Sem quadros competentes ou ideologia clara, o PMDB se especializou em atuar atrás da porta
Por João Paulo, em Brasil de Fato
O deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), presidente da Câmara dos Deputados, tem a habilidade de estar sempre no lado errado. Conservador, defensor de bandeiras reacionárias em direitos humanos, homofóbico, é capaz de proferir absurdos que afrontam a inteligência e a honra do Legislativo. Como linha de frente do que vem sendo chamado de “peemedebismo” na política brasileira por alguns cientistas políticos, ele se tornou o fiador de uma prática pequena de favores, de ocupação de lotes de poder no governo, de entesouramento de benefícios privados garantidos por recursos públicos. Uma espécie de papa do baixo clero.
O que alguns teóricos e políticos chamam de democracia de coalização, sob Eduardo Cunha ganha melhor descrição como puro e simples operação de achaque, como atacou o ex-ministro da Educação, Cid Gomes, no pronunciamento que deu origem a seu afastamento do governo. Não se trata de uma negociação de apoio em troca de responsabilidades na gestão ou na condução de um projeto, mas de um jogo explícito de ‘toma lá, dá cá’, em que a presença no governo é precificada de acordo com o apoio correspondente no Congresso. Nesse sentido, a afirmação de Cunha, de que “finge que é governo”, talvez seja o mais honesto de seus atos recentes.
A chegada do parlamentar ao comando da Câmara dos Deputados, além de frisar o aparelhamento e fisiologismo da casa, parece ter despertado uma ambição ainda maior. A bordo de um parlamentarismo com muitos tons de cinza, ele tem se esmerado em dificultar a governabilidade, atento sempre ao limite de seu partido em operar com desenvoltura nos bastidores. Sem quadros competentes ou ideologia clara, o PMDB se especializou em atuar atrás da porta. É só por isso que Cunha e Renan não defendem o impedimento da presidente: seria um ato de suicídio, como o parasita que destrói o hospedeiro num momento de descuido.
Evangélico, o deputado se mostra bastante seguro dos valores retrógrados de sua base para falar (não se sabe se a sério ou atravessado por um humor de péssima extração) em “Dia do Orgulho Hétero”. Ou vociferar contra o projeto de lei do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), que autoriza o aborto em até 12 semanas no SUS e na rede privada. O presidente, extrapolando sua função de viabilizar o debate parlamentar, afirmou que a matéria só seria aprovada “por cima de seu cadáver”. No entanto, na votação pela admissibilidade da redução da maioridade penal, aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, garantiu empenho na condução do processo.
Há cadáveres dos dois lados. Em outras palavras, há algo que unifica os dois casos: a ameaça de morte da população mais pobre. No caso do aborto, pela clandestinidade dos procedimentos; no que diz respeito à antecipação da maioridade penal, pelo foco na população de maior risco de violência. Nas duas situações, morrem jovens, pobres e negros. Nos dois momentos, a visão conservadora (em termos morais no aborto e sociais na segurança) se transforma numa operação fascista. Fazer um projeto andar para atender a clamores alimentados pelo ódio e impedir que o outro siga seu fluxo, por questões religiosas que afrontam a laicidade do Estado, mostra bem o espectro de atuação do deputado carioca.
A ação de Eduardo Cunha não deve ser desprezada. Ele não é apenas um parlamentar de direita, conservador e afeito ao jogo do poder. Trata-se de um homem habilidoso, que domina a dinâmica do Congresso e que, mesmo sob investigação por suspeita de corrupção, navega com soltura em todos os ambientes. Sua afronta ao Ministério Público, escudada pela aprovação corporativa de seus colegas de parlamento, foi um dos mais tristes espetáculos da vida republicana recente.
Não bastasse tanta capacidade de ação e reação, o deputado parece disposto a se lançar a novos desafios. Paparicado pelos pares, achou que teria a mesma recepção dos cidadãos brasileiros e se dispôs ao trabalho itinerante. Tem sido recebido de forma iracunda por onde quer que passe. Talvez esse seja um bom índice do divórcio entre o Legislativo e a sociedade. E um signo de sua contradição. Somos capazes de eleger péssimos deputados, mas sempre é hora de corrigir a rota.
Poderoso, articulado e tinhoso, não se deve subestimar Eduardo Cunha. Mas não há razão para temê-lo.
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Destaque: Foto de Marcello Casal Jr/ABr, Brasília