As usinas hidrelétricas do rio Tapajós devem desalojar mais de 2500 ribeirinhos e matar os peixes dos quais sobrevivem, mas o governo se recusa a consultá-los
por Ana Aranha, Jessica Mota – A Pública
O ribeirinho Rosinaldo Pereira dos Santos, mais conhecido como Tatá, está prestes a trilhar o caminho inverso daquele pretendido pela política social dos governos Lula e Dilma. Morador da beira do rio Tapajós, no oeste do Pará, ele sempre viveu em fartura alimentar. A prova está pendurada na sala de sua casa: fotos de bagres maiores que o próprio pescador. Mas, agora, Tatá pode se tornar mais um a engrossar o rol de brasileiros que precisam de ajuda financeira para se alimentar. O governo federal começou a executar na região um conjunto de obras que, em nome do desenvolvimento, vai tirar o peixe de pescadores que sabem pescar.
Hoje a vida de Tatá é assim: basta ele pousar os olhos sobre o rio durante o dia para dar início ao cálculo mental de qual melhor espécie vai dar pesca, onde, a que horas e com qual isca. É esse conhecimento também que lhe guia entre corredeiras, cachoeiras, pedrais e redemoinhos que brotam da correnteza. Com a renda da pesca ele construiu duas casas, onde tem uma roça com mandioca, banana e murici, cria galinhas e cultiva um pomar com dez tipos de frutas amazônicas. O que a família não come, ele vende. Assim sustentou dois filhos, hoje cria dois netos e, aos 52 anos, planejava adotar mais dois.
Mas os planos estão suspensos desde que chegaram notícias sobre as sete usinas hidrelétricas que o governo planeja erguer na bacia do Tapajós. A maior delas, São Luiz do Tapajós, foi traçada bem no local onde ele mora e pesca: a centenária Pimental, bucólica vila de pescadores cercada por corredeiras e floresta amazônica preservada. Seus habitantes vivem da pesca artesanal, como Tatá, ou da ornamental: peixes pequenos e coloridos encontrados nos trechos onde o rio é raso e transparente. Parte da renda local também vem do garimpo artesanal. Se a usina for licenciada, os 700 moradores serão retirados da beira do rio e levados para a beira da estrada federal BR 230, a Transamazônica, em local próximo ao lago da usina. Como eles, mais de 2.500 ribeirinhos terão suas casas e comunidades alagadas na região do Tapajós, segundo estimativa da Avaliação Ambiental Integrada das sete usinas. Os estudos ambientais não calculam, porém, os outros milhares de pescadores que perderão sua fonte de renda devido as mudanças que as barragens provocam nos rios.
O peixe vai sumir
O primeiro impacto é o “sumiço” dos peixes, eufemismo local para a morte dos animais. O fenômeno já foi observado nas duas grandes usinas do rio Madeira, em Rondônia, construídas seguindo o mesmo modelo das do Tapajós: a usina fio d’água. Para diminuir o impacto ambiental, esse modelo usa reservatórios menores do que hidrelétricas como Itaipu. Mas, ainda assim, trabalha com o represamento. A diferença é que, no lugar de concentrar a represa em um grande lago logo acima da barragem, as usinas fio d’água sobem gradativamente o nível da água, distribuindo o alagamento por uma longa extensão. Ao barrar o fluxo da água, a correnteza perde força, alagando as margens e transformando um trecho do rio em lago. Para formar o reservatório, as usinas do Tapajós vão alagar 3.022 quilômetros quadrados, o equivalente a duas vezes a área da cidade de São Paulo.
O biólogo Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, acompanhou de perto o impacto do modelo sobre o rio Madeira. Ele aponta que, ao quebrar o fluxo da correnteza, o rio passou a ter bolsões de água sem oxigênio, criando um ambiente inóspito para os peixes. Em dezembro de 2008, o Ibama de Rondônia registrou 11 toneladas de peixes mortos durante a construção da usina de Santo Antônio. No relatório, os técnicos registraram que alguns peixes ainda podiam ser vistos “na superfície, agonizando por falta de oxigênio”.
