Dadme, por favor, un pedazo de pan… / pero dadme / en español.
César Vallejo (1892-1938) – La Rueda del Hambriento
Em Taqui Pra Ti
Neste sábado, lembrei o poeta peruano César Vallejo mendigando lá na França um pedaço de pão, mas queria que lhe dessem em espanhol, sua língua materna. A lembrança ocorreu porque em 21 de fevereiro, por recomendação da Unesco, o mundo celebra o Dia Internacional da Língua Materna. O Brasil comemorou? Não sei, nada vi na mídia, mas me sinto motivado a escrever outra vez sobre o tema. Afinal, a conversa semanal que temos aqui com os leitores só é possível por causa dela, a língua onde fazemos a nossa morada. Ela entra na composição desse jornal como o trigo na feitura do pão. Sem ela, o milagre do diálogo não acontece.
César Vallejo, mestiço, tinha avós que além do espanhol falavam ou quéchua ou galego, mas só herdou a língua espanhola, com a qual chegou em Paris, em 1923, monolíngue, sem entender francês, sem grana, com apenas uma moeda de 5 soles no bolso. Nos dois primeiros anos, passou fome, frio e chegou a dormir ao relento. Escreveu o poema “A Roda do Faminto”, onde usa o valor simbólico do pão, que para saciar sua fome tinha de ser servido na língua de dona Maria de los Santos Mendoza, sua mãe. O pão, na língua materna, deixa de ser aquele que o diabo amassou.
E o que é mesmo a língua materna? É aquela que a gente aprende no colo da mãe, já na primeira mamada, acalentado com as canções de ninar, e só vai abandonar lá no cemitério, depois do último suspiro. Por isso, criamos com ela laços afetivos – diz Benedict Anderson, professor da Universidade de Cornell (EUA) que compara: “O que os olhos são para o amante – aqueles olhos comuns especiais com que ele, ou ela, nasceu – a língua é para a identidade. Por meio dessa língua, reconstituem-se os passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se futuros”.
Uma língua contém nela todo o território onde é falada, na medida em que classifica, nomeia, descreve, avalia, hierarquiza e dá sentido a tudo que nele existe: flora, fauna, acidentes geográficos, seres encantados e desencantados que o povoam, além de crenças e conhecimentos que revelam a relação entre eles. As línguas não só “comunicam” informações, mas constituem o suporte de práticas sociais, construindo discursos que estabelecem vínculos sociais, ritualizam, contam histórias, cantam, brigam, amam e contribuem para criar comunidades que se formam justamente com essas afinidades.
Línguas em perigo
Por causa da língua, às vezes se mata e se morre. Justamente por isso a UNESCO escolheu o 21 de fevereiro. Neste dia, em 1952, a polícia paquistanesa fuzilou uma multidão que reivindicava nas ruas de Daca, atual capital do Bangladesh, o reconhecimento do bengali, como uma das duas línguas nacionais daquele país. Quatro estudantes morreram, o que provocou uma onda de protestos, mas o Paquistão, finalmente, reconheceu a língua materna de mais de 170 milhões de pessoas, que se tornou a língua nacional do Bangladesh após sua independência em 1971.
Hoje, no planeta, existem 6.700 línguas, todas são línguas maternas de milhões de pessoas, muitas vezes apenas de algumas dezenas e às vezes até de meia dúzia, que nem sempre são reconhecidas e estão seriamente ameaçadas de extinção. “Uma língua começa a desaparecer quando seus falantes são expulsos de suas terras ou quando a comunidade, por essa e por outras razões, perde o desejo de preservá-la” escreveu David Crystal, que não conhece a senadora e agora ministra Kátia Abreu. Ele diz que “se uma língua que nunca foi documentada morre, é como se jamais tivesse existido, porque não deixa qualquer vestígio”.
No Brasil, o Censo oficial do IBGE (2010) contabilizou, além das línguas dos imigrantes, a existência de 274 línguas indígenas, tendo como referência as denominações fornecidas pelos próprios falantes. Por outro lado, trabalhos de especialistas que usaram critérios linguísticos, registram e classificam a existência de 188 línguas faladas hoje por uma parte dos 896.900 índios que vivem em 5.565 municípios do país.
