Teorias e práticas científicas legitimam produção de iniquidades, alertam pesquisadores reunidos no Recife

Adriano De Lavor, Revista Radis

O Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz Pernambuco) promoveu, em novembro de 2014, o 1º Seminário Nacional sobre os impactos do Racismo na Ciência e na Saúde, reunindo gestores, pesquisadores e ativistas de variadas áreas de conhecimento. Na palestra de abertura, Mônica Oliveira, assessora da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade racial da Presidência da República (Seppir), abordou as questões relacionadas ao racismo institucional, observando que é inegável que a população negra brasileira vive em piores condições de vida, fato que repercute em sua saúde.

“Vivemos em uma sociedade racializada”, contextualizou, chamando atenção para uma pesquisa realizada em 2003, pela Fundação Perseu Abramo, que indicou que 90% dos entrevistados reconheceram haver racismo no país, sem no entanto se identificarem como racistas. “Isto é uma esquizofrenia”, classificou.

Mônica lembrou que quase 10% do plano traçado na Conferência de Durban, em 2000, trata do racismo — já que, associado a outros fatores de discriminação, como condições de renda e de gênero, produz iniquidades.

O racismo institucional é produto desta interação, disse a assessora, e se expressa em práticas como falta de acesso aos serviços de saúde ou baixa qualidade de atendimento, o que gera problemas como o alto índice de mortalidade de mulheres negras grávidas, grupo onde se identifica prevalência de hipertensão. “O atendimento não as acompanha como deveria”, argumentou Mônica, lembrando que o racismo institucional também se manifesta na diferença de tratamento a que são submetidos profissionais negros. Neste sentido, apontou como sintomáticas a rejeição aos médicos cubanos contratados pelo programa Mais Médicos e a dificuldade que há em se reconhecer o racismo como determinante social da saúde: “Não se enfrenta aquilo que não se reconhece”, advertiu.

Ela criticou a falta de informação e de capacitação profissional para o enfrentamento da anemia falciforme — problema que atinge em sua maioria a população negra —, identificada há mais de 100 anos e até hoje negligenciada em seu atendimento. “Faltam campanhas específicas; mais de 50% da população é negra. Não estamos falando de políticas para minorias, estamos falando de um grupo que corresponde a mais de 70% dos usuários do SUS”, argumentou. Mônica propôs uma busca por equidade nas ações de saúde, com intervenções coordenadas em diversos setores, integração com políticas de moradia, renda e gênero, produção e utilização de dados desagregados para tomada de decisão e a garantia de participação ativa de negros e negras na gestão.

Ciência interessada

Uã Flor do Nascimento, professor de filosofia da Universidade de Brasília (UnB), observou que não há neutralidade na epistemologia, ao destacar o silenciamento do racismo na produção científica. “Todo cientista tem seus interesses”, salientou. Ele defende a teoria de que o racismo não é “acidente de percurso” na história das ciências, mas sim constituinte de suas práticas e de seu método. “Não veríamos o mundo tal como é hoje sem o racismo, que inclusive produziu e financiou o conhecimento”, destacou.

Para o professor, ações de superioridade sempre encontraram justificativas científicas sob a égide da neutralidade, que minimizou os efeitos da discriminação como “erro”, escondendo sua faceta ideológica. A própria ideia de “raça biológica” é produto da ciência, apontou Uã, sinalizando que há outras maneiras de se pensar as diferenças entre as pessoas que não seja utilizando o critério raça. Ele assinalou que práticas recentes comprovam sua suspeição, citando pesquisa realizada no Amapá, quando a população ribeirinha foi usada como cobaia de um experimento que testava os efeitos da picada de um mosquito transmissor da malária. “Isso não é somente acidente de protocolo”, advertiu.

Para ele, pesquisadores seguem insensíveis para os problemas que afetam mais as populações vítimas do racismo, não percebendo que as iniquidades geram demandas diferentes da ciência e de suas conquistas. Uã citou outro exemplo: apesar de comprovada a baixa eficácia do medicamento captopril (indicado para tratamento de hipertensão arterial) entre a população negra, o remédio segue sendo o mais utilizado no país. “A ineficácia foi comprovada pelos usuários, não no processo de fabricação”, disse o professor, defendendo o uso da categoria raça/cor nas pesquisas.

Corpo hegemônico

A antropóloga Ana Cláudia Rodrigues, doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), alertou que não há como separar a ciência da política, afirmando haver uma ideia de “corpo hegemônico” que nega outros corpos (negros, indígenas, mulheres). Essa ideia é que está na base das políticas públicas de saúde, disse a pesquisadora, que ao estudar a anemia falciforme, verificou que há diferentes interpretações para a doença — que já motivou ações eugênicas no passado (quando eram desaconselhados os casamentos entre negros e brancos), mas que também serviu como bandeira política do movimento negro. “Quando a anemia falciforme é acionada como instrumento político, a ciência reage afirmando que é uma doença molecular que atinge todos”, alertou. Ana Cláudia chamou atenção para a importância em se problematizar o resultado de pesquisas, alertando que o racismo se pauta pelo “não fazer, não olhar e não perceber”.

“Racismo desumaniza”

Representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a bióloga Fernanda Lopes lembrou que saúde e doença não são fatalidade ou destino, mas sim resultantes de um conjunto de valores (individuais e coletivos), influenciados por condições sociais, políticas, econômicas, ambientais e culturais. Ela identifica que o racismo interfere na hierarquização das questões de saúde, já que relega à invisibilidade demandas e sujeitos. “Racismo é um fenômeno ideológico que se afirma ao reforçar o interesse de um grupo em detrimento de outro”, definiu, citando como seus reflexos a criação de significados sociais negativos para negros e a fixação de espaços de ocupação que variam do privilégio à expropriação.

Fernanda defende que o racismo não faz mal somente à saúde da população negra, mas sim ao funcionamento da sociedade como um todo, já que interfere em questões como a construção de identidades e de pertencimento, assim como na organização e na convivência social. “O racismo desumaniza”, argumentou, lembrando que a prática naturaliza a discriminação, o que por si já ameaça a ideia de igualdade democrática.

Ela citou ainda, como “imperativo ético”, a utilização do quesito raça/cor nas pesquisas acadêmicas, “um instrumento de enfrentamento de injustiças” que permite a definição de prioridades, a alocação de recursos e a organização de metas, monitoramento e avaliação de questões de saúde. “A não utilização encobre dados e impede a promoção da equidade”, justificou.

Foto: Seminário Nacional sobre os impactos do Racismo na Ciência e na Saúde. (Foto: ASCOM/Aggeu Magalhães)

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