O segundo grande impacto é a quebra do ciclo reprodutivo. Ao subir o rio para fazer a desova, os peixes serão barrados pelos paredões de concreto. Só no caso de São Luiz do Tapajós, a barragem terá sete quilômetros de comprimento. A usina cria “escadas”, pequenas passagens para os peixes cruzarem esse paredão. Mas, segundo Fearnside, a experiência das usinas de Rondônia aponta que são poucas as espécies que acham essas passagens. “Um dos problemas é que o instinto dos peixes é seguir a correnteza principal”, ele explica. Abaixo da barragem, a correnteza mais forte vem da água que sai das turbinas.
Depois de monitorar a queda drástica na vida dentro do rio Madeira, Fearnside não vê perspectivas diferentes para o Tapajós. “São muitos obstáculos. Infelizmente, é improvável que uma tentativa de aprimorar as passagens consiga restaurar a migração dos grandes bagres”, avalia, referindo-se à espécie que é a principal fonte de renda local, a mesma que figura nos retratos pendurados na sala de Tatá.
Uma terceira mudança de grande impacto será o fim do ciclo natural de cheia e seca do rio, já que a usina vai controlar o fluxo da água. Além de desenhar as belas praias de areia branca típicas do Tapajós, responsáveis pela alta procura turística por Alter do Chão, esse fenômeno cria habitats fundamentais para a sobrevivência de diversas espécies vegetais e animais, como ariranhas e certos tipos de peixes, tartarugas e jacarés. A barreira física também será um obstáculo para a reprodução do boto cor de rosa e do peixe boi, espécies que correm risco de extinção.
A voz dos beiradeiros
Quem nasceu na beira do rio sabe da importância do ciclo de cheia e seca para a vida, incluindo a humana. Por isso Luiz Matos de Lima, dono de um mercado em Pimental, foi confrontar um representante da Eletrobras em reunião que ocorria em Trairão, sede do município a que pertence a vila. Os ribeirinhos nem eram convidados, mas Luiz e outros moradores de Pimental foram mesmo assim. Lá, foram informados de que a usina será obrigada a indenizar os moradores ou construir uma nova casa para eles. Mas Luiz sabe que nem o dinheiro ou a casa serão capazes de substituir a quebra no ciclo de sobrevivência. Ele pediu a palavra para alertar que a usina vai tirar tudo dos ribeirinhos, já que novas plantações que forem feitas devem demorar a produzir. “Eles responderam que o governo vai doar cesta básica enquanto o povo não produzir. Já pensou? Coisa mais triste um povo acostumado em trabalhar ter que viver de cesta básica. E eu, que vendo mercadoria, vou viver do que?”, questiona.
“Os estudos de impacto ambiental passaram longe de mensurar os impactos na vida dessas pessoas”, aponta o cientista social Mauricio Torres, um dos maiores estudiosos do modo de vida dos ribeirinhos da região, onde essa população também é conhecida como “beiradeiros”. Com costumes particulares do grupo, os ribeirinhos são intimamente ligados à interação com a floresta e o rio. Grande parte deles raramente vai à cidade ou a um médico. É o caso de Teresa Lobo Pereira, que tem uma casa com roça em Pimental e outra em Montanha e Mangabal. “Eu sou veterana”, ela diz, batendo no peito estufado. “Como diz o dizer nosso, na nossa língua, eu venho dos tronco velho”. Para Teresa, a floresta guarda a farmácia, o supermercado e os caminhos da memória de toda a sua vida. Ela nasceu no “beiradão”, como os ribeirinhos chamam o local, filha de cearense com paraense.
Os ribeirinhos do Tapajós são, em parte, filhos e netos da geração de soldados da borracha que migrou para a Amazônia sob incentivo do governo federal. Quando a produção de látex cessou, eles foram abandonados na região e, para sobreviver, adaptaram-se à interação com o meio. Torres já comprovou o registro de famílias que vivem lá há oito gerações. “Essa é uma história de co-evolução homem e floresta. Eles moldaram a vida de modo que os recursos naturais não acabem e hoje dominam uma tecnologia de manejo do rio e da floresta”, explica Torres. “Mas, na hora que você transforma o rio em lago, você transforma profundamente esse habitat. As consequências disso são trágicas”.
