A transposição e os vulnerabilizados

“As pessoas não estão em primeiro lugar”

Alice Souza – Diario de Pernambuco

O rio São Francisco representa 70% da oferta de água dos municípios nordestinos. Sob a promessa de trazer segurança hídrica à região, dando solução ao famigerado problema da seca em 390 municípios, o Governo Federal iniciou, há sete anos, o Projeto de Integração do Rio São Francisco. Maior obra de infraestrutura hídrica já realizada no Brasil, a integração – também conhecida como transposição – abre canais que juntos somam quase 500 quilômetros em linha reta. Divididas em dois eixos, as obras cortam oito municípios pernambucanos, uma mudança não só física, mas também de identidade das populações locais. Desde 2012, o engenheiro de saúde pública, e pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) André Monteiro estuda as mudanças provocadas pela integração em Pernambuco. A pesquisa “Estudos Ecossistêmicos dos Territórios e Populações Vulnerabilizadas na área de Abrangência do Projeto de Integração do Rio São Francisco” envolve 13 pesquisadores e se ramifica em teses de mestrado, doutorado e um documentário, a ser finalizado. Em entrevista ao Diario, ele detalha os resultados encontrados, assim como analisa o perfil de gestão do empreendimento.

A que se propõe a pesquisa “Estudos Ecossistêmicos dos Territórios e Populações Vulnerabilizadas na área de Abrangência do Projeto de Integração do Rio São Francisco”?

Iniciamos o trabalho em 2012, com finaciamento do Ministério da Saúde e da presidência da Fiocruz. Procuramos compreender como os processos sociais produzem situações de vulneração. Então, analisamos desde alterações nas condições de vida das pessoas, condições de habitação, compreensão da cultura, questões de territorialidade, aspectos técnicos, modelo econômico e suas tecnologias, dimensão política, gestão de recursos hídricos e meio ambiente. Em uma abordagem ampla, identificamos sete grupos afetados, como indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais e mulheres. Nessa pesquisa inicial, também identificamos vários problemas.

Qual a fase atual dos estudos?

A pesquisa atualmente é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Estamos trabalhando nos dois eixos da transposição em Pernambuco, nos municípios por onde os canais passam no estado, além de Monteiro, na Paraíba. Ao todo, são 10 cidades, para onde realizamos viagens desde setembro no intuito de conversar com os gestores e grupos sociais para identificar os aspectos positivos e negativos. Muitas dessas pessoas já são vulneradas historicamente, são parte da desigualdade social brasileira.

Quais as principais consequências da transposição identificadas nos grupos sociais em Pernambuco?

Esse povos foram vulnerados uma segunda vez, como acontece com grandes empreendimentos em geral, que são processos mais de acumulação de riqueza. Tem gente há cinco anos assentada que ainda não recebe água, ou seja, não tem como trabalhar. Em Floresta, uma comunidade indígena teve o processo de demarcação de terras interrompido por sete anos. São muitos os exemplos. Cerca são retiradas e trabalhadores rurais perdem animais. Outro problema são as explosões que deixam rachaduras nas casas, mas o conserto não é feito. O projeto da transposição definiu em parceria com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), sem consultar os povos indígenas e os quilombolas, que as casas de taipa iam ser trocadas por casas de alvenaria. Mas existe um tratado da Organização Internacional do Trabalho que determina a consulta a esses povos, pois qualquer obra ou mudanças em seus territórios pode trazer danos para cultura e suas atividades. Os povos indígenas, então, deixaram de fazer o ritual da jurema, pois não acharam adequação na casa de alvenaria. Uma terra quilombola foi cortada ao meio sem aviso prévio. A gente já tem historicamente um passivo com eles e reproduz ainda essas ações.


Em Pernambuco, a região de Ipojuca e do Cabo de Santo Agostinho foi uma das pioneiras nos projetos de desenvolvimento, com o Polo Petroquímico de Suape e a Refinaria Abreu e Lima. Uma das consequências foi o aumento dos casos de exploração sexual na região. O roteiro se repete no semiárido?

Nós identificamos vários problemas de gênero. Um deles foi a questão das indenizações, de maridos que receberam as indenizações sem consentimento das mulheres e desapareceram como dinheiro. Nas empresas, há mulheres demitidas por não cederem a assédio sexual. Outro ponto é o envolvimento dos trabalhadores com meninas de 10 a 14 anos, aumentando o índice de gravidez e Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs). Algumas mulheres ainda são abandonadas com os filhos ou se envolvem em situações de drogas e prostituição.

