Esta é a primeira de uma série de três sobre a língua falada nas periferias do Rio de Janeiro.
por Gitanjali Patel*, Rio On Watch
“A gente pegou a linguagem que não foi feita para a gente, que não é nossa, e criou uma outra linguagem que é nossa e que é riquíssima! Mas ela não é aceita. Pouco a pouco na medida que a gente vai criando conhecimento, é assim que ela pode ser aceita, que ela deve ser aceita; ela é riquíssima, ela é invejável, e plausível. Só que ela é de outra academia, a academia da vida.” – Wesley DelírioBlack, rapper
A língua representa a cultura de uma sociedade e as práticas e atitudes que lhe dão consistência. Diferentes dialetos dentro de uma língua não só representam grupos sociais diversos, mas refletem as relações entre eles. O dialeto do grupo dominante em uma dada região é naturalmente refletido nas instituições governamentais e educacionais e representa o “dialeto padrão“; os dialetos de comunidades que vivem nas periferias da sociedade são consequentemente marginalizados. Comum em outros lugares, essa dinâmica é marcada no Rio de Janeiro, onde a língua falada nas áreas marginalizadas tem, de forma rotineira, sua legitimidade negada e ignorada, tida como um português mal falado. Essa rejeição é menos um veredito no que se refere aos méritos linguísticos do dialeto–que é de fato uma língua própria–e mais uma reflexão sobre a aguda estratificação e profunda desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira. A língua é explorada como mais uma maneira de aumentar a distância entre a elite e os pobres, contribuindo para uma longa história de exclusão e estigmatização dessas comunidades.
Apesar dessa exclusão, há resistência. A linguagem das favela resiste à marginalização e transcende as severas condições de vida que permeiam muitas comunidades, usando de criatividade e inovação para desafiar os estereótipos dominantes e resistir à exclusão.
A revolta contra a convenção linguística representa um desafio às normas sociais e expressa um desejo por reforma. Esse fenômeno é observado por linguistas, que percebem o uso da gíria como marca de atitudes contestatórias e um afronto em relação às autoridades. Palavras convencionais são encontradas em lugares não-convencionais e expressões são libertadas das amarras gramaticais do “dialeto padrão” para serem manipuladas de novas formas. Substantivos, como o da frase “Pedro é fechamento”, são revisitados como adjetivos, nesse caso, para significar ‘digno de confiança’. Palavras são readaptadas para adquirir novos significados que destaquem um novo contexto: por exemplo, “bonde” é usado para turma ou grupo de amigos. Palavras sonoras como pá, bá, bum ou pum são usadas como elipses verbais para enfatizar ações. “Vamos sair? Claro, bum, partiu, vamos”.
Palavras sonoras têm duas funções, uma vez que também podem ser usadas para obscurecer o diálogo. Aqui, frases inteiras são substituídas por uma única palavra sonora, por exemplo “Vou fazer, se não pá”. A imprecisão é usada como estratégia interativa, tornando qualquer compreensão inteiramente dependente de conhecimentos internos e de um contexto. A marginalização vivenciada por membros da comunidade é portanto invertida para excluir não-membros. Substantivos substitutas exercem um papel similar com palavras como “parada”, “bagulho”, “merda” e “porra” sendo usadas para substituir o objeto de uma frase. Por exemplo, “Fui pro bagulho” ou “ele tava falando daquela parada aí”. Em ambas as frases a “coisa” só está clara para os participantes da conversa.
A língua muitas vezes serve como um código secreto. Entretanto, ela não é só produto de uma tentativa ativa para restringir a compreensão para o grupo falante da mesma, mas também são códigos de comportamento que são integrantes da vida em comunidade. Moradores são fluentes nas maneiras de lidar com as invasões da polícia e chefes do tráfico, reconhecendo o perigo e evitando certas áreas. A “lei de Murici” é um termo que quer dizer fazer vista grossa ou manter segredo, muitas vezes necessário para a sobrevivência. Essa sabedoria é intrínseca à língua, onde tanto a ambiguidade e a criatividade são instrumentos importantes para lidar com certas situações. Muitas vezes usar palavras diferentes para polícia, por exemplo, tem o mesmo efeito de obscurecer frases com o mesmo substantivo. “Pila” e “pompeu” são apenas dois exemplos de palavras usadas em Acari para substituir ‘polícia’ que entraram e desapareceram do vocabulário da comunidade.
A improvisação adaptável é o coração da língua da periferia. O vocabulário muda constantemente e os moradores estão sempre criando neologismos. A estrutura coesa das comunidades permite que as novas palavras criadas entre amigos (em sua maioria jovens) se espalhem facilmente, enraizando a linguagem na realidade da comunidade. Cantores de funk são responsáveis tanto por inventarem novas gírias como por espalhar novas palavras para além da comunidade. O funk “Poxa vida”, por exemplo, foi responsável pela gíria “wool”, que quer dizer ‘ótimo’ ou ‘legal’. Nesse sentido, cada comunidade cria o seu próprio vocabulário que reflete seu contexto único, histórica e demograficamente. Essas palavras são difundidas para outras comunidades através da música ou de boca em boca, ganham popularidade fora da comunidade e se tornam convencionais, ou perdem popularidade e se extinguem, ou possivelmente até evoluem em significado, em processo orgânico.
Algumas gírias da comunidade acabam sendo adotadas por facções do tráfico de drogas e se tornam identificadores territoriais. Por exemplo, comunidades controladas pelo Comando Vermelho usam gírias como “é nós” e o Terceiro Comando, por sua vez, usa “é a gente”. São frases parecidas que reforçam simultaneamente o sentimento de comunidade íntima e a divisão territorial na comunidade.
Através da inovação linguística, a desumanização e estratificação são transformados em orgulho e sensação de pertencimento. A linguagem afirma a identidade da favela e subverte as lutas representacionais pelas quais passaram seus moradores. Isso é bem exemplificado pelas interpretações contraditórias da palavra “malandro”. Fora da comunidade é um termo pejorativo que significa ‘canalha’ ou ‘trapaceiro’. Entretanto, dentro das favelas, “malandro” é sinônimo de inteligência. Bezerra da Silva declara no documentário Onde a Coruja Dorme que “O malandro é a pessoa inteligente…. A palavra malandro quer dizer: inteligência. E quando um homem é pobre ele não pode ser inteligente, então vira malandro. Mas, no sentido de que ele vive a margem da lei”. O documentário aborda esse conflito, mostrando a diferença entre “malandro” e “bicho”, palavra que pode ser usada para se referir a um bandido descuidado, violento, explicando que, dado o conceito de malandro, um bicho é um tolo.
A linguagem das periferias é, acima de tudo, fértil e cheia de vida, até sob imensa pressão. A riqueza, sutileza e versatilidade da linguagem serve para refutar tentativas de estereotipá-la e desligitimá-la. Os próximos dois artigos dessa série examinarão o estigma atrelado à linguagem e as formas artísticas que promovem seu valor.
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*Gitanjali Patel é graduada em Espanhol e Português pela Universidade de Oxford e atualmente trabalha como pesquisadora especializada em linguagem, cultura e sociedade brasileira. Ao longo dos últimos anos vem pesquisando estratégias anti-corrupção na America Latina.
Tradução por Fernanda Lacerda.
Diogo,
imagino que não haverá problema, desde que as fontes sejam sempre mencionadas.
Boa sorte!
Bom dia, estou fazendo meu trabalho de conclusão de curso sobre esse assunto, e achei esse artigo ótimo e gostaria de usá-lo como apoio à minha pesquisa.