Sobrevivência ameaçada
Com pouca ou nenhuma assistência do Estado, essa não é a primeira vez que os ribeirinhos do Tapajós têm sua terra e modo de vida ameaçados por projetos vindos de Brasília. Foi assim em 1974, quando parte da população local foi expulsa para a criação do Parque Nacional da Amazônia. Alguns foram morar rio acima, outros se mudaram para Pimental e há os que foram para a cidade de Itaituba. A adaptação foi impossível em alguns casos. Torres registrou a fala de uma viúva que contou como o seu marido jamais se adaptou à mudança: “A vida dele ficou muito ruim. Ele não sabia fazer nada fora de lá. Nem pescar ele não sabia. Ele não sabia pescar em outro lugar. Depois que deixaram a gente rodado aqui pra cidade, ele remava mais de dias pra ir lá no lugarzinho da gente pra pescar. Mas não dava mais. Logo morreu. Ele não era mais”. Esse e outros relatos orais fazem parte do livro O Escriba e o Narrador, de Torres.
Quarenta anos depois, parte do local de onde os ribeirinhos foram retirados para a criação do parque será, agora, alagada para a construção da usina.
A saga do beiradeiro que “não era mais” depois de arrancado do seu lugar é sintomática do clima que tomou parte da vila de Pimental após a notícia da remoção. Os sorrisos hospitaleiros rapidamente se desfazem quando perguntamos sobre a usina. A professora Suzete de Oliveira Nogueira fica com a voz embargada ao lembrar das perguntas feitas pelos alunos do 3o ano: “professora, não dava pra cada família fazer uma casa flutuante? Aí a gente podia ficar aqui”. Assim como ela, diversos moradores da vila ficam melancólicos ao falar sobre o futuro do lugar onde nasceram e viveram. “Isso aqui vai virar um cemitério. Um lugar fantasma”, diz a ribeirinha Regina Nonato dos Santos, cercada pelas árvores cheias de fruta do quintal da vizinha. “Pra mim isso é tudo um pesadelo. Se eu pudesse, acordava e não dormia mais”.
Além da relação com uma natureza de riqueza luxuriante, os moradores temem perder a tranquilidade da vila. Assustam-se em antecipação com a grande quantidade de pessoas que vão chegar. Segundo os estudos da usina serão 13,5 mil trabalhadores, número que vai no mínimo dobrar com todos os outros que seguem o fluxo para prestar serviços. Hoje, as portas de Pimental dormem destrancadas. Não há registro de roubos ou furtos. A única cena de violência que a reportagem presenciou foi uma mãe batendo no filho que tentava se esgueirar pelas árvores do quintal. O menino foi acudido por um papagaio. O bicho disparou uma rajada de gritos agudos, como se ele mesmo estivesse sob tortura, até a mulher largar o chinelo.
O lugar onde a nova vila será construída ainda não foi definido, mas é possível que ela se torne um dos núcleos urbanos mais próximos do canteiro de obras. Se isso acontecer, Pimental pode ter a mesma sina de Jaci Paraná, vila de pescadores a 20 quilômetros da usina de Jirau, em Rondônia, que viu sua população quadruplicar com o início da obra. A violência em Jaci é tanta que os comerciantes fazem vaquinha para pagar uma empresa de segurança particular. Em 2012, um grupo matou o comandante da Polícia Militar e rendeu oito policiais para assaltar a pequena agência bancária instalada na vila.
Tatá e sua família estão no escuro: nunca ouviram falar de Jaci Paraná e não fazem ideia de quão estratégica é a localização da nova vila de Pimental. Ele e toda a comunidade têm muitas dúvidas sobre o que vai acontecer com a região e como se preparar para as mudanças, mas não há informação ou mediadores independentes para orientá-los nesse processo.
