Regulamento foi elaborado sem a participação dos povos indígenas, o que contraria frontalmente o ordenamento jurídico brasileiro e convenções internacionais
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), ingressou nesta terça-feira, 24 de fevereiro, com uma ação pedindo que a Justiça Federal declare a nulidade de edital de concurso público destinado ao provimento de cargos de profissionais para atuação na educação indígena. Em tutela antecipada, o MPF requer a suspensão imediata do concurso, cujas provas objetivas estão previstas para os próximos dias 14 e 15 de março.
Publicado pela Secretaria de Estado da Educação (SEE/MG), o Edital Seplag/SEE nº 07/2014 estabeleceu as regras para o concurso, com vagas para os cargos de professor, assistente técnico e especialista, todos de educação básica, que irão atuar nas escolas indígenas ou em turmas indígenas vinculadas a escolas estaduais.
Ocorre que, segundo o MPF, os termos do edital foram definidos sem a participação dos indígenas, que só tomaram conhecimento das regras depois de sua publicação. Na prática, isso significa que eles não puderam opinar sobre as habilidades que consideram importantes para os professores indígenas, nem sobre o conteúdo das provas, de forma a adequá-lo à realidade dos povos e às suas aspirações quanto às funções da educação.
A publicação do edital sem a participação dos indígenas provocou forte reação dos povos indígenas de Minas Gerais. Nos dias 7, 8 e 9 de janeiro de 2015, ocorreu o I Seminário Estadual de Educação Indígena na Terra Indígena Xacriabá, no município de São João das Missões, no Norte de Minas Gerais, que contou com a participação de indígenas de diversas etnias que vivem no estado.
Desrespeito – Após o evento, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), afirmou que “neste ano, nas discussões que permearam todo o seminário, foram avaliadas as dificuldades recorrentes em função de constantes resoluções estabelecidas pela Secretaria de Estado de Educação, que não consideram a forma de organização dos povos indígenas, desrespeitando a autonomia e dificultando o acesso dos indígenas ao controle social desta política pública”.
O Edital Seplag/SEE n° 07/2014 não prevê, por exemplo, entre as exigências para os cargos de professor indígena, o conhecimento sobre a organização social, política, econômica, cosmológica e ritual do povo a que pertence.
O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Edmundo Antônio Dias, lembra que “o edital foi formulado a partir do que não indígenas pensam ser relevante para os indígenas, sem qualquer diálogo com eles sobre o que entendem, em seu sistema de valores, seja importante avaliar. Quem deve eleger qual o conhecimento que importa ao educador indígena? Quem elege quais são os conhecimentos que precisam ser transmitidos para os alunos indígenas?”
Para o MPF, a elaboração do edital sem a participação dos indígenas viola não só a Constituição brasileira, como a Convenção nº 169, da Organização do Trabalho sobre os Povos Indígenas e Tribais, e a própria legislação que rege a educação no país.
Cooperação – Além de assegurar a participação dos povos indígenas em qualquer medida administrativa que os afete diretamente (artigo 6º), a Convenção nº 169, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.051/2004, expressamente dispõe, no capítulo destinado à educação, que “os programas e serviços educacionais concebidos para os povos interessados deverão ser desenvolvidos e implementados em cooperação com eles para que possam satisfazer suas necessidades especiais e incorporar sua história, conhecimentos, técnicas e sistemas de valores, bem como promover suas aspirações sociais, econômicas e culturais” (artigo 27).
O direito à participação está previsto também nos artigos 19 e 32 da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, onde se reitera a necessidade do “consentimento livre, prévio e informado” dos povos indígenas antes de o Poder Público tomar decisões que possam afetar seus interesses.
Essa participação tem o objetivo de garantir que os povos indígenas tenham reconhecidos e respeitados sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, conforme disposição expressa da nossa Constituição.
O Ministério Público Federal afirma, na ação, que o artigo 210 da Constituição “assegurou explicitamente às comunidades indígenas a utilização, no nível fundamental regular, o ensino de suas línguas maternas e de processos próprios de aprendizagem, assumindo um discurso pluricultural da sociedade brasileira, renunciando às políticas assimilacionistas, destinadas a eliminar as diferenças culturais, e admitindo que elas devem ser não apenas toleradas, mas respeitadas e estimuladas”.
Educação – Na verdade, lembra o MPF, as leis que tratam da educação, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Plano Nacional de Educação, têm abordado o “direito dos povos indígenas a uma educação diferenciada, pautada pela valorização dos conhecimentos e saberes desses povos e pela autonomia da escola indígena na definição de projeto político-pedagógico”.
A LDB (Lei 9.304/96), por exemplo, é explícita ao afirmar que o dever do Estado em oferecer uma educação escolar bilíngüe e intercultural implica formação diferenciada de docentes, material didático e currículo específicos e diferenciados, alfabetização em língua materna e ensino do português como segunda língua, tudo isso elaborado com apoio técnico e financeiro da União.
A lei garante ainda liberdade para que cada escola indígena defina seu próprio projeto político-pedagógico. Na mesma linha, seguiu o Plano Nacional da Educação (Lei 13.005/2014), que, em anexo no qual estabeleceu as metas e estratégias para a educação no Brasil, previu não só a participação das comunidades na definição do projeto pedagógico e na gestão das escolas indígenas, como a consideração das “especificidades socioculturais das escolas do campo e das comunidades indígenas e quilombolas no provimento de cargos efetivos para essas escolas”.
O MPF também lembra que o edital impôs dificuldades até mesmo no formato das inscrições, que deverão ser realizadas exclusivamente pela internet. “Ao ignorar as dificuldades de comunicação existentes nas terras indígenas, o edital acaba dificultando o acesso ao certame dos professores indígenas que vivem nas aldeias e que, em princípio, seriam os mais capacitados, pelo conhecimento da língua e das especificidades culturais, a disputar os cargos oferecidos”.
Com a ação, ajuizada perante a Justiça Federal em Belo Horizonte, o MPF espera obter, além da imediata suspensão do concurso, a declaração de nulidade do edital, determinando-se ao Estado de Minas Gerais a publicação de novo regulamento, com a garantia de que sua elaboração seja feita mediante processo efetivamente participativo, que inclua representantes legítimos de todas as comunidades indígenas do estado, com acompanhamento pela Fundação Nacional do Índio (Funai).