Por Otávio Raposo, em Buala
Os acontecimentos – Na última quinta-feira (5 de fevereiro) a polícia fazia mais uma das suas habituais rusgas na Cova da Moura, revistando de modo truculento os seus moradores. Um jovem de 24 anos foi detido porque não correu. Afinal, nada tinha feito de errado. Estava tão só a conversar com o primo em frente a um café do bairro.
Mesmo não tendo oferecido resistência ao ser revistado, o jovem foi alvo de chutos e pontapés por parte dos agentes da equipa de intervenção rápida da PSP. Ao testemunharem tamanha cobardia, alguns moradores reclamaram e, através de telemóveis, tentaram filmar a situação. Constrangidos, os polícias impingiram um “perímetro de (in)segurança” e, através de bastonadas e balas de borracha, agrediram pessoas indefesas na tentativa de dispersá-las. Vários moradores foram parar ao hospital, entre os quais Jailza Sousa, 29 anos, voluntária da Associação Cultural Moinho da Juventude. Ela disse ter sido alvejada deliberadamente na varanda de casa, contrariando a versão da polícia:
“Ele [o polícia] deu um primeiro tiro aqui [aponta para o peito] e tornou a carregar. Conforme fui para trás para tentar que o meu filho não saísse a varanda, pus a perna a frente onde eu fui atingida. Como disseram que dispararam um tiro para o ar? Eu tenho cá quatro cartuchos”, disse à TVI.
Dois deficientes físicos e algumas jovens também foram feridos por balas de borracha. Após o pânico causado por essa intervenção violenta, a PSP deixou o bairro levando consigo um jovem preso. A polícia alega que ele foi detido por ter lançado uma pedra e partido o vidro da carrinha, mas são muitas as testemunhas no bairro que afirmam tê-la visto sair do bairro intacta.
Ao saber dos acontecimentos, colaboradores da Associação Cultural Moinho da Juventude decidiram ir até à esquadra de Alfragide com o objetivo de dar apoio ao jovem detido e apresentar queixa contra os agentes policiais. Não era a primeira vez que episódios de violência gratuita por parte da polícia ocorriam. Nessas ocasiões, alguns moradores do bairro também foram até à esquadra prestar solidariedade aos detidos e tentar impedir que fossem torturados. No entanto, dessa vez não foi possível explicar o motivo de lá estarem. Mal chegaram à porta da esquadra, cinco jovens foram presos e espancados pela polícia. Um dos jovens, Celso Lopes, conhecido como rapper por Kromo Di Gheto, pesquisador da Universidade de Aveiro, que dias atrás estreou-se publicamente no âmbito do XII Conlab (Congresso luso-Afro-Brasileiro), foi alvejado à queima-roupa com balas de borracha na perna.
Torturados dentro e fora da esquadra, foram espancados e ameaçados de morte por agentes da PSP – dois jovens perderam um dente –, obrigando a que todos fossem, horas mais tarde, levados para o Hospital Amadora-Sintra para receber assistência médica. Com os rostos inchados, os jovens mal se aguentavam em pé ao chegarem ao hospital. Para justificar o injustificável a polícia inventou a mentira de “invasão da esquadra”, veiculada de modo sensacionalista e irresponsável por vários meios de comunicação social.
Quem nos protege da polícia?
Esta não é a primeira vez que a polícia atua de modo brutal e covarde na Cova da Moura. Episódios de violência policial tornaram-se recorrentes neste e noutros bairros pobres dos subúrbios de Lisboa. Maioritariamente negros e/ou pobres, as suas vítimas ilustram o racismo latente do Estado português, com o qual os tribunais são coniventes. O assassinato do Kuku, 14 anos, por um agente da PSP, em janeiro de 2009, é paradigmático da impunidade das atuações violentas e desproporcionais das forças de segurança pública. Embora haja provas de que o tiro foi disparado a 10 centímetros da cabeça de Kuko, o tribunal decidiu absolver o polícia agressor.