Bernardino, 85 anos, filho de Pimental
A moradora mais antiga de Pimental é Maria Bibiana da Silva, conhecida como Gabriela. Ela tem 105 anos. Em 2012, quando a reportagem de Pública visitou a vila de pescadores pela primeira vez, ela era uma das vozes preocupadas com a chegada da usina: “Não tenho gosto que essa barragem saia, mas uma andorinha só não faz verão”. Dois anos depois, em novembro de 2014, voltamos a procura-la, mas a família interveio. Gabriela não pode mais nem ouvir falar sobre barragem. Sua pressão sobe, é arriscado para a saúde. Mas a percepção da matriarca continua aguçada e ela percebeu o tema da conversa com seu filho, Bernardino Silva Azevedo, 85 anos. De dentro do quarto, perguntava o motivo de nossa presença. A neta tentou desconversar, mas já era tarde: “é a tentação”, a avó repetia, já agitada. Ela só se acalmou quando um neto disse que a reportagem estava lá para falar “das coisas boas” da comunidade.
Bernardino cumpre as vezes de contar a história da família, que é uma aula de Amazônia. Gabriela saiu do Ceará em 1917 com o pai rumo ao Acre, mas eles perderam a condução e ficaram no meio do caminho. Bernardino nunca estudou, a vida de trabalho começou aos 12 anos ao lado da mãe. Participou de todos os ciclos econômicos da Amazônia: o da borracha, na Segunda Guerra Mundial; o da vende de peles de animais, após a decadência da borracha; e o do garimpo. Só parou porque sua saúde não lhe permitiu continuar. “Trabalho pesado é comigo mesmo. Já fiz de tudo. Só não fiz matar gente”, ri, em referência a outra atividade ainda lucrativa na Amazônia: a pistolagem.
Agora, vive para ver mais um ciclo amazônico, a chegada das barragens. Como futuro, ele se vê morando com a mãe na cidade, vivendo de “beneficiozinho”, nas suas palavras.
Governo se recusa a ouvir os ribeirinhos
O Ministério Público Federal iniciou uma ação civil pública exigindo que o Ibama suspendesse o licenciamento da usina enquanto as empresas responsáveis pelos estudos ambientais (leia mais no box) não elaborasse um estudo para avaliar o impacto acumulado das sete usinas na bacia e não realizasse a consulta prévia às comunidades afetadas. A consulta consiste em levar informações sobre o empreendimento aos ribeirinhos e indígenas e ouvir quais são as suas demandas e preocupações. Em tese, o Ibama deveria levar esses argumentos em conta na hora do licenciamento, solicitando adaptações ao projeto de modo a reduzir os impactos negativos. Ou até mesmo vetar o empreendimento. A consulta é obrigatória, segundo a legislação brasileira com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
Mas a Advocacia Geral da União recorreu e a disputa foi parar no Superior Tribunal de Justiça quando o governo ativou o mecanismo da Suspensão de Segurança, o mesmo que garantiu o avanço de Belo Monte. Em vez da disputa seguir o trâmite normal da justiça, esse mecanismo aciona diretamente o STJ com o argumento de que a paralisação do licenciamento geraria “grave lesão à ordem, saúde, segurança e economia públicas”. O ministro Felix Fischer autorizou que o governo seguisse com o licenciamento, mas desde que consultando as populações locais: “o Governo Federal deverá promover a participação de todas as comunidades, sejam elas indígenas ou tribais, a teor do seu art. 1, que podem ser afetadas com a implantação do empreendimento, não podendo ser concedida a licença ambiental antes da sua oitiva”. Além dos ribeirinhos, há terras indígenas Munduruku que serão afetadas e até alagadas pela usina.
Apesar dessa decisão, a Secretaria-Geral da Presidência da República, órgão responsável pela consulta, não está consultando os ribeirinhos. Em reunião gravada pelos Munduruku em setembro, cujo vídeo foi revelado pelo blog Língua Ferina , representantes da Secretaria-Geral dizem a um líder de Montanha e Mangabal que a consulta só se aplica aos indígenas. “Esse processo que estamos fazendo na região se aplica aos indígenas. O que a gente está discutindo é fazer um processo informativo para Montanha e Mangabal, mas que não seria consulta”, diz Nilton Tubino, que era coordenador de Movimentos do Campo na gestão de Gilberto Carvalho. “O entendimento do governo federal hoje, para essa fase, é que quem é ouvido lá pela [convenção] 169 são os indígenas e quilombolas. Isso já tem referência. Comunidades tradicionais não se chegou a esse acordo ainda, dentro do governo, de como vai ser consultado e em que estágio”.
