por Antonio Claret Fernandes para Combate Racismo Ambiental
O Centro de Convivência Marupiara está lotado. As cabeças são capacetes de acionistas da usina de diversas partes do mundo. A imprensa é ‘orientada’ a aguardar a Agência de Notícias do lado de fora para uma entrevista coletiva ao término da atividade. Questão de segurança. O ambiente está pronto, impecável, um telão na parede, data show e notebook sobre a mesa, no ponto. Tudo planejado nos mínimos detalhes pelo cerimonial, ordens superiores, pois nada pode dar errado nesse dia.
Um parêntesis. O capital é irônico! Marupiara vem do Tupi-guarani e significa, na sua etimologia, lugar onde se reúnem pessoas felizes. A lenda conta que um indiozinho da Amazônia era amigo de todos os animais e plantas da floresta, defendendo-os e protegendo-os. O Marupiara, ao ver o caçador de tocaia para apanhar um tatu, faz barulho no galho das árvores para alertar o animalzinho, que foge e se esconde numa toca, onde o caçador não o vê. Um contraste frontal com o que ocorre, agora, no Xingu, cujo povo é oprimido com uma obra criminosa.
Reina, ali, naquele evento, um silêncio ansioso. As pessoas cochicham baixinho com os mais próximos, ao pé do ouvido. Distingue-se o sotaque dos vários idiomas. Quando o relógio dá nove horas em ponto, toca-se a sirene. Um que outro sente um pequenino susto seguido de um sorriso sem graça. Numa ação sincronizada, um casal se levanta. A mulher com cara de menina segue para o notebook e data show, senta-se, clica e projeta, no telão, uma imagem com o título ‘ o coração da usina’. O homem de gravata, grisalho, dá um passo à frente e, de um ponto estratégico, no canto, divide seu olhar entre a plateia e o telão, num sorriso largo, visivelmente ensaiado. Dá um sonoro bom dia. A resposta de todos sai meio cantada feito crianças em sala de aula.
Os olhares estão todos fixos no homem de gravata. Como robôs! Uns atravessaram o Atlântico para estar ali e esperam algo muito especial. Apenas a moça identificada no crachá por Celestina, da Agência de Notícias, foge ao comportamento padrão. Ela tem um quê de mistério. Não se desprega do celular, que parece conectado à internet.
O homem de gravata toma uma espécie de caneta minúscula e, através dela, marca o centro daquela estrutura enorme com uma luzinha, afirmando, numa alegria quase incontida mesclada a um tom irônico: ‘o bisturi do capital transplanta o coração da Amazônia!’
Os números são gigantescos! Aquele ‘coração’, o rotor da 2ª unidade geradora da Casa de Força principal de Belo Monte, tem 320 toneladas e viaja 5.269 km, durante aproximadamente três meses, saindo de Taubaté no dia 25 de novembro de 2014 e chegando a Vitória do Xingu no dia quatro de fevereiro de 2015. Após sua chegada à Estação de Transbordo de Carga do Sítio Belo Monte, ele é retirado da balsa e colocado numa carreta de 256 pneus.
Com um clique no notebook, a mulher com cara de menina troca o rotor pela imagem de um operário, Wagner. Sua boca expressa uma cantilena comum nas grandes obras, sinal da internalização da ideologia do opressor: ‘um dia eu poderei contar para os meus filhos e netos que trabalhei na construção da terceira maior hidrelétrica do mundo e contribuí para o desenvolvimento do meu país’. Ele aparenta uns 40 anos. Operador de Ponte e de Pórtico rolante, é o responsável por fazer o translado da peça desde a Estação ao Pátio de estocagem, um trecho de seis km, num tempo de meia hora. Transporte crítico.
Retira-se o operário da tela e aparece, de novo, a estrutura enorme, enquanto o apresentador, com locução cavernosa, continua: ‘somente profissionais treinados e credenciados podem fazer esse serviço, afinal, essa peça – apontando para a tela – é valiosa para o funcionamento da usina. É a peça mais importante da turbina, o núcleo gerador de energia em uma usina hidrelétrica’.
Clicando o notebook, a mulher com cara de menina aumenta a imagem, numa ação combinada com o apresentador. E toda a sala, que está em completo silêncio, se expressa num oh! , muitos colocam a mão na boca, num ato de profunda admiração. Alguns quase se ajoelham como diante de um deus. Enfeitiçada, a sala explode numa salva de palmas, depois transmudada num murmurinho.
Celestina, da Agência de Notícias, segue mecanicamente o ritual dos demais; um olhar atento, porém, perceberia que sua cabeça está ligada a algo extremamente importante. Mais importante do que aquele rotor. Colegas aparentemente da mesma Agência por vezes vão ter com ela, puxam uma conversa breve, ela dá toda a atenção, mas volta logo ao celular, freneticamente.