Casos semelhantes de execução (por parte da polícia) e impunidade (veredito dos tribunais) acumulam-se em Portugal – PTB, Angoi, Corvo, Tony, Teti, Snake –, evidenciando que a Justiça não funciona quando se trata de jovens negros e/ou habitantes de bairros pobres. Apresentados como “bandidos em potencial” por parte significativa dos media e das instituições políticas, é-lhes atribuída uma moralidade duvidosa que os culpabiliza pelos problemas de violência na cidade. Desta forma, são destituídos de legitimidade para mediar reivindicações sociais ou denúncias de violência policial. Essa criminalização da pobreza tem o intuito de afastar os mais vulneráveis de qualquer ação organizada, o que poderia pôr em risco o brutal acúmulo de bens e recursos nas mãos da elite dominante.
Por outro lado, o racismo é o culminar de uma opressão que serve para melhor explorar e dividir os trabalhadores. A ideologia racista cumpre um papel fundamental dentro da lógica do sistema vigente como bem assinalou o líder negro norte-americano Malcom X que, nos últimos anos de sua vida, referiu: “Não há capitalismo sem racismo”. Afinal, o racismo é uma forma de legitimar uma mão-de-obra subalterna com vista a reduzir os salários e aumentar os lucros dos patrões. Grande parte dos negros e das negras estão “incluídos” na sociedade portuguesa de uma forma bastante específica: enquanto mão-de-obra precária, barata ou desempregada. Por isso, o racismo só pode ser pensado em associação com a dimensão das classes sociais. As consequências desta nefasta combinação todos conhecem: marginalização em múltiplas esferas da vida social (da escola aos media; do local de trabalho à moradia), violência policial, segregação e humilhações sem fim.
Grito de esperança
Após 48 horas injustamente detidos, os jovens saíram em liberdade no sábado depois de serem ouvidos pelo juiz. Embora o Ministério Público pedisse a sua prisão preventiva por resistência e coação a funcionário, o Tribunal de Sintra libertou-os com o Termo de Identidade e Residência, a medida de coação menos gravosa.
Aplausos e gritos de alegria não se fizeram esperar entre as mais de 50 pessoas que aguardavam, ansiosas, por esse momento. Mancando e ainda muito magoados, os jovens ainda tiveram força e coragem de dar a cara e falar com a comunicação social. Celso, após mostrar a perna baleada, contou: “Fomos espancados literalmente. Eu fui baleado duas vezes e ameaçado de morte várias vezes”. Flávio Almada, conhecido como o rapper LBC, funcionário e membro da direção da Associação Cultural Moinho da Juventude, recordou ao Público alguns dos momentos traumáticos vividos no interior da esquadra:
– Consegui ver a expressão de um dos polícias, quando disse com uma convicção que eu não consigo reproduzir: ‘Se eu mandasse vocês seriam todos exterminados. Não sabem o quanto eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda’. Nunca tinha visto um ódio em estado bruto daquela forma. Nunca tinha visto e já vi muita coisa. A expressão dele era um ódio completamente cego e aquilo assustou-me: como é que uma sociedade anda a produzir indivíduos deste tipo?
Apesar da breve alegria pelo momento de libertação, o sentimento de revolta imperava entre os presentes. Muitos ressaltavam a necessidade dessa onda de indignação contra a violência de Estado ter uma expressão nas ruas. No dia seguinte, dezenas de moradores da Cova da Moura, a Associação Cultural Moinho da Juventude e outras organizações, apoiadas por ativistas e cidadãos solidários, reuniram-se informalmente e marcaram uma concentração contra a violência policial em frente ao Parlamento, em Lisboa, para quinta-feira, dia 12, às 17h. Eles exigem que a queixa-crime por tortura apresentada no Ministério Público da Amadora tenha consequências e haja punição aos responsáveis pelas agressões infringidas aos jovens da Cova da Moura. Esse protesto também exige a demissão do comandante de esquadra de Alfragide; o fim das patrulhas nos bairros pelos agentes da CIR (Corpo de Intervenção Rápida) e a identificação obrigatória dos agentes policiais quando entram nos bairros.