Cantora que marcou os rumos do jazz e da legislação de drogas nos EUA só se tornou sucesso após a morte
Por João Máximo, em O Globo
Billie Holiday nasceu em Baltimore, Maryland, em 7 de abril de 1915. Para os curtidores do jazz e da canção americana, seu centenário é lembrado com a reverência que merece uma artista única em sua arte. Mulher e cantora extraordinárias, Lady Day, como era chamada, foi definida por um de seus biógrafos como “uma pessoa mais fascinante do que qualquer personagem já criada por romancistas”. O mais recente trabalho sobre a cantora é o livro “Billie Holiday: The musician and the myth”, de John Szwed, lançado nesta semana nos EUA.
Billie Holiday tinha 44 anos quando morreu, num hospital de Nova York, em 17 de julho de 1959. À porta de seu quarto, dois policiais estavam a postos para impedir que alguém lhe levasse drogas — ou mesmo que ela, como se não estivesse agonizando, tentasse fugir. Em seus últimos momentos, Billie recebia o mesmo tratamento dado a um criminoso.
Os extremos dessa história — já contada em livro, filme, documentário — servem para que se entenda como tanto a música como a sociedade americana mudaram, por causa dela, no caso da música, e em torno dela, quando seu envolvimento com as drogas foi um dos argumentos usados pelos que tentaram — e acabariam conseguindo — mudar a legislação que tratava o dependente como bandido e não como doente. Os debates começaram sete dias antes da morte de Billie, quando surgiu a proposta de tratamento, e não prisão, para o viciado. Passaram-se sete anos até que a proposta virasse lei.
A outra mudança, mais importante se o assunto é música, foi a que Billie Holiday provocou no estilo de cantar música popular, jazz ou não. Tinha 18 anos quando começou a gravar na Columbia Records. Até lá, viveu o pior que se possa imaginar: o pai que abandonou a família e ela mal conheceu, o estupro aos 11 anos, a prostituição aos 13, o início de carreira em bares miseráveis, um primeiro casamento péssimo (o segundo seria pior), a iniciação com as drogas pesadas aos 17, tudo antes de desembarcar em Nova York para gravar seus primeiros discos, acompanhada de grandes músicos de jazz. Diante de tal responsabilidade, o que esperar da jovem estreante senão um estilo tecnicamente bem comportado, sem ousadias formais, quadrado mesmo, como o da quase totalidade das cantores então iniciantes?
Há muitas gravações exemplares desse período. Uma, porém, diz bem o quanto Billie Holiday trazia de novo. Um de seus primeiros takes (na verdade, o terceiro) era “I wished on the moon”, canção lançada pouco antes por Bing Crosby no filme “Big Broadcasting of 1936” (“Ondas sonoras de 1936”). Crosby era o cantor por excelência, o modelo para todo crooner que viesse depois dele, inclusive Frank Sinatra. Billie Holiday, porém, tinha outras raízes e outras tantas intenções, Embora quisesse ter a voz poderosa de Bessie Smith e a bossa jazzística de Louis Armstrong, soube ser ela mesma desde o início. No modo de dividir sem trair a intenção da letra, de improvisar sem deformar, de usar com sabedoria a voz pequena mas sua, de surpreender os músicos que a acompanhavam com inusitadas invenções vocais, Billie transformou “I wished on the moon” em outra canção, muito melhor que a de Bing Crosby. E começou a fazer história.
São desse primeiro período os discos preferidos dos fãs de jazz, não só pelo modo como Billie ganhou o respeito e admiração dos músicos que tocaram com ela, mas também pela presença deles, pianistas como Teddy Wilson e Joe Bushkin, saxofonistas como Lester Young, Ben Webster e Benny Carter, trompetistas como Buck Clayton e Jonah Jones, clarinetistas como Buster Bailey e Benny Goodman.
Billie Holiday não foi tão popular junto ao público quanto endeusada pela crítica e por aqueles músicos. Jamais teve canção nas paradas de sucesso. E suas gravadoras a queriam mais pelo prestígio do que como vendedora de discos. Essas gravadoras foram quatro. No começo (1933-1942), ele foi exclusiva da Columbia. É sua fase mais jazzística e a preferida dos fãs do gênero.
Depois (1939-1944), gravou no Commodore, selo que lhe abriu as portas quando seu produtor na Columbia, John Hammond, interferindo em seu repertório, não lhe permitiu gravar lá a trágica “Strange fruit”, que considerava “de mau gosto”, quando Billie já estava conquistada pelos versos de Lewis Allen sobre linchamento racista: “…corpos negros balançando à brisa do Sul”. No Commodore, ela gravou pela primeira vez com acompanhamento de cordas, considerado pelos puristas uma “traição ao jazz”. Em seguida (1944-1950), vieram os anos na Decca, o começo da queda consumado quando a gravadora não quis renovar seu o contrato (Billie faltava ou chegava atrasada às gravações). Quem ainda apostou nela (1945-1959) foi o produtor Norman Granz, que a levou para gravar em seus pequenos selos, mais tarde reunidos no grupo Verve. Depois disso, Billie só fez dois LPs avulsos, sem contrato, os seus piores.
O interesse pela vida, mais do que pela obra, cresceu nos anos seguintes à morte. A história de Lady Day parecia sob medida para escritores comprometidos com a estereotipagem: a mulher negra incompreendida e explorada pelo homem branco e a grande artista destruída pelas drogas. Nada representa melhor tal tendência do que o filme de 1972 “Lady sings the blues” (“O ocaso de uma estrela”). Nele, tudo é falso, a começar pelo roteiro, obra de uma equipe pródiga em clichês, não fosse um de seus orientadores, não creditado, William Dufty, o mesmo que escrevera a “autobiografia” de Billie, lançada em 1956 (segundo se conta, ela se orgulhava de nunca tê-la lido). Falsa também a música, na forma como rearranjaram as canções de Billie e no açucarado tema escrito por Michel Legrand (substituto de Oliver Nelson, que, indignado com os absurdos do roteiro, abandonou o projeto). Falsa mais ainda a estrela do show, Diana Ross, em tudo o oposto da mulher forte e sensual que Billie tinha sido antes do ocaso. Sem falar na cantora, estilo demasiado Motown para reinterpretar Billie. Mas, como atriz, foi elogiada, ganhou até uma indicação para o Oscar.
O interesse pela obra só aumentou a partir dos anos 1970, possivelmente em resposta ao filme. Se o LP com a trilha sonora vendeu mais de 2 milhões de exemplares, por que não pôr ao alcance do público a legítima Billie? Com esse pensamento, as gravadores que possuíam os originais agiram com rapidez e, no início da década de 1980, toda a Billie Holiday, da menos feliz à mais soberba, já estava de volta. E vendendo como nunca.
Billie teve uma vida trágica, tinha uma voz pequena, mas era extraordinariamente musical e tornou-se uma das maiores, talvez a maior cantora da história do jazz.