“Não há absolutamente nenhuma justificativa técnica ou jurídica para dizer que essa população ribeirinha não teria esse direito”, afirma o advogado Fernando Prioste, coordenador da ONG Terra de Direitos. “Esse entendimento do governo tem a ver apenas com conveniência política”.
O argumento do governo também foi contestado pelo MPF. Em uma manifestação sobre a Ação Civil Pública sobre o caso, o procurador federal Luís de Camões Lima Boaventura critica a interpretação do governo: “beiradeiros, ribeirinhos e agroextrativistas são tão sujeitos de direitos da Convenção 169 quanto os indígenas e devem ter direito a uma consulta apropriada. Afirmar o contrário é mais uma vez incidir num discurso hegemônico, em que os diferentes modos de viver e se relacionar com a floresta são desconsiderado”
Procurada pela reportagem da Pública para explicar porque os ribeirinhos de Pimental e outras comunidades ribeirinhas não estão sendo consultados, a Secretaria-Geral da Presidência enviou a seguinte nota: “O governo federal está discutindo com as comunidades indígenas e ribeirinhas uma proposta de metodologia de consulta a estas comunidades da região da bacia do Tapajós. No último dia 30 de janeiro, a Secretaria-Geral se reuniu com representantes do povo Munduruku e da comunidade Montanha Mangabal, quando apresentaram ao governo uma proposta de consulta. Os documentos estão em análise pelo governo federal”.
Apesar da falta de apoio do governo, a comunidade Montanha e Mangabal se organizou para montar o protocolo de consulta e aproveitaram a reunião entre a Secretaria e o povo Munduruku para entregar o seu documento. As outras comunidades a serem afetadas pela usina, porém, estão excluídas do processo. Como é o caso de Pimental, que reúne a maior concentração de ribeirinhos a serem removidos pela usina e nunca foi inserida no processo de consulta.
Falta de informação gera conflitos
A única comunicação entre os ribeirinhos e as empresas que conduzem os estudos é feita por um grupo que se apresenta como “Diálogo Tapajós”, uma empresa de São Paulo contratada pelo consórcio que fez os estudos de impacto ambiental, o mesmo que tem interesse em construir a usina. Em tese, o Diálogo é responsável por apresentar aos moradores os impactos que eles vão sofrer, preparando-os para a mudança e para a negociação com o empreendimento. Mas o grupo não tem autonomia para isso e acaba por não cumprir o seu papel.
“Eu não sei porque colocaram o nome ‘diálogo’, porque quando você faz uma pergunta, eles não respondem”, diz Eudeir Azevedo. Ele elenca algumas das questões para as quais nunca teve resposta: “Pra onde nós vamos mudar? Quanto mais ou menos é que se paga por área afetada? Eles nunca sabem responder nada, então a gente pergunta: quem é realmente de fato a pessoa que a gente deve conversar? Mas nem isso eles dizem”.
Em Pimental, a ação do Diálogo Tapajós tomou um contorno inusitado: o grupo que representa a usina virou “mediador” para aplacar conflitos criado pela própria usina entre membros da comunidade. Sem informações sobre os seus direitos, os moradores da vila se desentenderam sobre qual deveria ser a postura em relação ao empreendimento. O Diálogo Tapajós organizou um conselho para que os ribeirinhos se reunissem com a mediação da empresa.