Essas são todas “línguas em perigo”. O brasileiro não tem informação – quando a tem é de maneira fragmentada – sobre a diversidade e sobre sua importância para o país e para a humanidade. No Brasil, o senso comum dominante na escola, na mídia, no Judiciário, no Congresso Nacional e em qualquer instância de poder fortalecem a imagem de um país monolíngue em português, e isso já foi naturalizado por grande parte da população.
Durante cinco séculos, essa diversidade, quando percebida, era vista como algo negativo, como ameaça à unidade nacional. As políticas públicas atropelaram o direito do uso da língua de identidade, procurando eliminar qualquer língua que não fosse o português sob o argumento de que, com isso, permitiam a comunicação entre os brasileiros. A própria ideia de unidade e de identidade nacional passa sempre pela imagem de “uma só nação, uma só língua”.
Língua e alma
No século XVI, segundo os trabalhos de classificação de línguas, existiam mais de 1.300 línguas no território que é hoje o Brasil. Historicamente, as políticas de línguas contribuíram para a extinção de mais de 1.100 línguas; as que sobreviveram foram minorizadas e permaneceram com reduzido número de falantes, com uso social restrito, com sua produção literária oral desconhecida pela sociedade nacional e sequer confrontada à literatura escrita, de mercado, sem espaço na escola, na mídia e nos tribunais. Foram invisibilizadas, apesar de continuarem vivas, formatando identidades, modelando almas.
“Alma”, quando traduzida do português à língua guarani, é “ñe´ẽ”. O mesmo termo é usado para traduzir também “língua”, “palavra”, “voz”. No Vocabulario de la Lengua Guarani, Montoya (1640, 249) registra “ñe´ẽte´e” como “língua materna”, o sufixo été que é aqui incorporado significa “verdadeiro”, “original”. Portanto, os guaranis usam a mesma palavra ñe´ẽ para designar tanto aquilo que em português chamamos de “língua”, quanto o que denominamos de “alma”.
Os Fulni-ô, que vivem em Pernambuco, constituem o único povo indígena do Nordeste que conseguiu preservar sua língua materna – o yaathé – que convive com o português em situação conflitiva de bilinguismo. Dona Itaci, uma pajé Fulni-ô que nos deixou em 2013, compara sua língua com o ritual do ouricuri:
– A língua é sagrada, como o ouricuri, porque guarda o pensamento de um povo. Se eu falar em português, por exemplo, a palavra casa, você só vai lembrar do prédio, das paredes, mas se eu falo cetutxiá, aí você sabe que é, sobretudo, um lugar onde a gente encontra alegria, paz e serenidade.
A ignorância e o preconceito contribuem para que muita gente reafirme a postura denominada por Bartomé Meliá de unilinguismo para diferenciar do monolinguismo. O monolinguismo implica lealdade à língua materna, mas não exclui o diferente, apresentando uma abertura para aprender outras línguas que contribuem ao entendimento de outros povos e culturas. Já o unilinguismo – coitado! – está absolutamente fechado por acreditar piamente que todo e qualquer pensamento se esgota em uma única língua. Torna-se ofensivo, agressivo, intolerante e exterminador.
Das quase duas centenas de línguas indígenas no Brasil, apenas 11 têm acima de cinco mil falantes, o que evidencia que todas correm maior ou menor risco de extinção. Essas línguas, consideradas “anêmicas” ou “moribundas” continuam seriamente ameaçadas.
A grande mídia bem que podia abrir um pequeno espaço – atualmente quase todo dedicado monotematicamente ao Petrolão – para reafirmar no Dia Internacional da Língua Materna o direito de cada um ter um pedaço de pão em sua própria língua, que simboliza a relação amorosa maternal que dá sentido, proteção, afago, segurança.
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Foto: Mapa etno-histórico do Brasil
Sempre o Bessa. Ótimo texto. Maravilhosa reflexão.