Agora se pode ver, com clareza. O ‘coração’ é mesmo de um monstro gigantesco. E imaginar que esse é apenas um dos 24 rotores de Belo Monte. Torneado em uma única peça de aço inoxidável, ele mede oito metros e meio de diâmetro por cinco metros de altura. Suas pás, imensas, recebem água do lago em fortíssimo deslocamento, gerado pela queda do rio barrado e canalizado. Impulsionadas por milhões de toneladas de água em queda, elas giram. Nesse giro, a energia mecânica é transformada em energia cinética e, esta, em energia elétrica.
Novamente, a foto do operário é colocada na tela, o qual fala, de viva voz: ‘quando tiver em plena operação, em 2019, Belo Monte vai beneficiar sessenta milhões de pessoas’, refrão soberbamente repetido pela empresa. Em seguida, surge a palavra ‘Fim’. A mulher com cara de menina olha a tela, repara longamente a plateia, num sorriso ensaiado, ouvem-se novas palmas. Enquanto uns vão saindo em animada conversa, formam-se grupos, um em torno do apresentador, outro próximo à mulher com cara de menina e, um terceiro, bem disputado, ao redor do operário, ‘herói’ daquela manhã. Seu rosto brilha de contentamento, feito menino empobrecido cuja maior alegria é lavar o carro do primo enricado.
Celestina, agora, está especialmente atenta a cada movimento dos presentes. Parece procurar qualquer coisa, seus olhos são penetrantes. Lê algo no celular, alguma mensagem, e vai serpenteando entre as pessoas, pedindo licença aqui, arredando alguém com a mão ali; delicada, mas firme. Ela tem pressa! Em segundos já está na Guarita, apresenta o crachá ao Segurança, diz-lhe qualquer coisa, salta para fora do canteiro e toda a imprensa, aguardando ali, é avisada e a acompanha. Celestina repara a aparelhagem de transmissão em tempo real de uma TV afiliada à Globo e avisa: ‘primeiro entrevista ao vivo!’.
Alguns repórteres se acotovelam uns aos outros, dois deles se aproximam de microfone e câmera e gritam: ‘ao vivo aqui, em um minuto!’. É a TV Liberal! Celestina fica parada ao lado de uma Hilux, o motorista a olha atento, a postos para qualquer surpresa. Celestina repara o carro, o Segurança, o canteiro de obras, mil coisas passam em sua cabeça. Aquele minuto dura um ano! Por fim, a repórter puxa a blusa, ajeita o cabelo assanhado pelo vento, dá um toque aqui e ali …
Tudo pronto! A câmera acesa no seu rosto, o microfone em sua boca, a repórter termina sua introdução de praxe: ‘estamos falando ao vivo aqui de Belo Monte com Celestina, assessora de impressa da Norte (é assim que se diz entre os íntimos!) para esse evento com os acionistas da hidrelétrica. Ela tem uma informação muito importante para os telespectadores do Brasil inteiro. O que ela vai falar é tudo verdade!’. E, aproximando o microfone ainda mais, diz: ‘Hoje é um dia especial no Xingu, com a chegada desse imenso coração, acompanhado de gente empreendedora e de empresas bem sucedidas. Explique isso melhor para nós! O Brasil todo está vendo você e quer saber!’.
Celestina esboça um meio sorriso e diz, com voz firme: Camaradas, atenção! O Xingu, o Tapajós, seu povo é o coração da Amazônia. O rotor de Belo Monte é o marca-passo do capital, um monstro imperialista que suga o óleo da Petrobrás e o sangue da classe trabalhadora, que palpita no ritmo frenético do lucro extraordinário, que se adona de nossos bens naturais e da força de trabalho, que coloca seus cães de guarda no Congresso Nacional. Famílias em Altamira estão debaixo d’água, mas isso é apenas um detalhe para os donos de Belo Monte. Vamos pra Rua, não ao golpismo, não à devastação da Amazônia, não à dizimação dos povos indígenas, dos empobrecidos, Constituinte popular… ‘Corta, corta, corta!’, grita uma voz, que vem correndo rumo à câmera. ‘Ela não é da Norte!’
Forma-se um reboliço. O estrago já está feito. O Brasil todo ouviu a verdade via TV Globo em trinta segundos.
Celestina arranca bruscamente o crachá, lança-o ao chão e, em passos firmes, entra na Hilux, que já está ligada, e o motorista sai em disparada. Ela ainda acena com a mão. No dia seguinte, os jornais estampam a manchete: ‘Furo de reportagem atinge o coração de Belo Monte’. A matéria relata o fato, mostra uma foto dos acionistas desesperados por medo de perder dinheiro com a revelação dessa verdade e especula sobre o mentor desse acidente de percurso. Entre os atingidos de Belo Monte, ninguém tem dúvida: é coisa de Sofia!