O discurso da empresa hoje é de que o grande problema de Pimental é a cisão dentro da vila, como se os moradores fossem responsáveis caso as condicionantes não forem cumpridas. Givanildo Rodrigues de Paula, coordenador de campo do Diálogo, cita o exemplo da usina de Belo Monte como uma referência. A hidrelétrica está prestes a iniciar a produção de energia, mas está longe de completar o conjunto de ações sociais condicionadas à licença, como a remoção dos moradores. “É comum, nas nossas reuniões, aparecer a fala de que eles [ribeirinhos do Tapajós] foram a Belo Monte e viram que as casas não estão sendo feitas do jeito que prometeram. Ao invés de alvenaria, estão fazendo pré-moldado, que é quente”, diz Givanildo. “A gente coloca que o Diálogo não tem condição de garantir que aqui não vai ser dessa forma, mas que é um exemplo muito ruim e que a organização da sociedade civil tem que dar conta de evitar que isso aconteça aqui”.
O desentendimento entre moradores de Pimental esquentou em 2010, quando, sem pedir licença, uma empresa de topografia contratada pela Eletrobras furou o chão da comunidade para fixar os primeiros marcos. “Quando um morador foi perguntar qual era o serviço, numa boa, o funcionário disse que não tinha que dar explicação pra ninguém porque tava lá mandado pelo presidente, que na época era o Lula”, lembra Azevedo. Como o governo federal nunca se faz presente na vila, os moradores automaticamente acharam que o funcionário falava do presidente da associação de moradores, José Odair Pereira Matos, conhecido como C.A.K., e foram tomar satisfações com ele. Quando entenderam que o funcionário falava do presidente da república, um grupo se revoltou e destruiu o marco. A partir de então, a associação de moradores passou a proibir que os pesquisadores voltassem a pisar em Pimental. “Assim como eles têm o direito de dizer que a usina tem que sair, é um direito do ribeirinho defender o que é nosso”, diz C.A.K.. “A gente não tá pedindo cesta básica, um novo lugar pra morar, a gente tá defendendo um direito nosso”.
Ameaças e tentativas de suborno
Depois que assumiu uma postura mais combativa, C.A.K. diz que passou a receber intimações para recuar. Primeiro foram as ofertas de dinheiro. “Já recebi ligação do Rio de Janeiro, São Paulo, de meia hora, quarenta minutos. Já veio pessoas também em Pimental. Eles chegam falando em casa, carro e dinheiro no banco”. C.A.K. garante que sempre cortou as propostas pela raiz, nunca deixou os interlocutores chegarem a valores concretos nem nunca aceitou os convites para ir conversar em outros estados.
Depois que recusar as ofertas, C.A.K. relata que começou a receber ligações com ameaças. Um dos seus parceiros levou um soco em uma reunião, a agressão veio de um morador da vila que era contra a postura combativa do grupo. Foi quando C.A.K. decidiu se afastar da associação. “Não é fácil ser liderança nessa região, até nossa família fica marcada”, Apesar do afastamento, ele ainda integra o grupo de Pimental que tem a postura mais crítica em relação à usina. O novo líder da associação permite a entrada de pesquisadores na vila. Ele não pode ser entrevistado pela reportagem pois estava fora, trabalhando no garimpo.
Dentro da vila, a resistência foi vista com receio por alguns. Sem experiência em negociações, parte dos moradores tem medo que a postura os prejudique ainda mais, e preferem aceitar logo as compensações oferecidas. “Os empreendimentos usam as carências locais para impor o projeto, as pessoas acham que só terão acesso aos seus direitos se aceitarem a usina”, afirma Arthur Massuda, membro da Artigo 19. A organização, que trabalha pelo acesso à informação e liberdade de expressão, realiza atividades na região para tentar informar a população sobre os seus direitos no processo com as usinas.
Depois de entrevistar mais de 30 famílias para tentar entender o discurso do grupo afetado que se declara “a favor” da usina, a reportagem de Pública se surpreendeu ao encontrar definições como a de Tatá, que se define como “contra-mas-a-favor”. Ele explica com um riso nervoso: “sou do grupo a favor. Mas, se você me perguntar mesmo, na verdade eu sou contra”. Como muitos, Tatá teme sofrer as consequências de enfrentar um empreendimento financiado pelo governo federal.
