveis na biblioteca da universidade, como diz Elaine Tavares: “É um saber que até então estava restrito a eles mesmos ou de um e outro estudioso. As culturas Guarani, Xokleng Laklãnõ e Kaingang podem ser visitadas, e é contada pelos próprios índios. Não é um falar sobre um “outro”, distante. É um dizer de si mesmo, com toda a delicadeza/força de uma cultura que, a despeito de tantos massacres, sobrevive e ocupa os espaços”.
A noite foi de festa
A formatura se revelou uma grande síntese contraditória do conhecimento. Ao usarem de todo rigor formal da vestimenta cerimonial – beca – pintaram os rostos com as cores e as formas próprias; salto alto, gravata e uso da língua. Filhos bebês, outros crescidos, netos se fizeram presente no colo das formadas, como se fizeram presentes durante todo curso. Familiares lotaram o auditório, alguns pela primeira vez pisando no solo da universidade e sentindo o gosto da conquista desse espaço com a sensação que a “fera” está domada, já não ameaça mais, os caminhos encurtaram e os conhecimentos se aproximaram.
Como nos ritos de passagem, a formatura caracterizou-se por ser esse ritual moderno de conquista de outra fase da vida, a de professor, de liderança das comunidades. Nessa vida “adulta” muitos serão os desafios, eles sabem perfeitamente, mas sabem também que estão preparados para enfrentá-los.
Estiveram presentes todos os que se envolveram desde 2006, quando o curso começou ser gestado, como entidades indigenistas e profissionais da educação estadual e federal, pessoas que se agregaram ao processo no seu transcurso e a direção da universidade, desde sua Reitoria, Direção do Centro de Filosofia e Ciências Humanas e representantes do curso de História, onde a Licenciatura estava alocada. O Cimi, que acompanha esse curso desde sua concepção, homenageou os alunos com uma muda de araucária, árvore importante na cosmologia e cosmografia dos três povos, além de ser importante provedora de alimentos.
“O título de graduação assemelha-se a uma araucária pequena, como essa que você está recebendo agora. É necessário cuidado diário para que ela cresça e produza frutos. Os frutos não são apenas para você, serão para seus filhos e netos e toda a comunidade. Alimente constantemente com água, leitura, diálogos e cuidados. Sempre haverá formigas tentando devorá-la. O compromisso é seu, os frutos dependem de você, o futuro está em suas mãos. Homenagem do Cimi Sul e das pessoas que se dedicaram a plantar e zelar o curso/pinheiro de Licenciatura até esse momento.”
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Fotos: Clovis Brighenti.
Fui professor dos kaingangs neste curso. Dos quais já tinha lecionado em 2000 na formação do Ensino Médio de professores. Uma relação muito positiva e desafiadora.