O modo de implantação das obras da transposição é um reflexo de como o Brasil sempre lidou com as populações vulneradas ao longo da história?

Sim, com as populações tradicionais e o pobre. Há um professor da Universidade Federal de Pernambuco, Parry Scott, que fala de descaso planejado. Há uma orientação clara nas empreiteiras para desconsiderar a reclamação dos moradores. As empresas jogam para minimizar os custos, mas a maioria delas está envolvida na Operação Lava Jato. As obras do Eixo Leste, em Salgueiro, estão paralisadas por causa disso. E o ônus fica com as pessoas. Em geral, elas se sentem impotentes para resolver, abandonadas pelo estado.

O que o Brasil poderia ter extraído de lição de outras obras como essa e não o fez?

Não aprendemos na nossa história a tratar as pessoas como gente. É o que acontece em Belo Monte, onde há acusações de etnocídio. Um grande problema dos empreendimentos é a desterritorialização, em que grupos são obrigados a sair de suas terras, mas esses espaços guardam a memória afetiva-cultural que lhes confere identidade. O trabalho também é outro componente fundamental na construção da identidade. Há uma irresponsabilidade do ponto de vista da gestão com as pessoas. As pessoas não estão em primeiro lugar. Pelo contrário.

Em um dos artigos da pesquisa, você diz que há uma tendência mundial na construção de grandes projetos de apontar para uma “convivência com o semiárido”. Na prática, como funciona esse conceito?

Na década de 1980, ocorreram encontros internacionais, fóruns de povos em regiões semiáridas e, a partir disso, foi criada a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) para atuar na mudança da forma como os governos planejavam políticas públicas para essas áreas. No Brasil, a política vigente naquela época é a mesma de hoje, reproduzida na integração, a de combate à seca. Ou ainda a indíustria da seca, como a compra de votos, barganhas políticas para alimentar o poder local. A convidência, por outro lado, prevê autonomia e poder das pessoas. A concepção é por ações e estruturas mais locais e descentralizadas, com sustentabilidade no nível dos agricultores de terras, associações e de coletividade.

A transposição tem um conjunto de 38 ações de mitigação previstas, elas são suficientes para dar resposta ao processo de enfraquecimento das populações vulnerabilizadas?

Há várias ações relacionadas a saúde, qualidade de vida ou preservação, mas nos estudos percebemos que os programas são absolutamente insuficientes para dar conta dos problemas produzidos durante a implantação do projeto. Analisamos o EIA/RIMA da transposição, mas ele se converteu em um instrumento de legitimação do capital, ou seja, das grandes empresas que vão ser beneficiadas com o empreendimento. Vivemos hoje uma crise energética e de recursos hídricos no Brasil que é decorrente do modelo de desenvolvimento de destruição da mata, de projetos em que os povos tradicionais – que têm conhecimento de preservação das matas – são desconsiderados.

As populações consultadas identificam pontos positivos na integração do São Francisco?

Estamos entrando no oitavo ano de implantação das obras, ainda há muito o que fazer. Em algumas cidades, houve crescimento na arrecadação de impostos e serviços, como Salgueiro. Pretendemos criar um fórum de articulação de entidades acadêmicas e movimentos sociais dos quatro estados envolvidos, para acompanhar a finalização e os resultados.

Saiba Mais

Integração do Rio São Francisco

69,2% do total de obras concluídas

Eixo Norte: Cabrobó, Salgueiro, Terranova e Verdejante, em Pernambuco; em Penaforte, Jati, Brejo Santo, Mauriti e Barro, no Ceará; em São José de Piranhas, Monte Horebe e Cajazeiras, na Paraíba.

Já no Eixo Leste, o empreendimento passa pelos municípios pernambucanos de Floresta, Betânia, Custódia e Sertânia; e em Monteiro, na Paraíba.

Investimento inicial previsto

R$ 4,5 bilhões

Investimento até agora

R$ 5,93 bilhões nas obras

Orçamento

R$ 8,2 bilhões

Início: 2008

Previsão de término: 2016

Em Pernambuco:

11 empresas atuando

4.390 trabalhadores

3 milhões de pessoas atendidas

241 famílias reassentadas (até agora)

7 vilas produtivas rurais

Fonte: Ministério da Integração Nacional

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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