Mais do que dividida, a comunidade de Pimental está rendida pelo medo. Tatá cita o caso dos Munduruku, grupo mais organizado na resistência às hidrelétricas na Amazônia e que já sofreu retaliações por sua postura. Depois de expulsarem os pesquisadores da usina de sua terra, em março de 2013, algumas aldeias foram cercadas por barcos e helicópteros da Força Nacional de Segurança. A Expedição Tapajós, como o governo batizou a ação policial, visava “garantir o apoio logístico e a segurança” dos pesquisadores e ficou um mês na região. “Era como estar preso na aldeia”, lembra Juarez Saw Munduruku, cacique da aldeia Sawré Muybu, que fica a poucas horas de Pimental. Sua aldeia virou o símbolo da resistência aos empreendimentos porque pode ter áreas alagadas pela usina, o que é inconstitucional (leia a reportagem A batalha pela fronteira Munduruku).
Mas Tatá quer distância da batalha travada pelos indígenas. Ele já formou seu veredicto: “Não vou me manifestar por nada, já estou grandinho demais pra estar apanhando, morrendo por aí. Não adianta. Você não pode lutar contra o governo federal. Se o governo federal quer, você tem que aceitar”.
Mesmas empresas interessadas na usina são responsáveis pelos estudos de impacto
A relação de pouca confiança entre as empresas que conduzem os estudos de impacto e a população afetada se explica por um vício de origem no processo de licenciamento. As mesmas empresas interessadas em fazer as obras são as responsáveis pelos estudos de impacto ambiental e social e pela comunicação com a população afetada.
“Tem, no mínimo, uma forte tendência de conflito de interesses”, diz Brent Milikan, diretor do programa Amazônia da International Rivers, que monitora o modo como o governo brasileiro conduz o licenciamento das hidrelétricas. “Estamos falando de impactos sobre um patrimônio público e a legislação estabelece que tem de ter medidas de mitigação e compensação. Mas isso, para as empresas, se traduz em gastos”.
Brent aponta o papel “contraditório” da Eletrobras nesse processo. A empresa de capital aberto que é controlada pelo governo federal lidera o consórcio de empresas interessadas em construir a usina, composto por Camargo Correa, EDF, Copel, Cemig, GDF Suez, Endesa e Neoenergia. Brent aponta que, ao invés de ser o fiel da balança do interesse público nesse processo, a Eletrobras lidera o consórcio “como uma empresa privada, focada em maximizar o lucro”. Pior, ela atuaria dentro do governo para pressionar e “intimidar” o órgão licenciador (Ibama) a aprovar os estudos e liberar o licenciamento.
No caso das usinas de São Luiz do Tapajós e Jatobá, o consórcio liderado pela Eletrobras contratou os serviços da CNEC Worley Parsons, empresa australiana que comprou a CNEC, consultoria técnica da Camargo Correa. A Worley Parsons, mesma que executa as obras de compensação social de Belo Monte, foi a responsável pelo levantamento dos impactos ambientais e sociais das usinas do Tapajós.
O Ministério Público Federal apontou uma omissão grave nesses estudos, que motivou uma ação civil pública contra o Ibama e quase paralisou todo o processo de licenciamento: a análise das usinas foram feitas de forma isolada, sem uma avaliação que medisse o conjunto de impactos das sete usinas na bacia. Além disso, o licenciamento estava chegando ao final sem que a população afetada fosse consultada. A data do leilão chegou a ser anunciada pelo Ministério de Minas e Energia, que dias depois suspendeu o anúncio.
Depois que a justiça federal exigiu, a Avaliação Ambiental Integrada ficou pronta em menos de três meses. Foi criticada por ambientalistas por ter sido feita às pressas e por ter se baseado em dados secundários. “O simples fato do estudo ser produzido pelas empresas interessadas deixa a informação viciada e limitada. Vira uma propaganda do empreendimento”, afirma Arthur Massuda, da Artigo 19.
A população de Pimental nunca foi consultada sobre a usina que pode ser construída sobre o solo onde a vila está há pelo menos 120 anos.
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Foto destaque: Ribeirinhos de Pimental vivem em integração com o Tapajós: hábito de lavar a louça no rio ajuda a atrair os peixes (A Pública)